Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

No <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/vulnerabilidade-digital-o-problema-da-exclusao-tecnologica-30122021">segundo texto</a> desta série, apresentei o conteúdo da primeira dimensão da vulnerabilidade digital, a qual envolve a ausência e/ou precariedade do acesso às tecnologias de informação e comunicação (TICs) e aos serviços de conexão à internet (=vulnerabilidade tecnológica).
Essa dimensão da vulnerabilidade revela uma face do fenômeno conhecido como “digital divide”, evidenciando que aqueles que se veem desprovidos do instrumental à tecnologia e aos serviços de conexão deixam de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais pessoas.
A seu turno, a outra face da exclusão digital se descortina diante da carência de adequada informação e capacitação tecnológica para o exercício da cidadania digital. Trata-se da vulnerabilidade técnica ou informativa-operacional, objeto do presente texto.
Essa segunda dimensão da vulnerabilidade integra a moderna concepção de “apartheid digital”, desvelando que a inclusão na sociedade da informação não se resume meramente à apropriação tecnológica e ao acesso aos serviços de conexão. Depende, igualmente, de um processo conjugado de universalização da alfabetização digital, que objetive o desenvolvimento de competências digitais e a melhoria na qualidade de vida dos cidadãos.
Novamente, a premissa adotada pelo raciocínio se apresenta bastante simples: sem um adequado letramento digital, que permita unir a democratização da informação existente nas redes com as habilidades necessárias para que os indivíduos efetivamente desfrutem dos benefícios que as tecnologias podem trazer, não se pode cogitar de efetiva inclusão digital.
Nesse prisma, muito mais do que franquear o acesso ao complexo montante de informação hoje existente na rede virtual, é preciso oferecer aos cidadãos os meios para o desenvolvimento das capacidades necessárias para aprender a se informar e aprender a informar aos outros.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Isso envolve o “saber utilizar as TICs, saber acessar informações por meio delas, compreendê-las, utilizá-las e com isso mudar o estoque cognitivo e a consciência crítica, agindo de forma positiva na vida pessoal e coletiva”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Essa capacitação para o acesso à informação vem sendo trabalhada na esfera internacional pelo movimento denominado “information literacy”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, corrente de pensamento que deita suas origens nos estudos de biblioteconomia norte-americanos da década de 70.
Segundo preconiza a “American Library Association’s Presidential Committee on Information Literacy”, a busca pelo desenvolvimento de habilidades digitais deve permitir o reconhecimento de quando existe a necessidade de se buscar uma informação, assim como os processos de identificação, localização, avaliação e utilização para um objetivo ou problema específico.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Percebe-se, portanto, que o fenômeno da inclusão digital deve ser encarado como verdadeira “política pública, de caráter universal, e como estratégia para construção e afirmação de novos direitos e consolidação de outros, pela facilitação de acesso a eles”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Essa oxigenada concepção do “digital divide”, que recusa o determinismo tecnológico (=crença de que a tecnologia possa gerar melhorias automáticas na vida dos cidadãos), tem sido a tônica adotada nas discussões internacionais sobre inclusão digital, atualmente incorporadas pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) como pauta da Agenda 2030 pelo cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
É com essas lentes, aliás, que o artigo 27 do <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/marco-civil-da-internet-e-o-encilhamento-das-liberdades-online-07072020">Marco Civil da Internet</a> deve ser lido, ao evidenciar que as iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de promoção da internet como ferramenta social devem: “I - promover a inclusão digital; II - buscar reduzir as desigualdades, sobretudo entre as diferentes regiões do País, no acesso às tecnologias da informação e comunicação e no seu uso”.
Isso porque o uso da internet no Brasil deve atender a uma finalidade social (art. 2º, inc. VI), desenvolver-se à luz dos direitos humanos, dos direitos da personalidade e do exercício da cidadania digital (art. 2º, inc. II), tendo por objetivo o acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida pública e cultural (art. 4º, inc. II).
Some-se a isso as diretrizes do Marco Civil para o desenvolvimento da internet no Brasil, que estabelecem à União, estados, Distrito Federal e municípios a obrigatoriedade do desenvolvimento de ações e programas de capacitação para uso da internet (art. 24, inc. VIII), incluindo a capacitação integrada a outras práticas educacionais em todos os níveis de ensino, visando o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, promoção da cultura e desenvolvimento tecnológico (art. 26).
Vista, portanto, enquanto direito do cidadão e dever do Estado, a política pública de inclusão digital mencionada no Marco Civil da Internet deve abranger:
<blockquote class="jota-article__citation">i) informação digital, destinada ao acesso à informação tecnológica qualificada e aos alertas sobre os riscos existentes nos cyberespaços (desinformação, marketing persuasivo, comércio ilícito de dados etc.);</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">ii) alfabetização, letramento ou educação digital, abrangendo o ensino, a capacitação e o desenvolvimento de capacidades tecnológicas pelos indivíduos;</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">iii) profissionalização digital, envolvendo à formação profissional tecnológica e o estímulo à geração de emprego, renda e iguais oportunidades.</blockquote>
A jornada dos brasileiros para o saque do auxílio emergencial consubstancia um exemplo sintomático dessa espécie de vulnerabilidade digital.
Durante a pandemia causada pelo SARS-CoV-2, diversas famílias suportaram dificuldades para confirmar o direito ao benefício, eis que as listas de beneficiários disponibilizadas na rede mundial de computadores limitavam o conhecimento geral da população, enquanto o aplicativo “Caixa Tem” constituiu o canal exclusivo para a obtenção dos valores em tempos de indisponibilidade das agências físicas.
No âmbito da Seguridade Social, as pessoas também enfrentaram dificuldades para deduzir pedidos de auxílio-doença, feitos unicamente por meio do aplicativo “Meu INSS” durante o fechamento das agências. Outras novidades como a leitura de QR Codes para fins de transferências e pagamentos também constituíram barreiras tecnológicas, seja pela falta de acesso à ferramenta, seja pela incompreensão acerca de seu adequado funcionamento.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
A vulnerabilidade técnica-operacional dos usuários do auxílio emergencial foi recentemente explicitada pela pesquisa “Uso da Internet no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus: painel TIC-COVID 19”, lançada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por meio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br (NIC.br) e do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Segundo apontado, cerca de 28% das pessoas entrevistadas deixaram de receber o auxílio emergencial simplesmente porque “não conseguiram utilizar o aplicativo Caixa”, enquanto outros 18% não obtiveram o benefício porque “não souberam baixar o aplicativo”.
Os números são significantes e evidenciam que a virada tecnológica nos serviços públicos deve estar preocupada não apenas com a ausência de aparelhos tecnológicos e dificuldades de conexão, mas também com a acessibilidade, a operabilidade e a capacidade de adaptação dos usuários aos diferentes sistemas e interfaces utilizados pelo serviço público.
Tais comandos, aliás, se aplicam ao poder público, consoante inciso X do artigo 24 (“a prestação de serviços públicos de atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por múltiplos canais de acesso, inclusive remotos”) e incisos I (“compatibilidade dos serviços de governo eletrônico com diversos terminais, sistemas operacionais e aplicativos para seu acesso”) e IV (“facilidade de uso dos serviços de governo eletrônico”) do artigo 25, ambos do Marco Civil da Internet.
Vê-se, portanto, que o vencimento da exclusão digital no Brasil não depende exclusivamente do oferecimento de instrumental à tecnologia e aos serviços de conexão, como se poderia inadvertidamente pensar.
Ao contrário, o que a dimensão técnica da vulnerabilidade digital exige, nos termos das normativas nacionais e internacionais ora apresentadas, é de um processo de inclusão digital que se traduza em verdadeira política pública de cidadania ativa, permitindo a universalização do desenvolvimento de competências digitais e a consequente oportunidade de melhoria na qualidade de vida dos cidadãos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LE COADIC, Yves-François. A ciência da informação. Brasília: Briquet de Lemos, 2004, p. 112.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SILVA, Helena; JAMBEIRO, Othon; LIMA, Jussara; BRANDÃO, Marco Antônio. Inclusão digital e educação para a competência informacional: uma questão de ética e cidadania. Ci. Inf., Brasília, v. 34, n. 1, jan. 2005, p. 33.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O movimento tornou-se tão importante que, em 1989, foi criado nos Estados Unidos o National Forum on Information Literacy, mantido pela American Library Association’s Presidential Committee on Information Literacy. SILVA, et. al., op. cit., p. 34.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Trata-se do conceito divulgado pelo National Forum on Information Literacy, Segundo a American Library Association (ALA): “Information Literacy is defined as the ability to know when there is a need for information, to be able to identify, locate, evaluate, and effectively use that information for the issue or problem at hand”. Disponível em: <a href="https://www.ala.org/aboutala/national-forum-information-literacy-1999%E2%80%932000-report">https://www.ala.org/aboutala/national-forum-information-literacy-1999%E2%80%932000-report</a> Acesso em nov. 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ASSUMPÇÃO, Rodrigo; MORI, Cristina. Inclusão digital: discursos, práticas e um longo caminho a percorrer. In: KNIGHT, Peter Titcomb; FERNANDES, Ciro Campos Christo; CUNHA, Maria Alexandra (Org.). E-Desenvolvimento no Brasil e no mundo: subsídios e programas e-Brasil. São Paulo: Yendis, 2007.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> AZEVEDO, Júlio Camargo de; RAVAGNANI, Giovani. WhatsApp e inclusão digital: uma saída para as Defensorias Públicas. Revista Consultor Jurídico, mai/2021. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-11/tribuna-defensoria-whatsapp-inclusao-digital-saida-defensorias-publicas">https://www.conjur.com.br/2021-mai-11/tribuna-defensoria-whatsapp-inclusao-digital-saida-defensorias-publicas</a> Acesso em nov. 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO - CETIC.BR (Brasil). Comitê Gestor da Internet no Brasil. Uso da Internet no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus: painel tic covid-19. Painel TIC COVID-19. 2020. Parceria: UNESCO; CETIC.BR; NIC.BR e CGI.BR. Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/tic-covid-19/analises/. Acesso em: 02 jan. 2021.

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