Opinião e Análise

Thimotie Aragon Heemann

Ao entrar em vigor em agosto de 2006, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-maria-da-penha">Lei Maria da Penha</a> trouxe consigo não apenas normas de caráter material e que compõem o âmago do corpus iuris protetivo do Direito das Mulheres, como também normas de cunho processual, disciplinando os pontos adjetivos do sistema de proteção destinado às mulheres e meninas em situação de violência doméstica e familiar. Dentre as inovações processuais trazidas pela lei, o tema da especialização da competência se destaca, especialmente sob dois aspectos: um principal e outro de forma subsidiária.
A principal novidade é, sem dúvida, a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, locus formatado de forma específica — já que dotado de competência híbrida e cumulativa (cível e criminal) — e com a acurácia necessária para o julgamento de feitos atinentes ao tema da violência doméstica contra a mulher. De forma subsidiária, o legislador previu ainda que, até que sejam criados e estruturados os referidos juizados, as varas criminais “acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Essa amplitude de atribuições das varas especializadas tem como propósito conceder ao magistrado um olhar panorâmico acerca do fenômeno violência doméstica e familiar contra a mulher, conferindo-lhe a expertise necessária para, ao mesmo tempo, desempenhar sua judicatura a partir de uma real e efetiva perspectiva de gênero<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, analisando de forma conglobante as consequências diretas e indiretas — sejam elas cíveis ou penais — dos fatos atrelados à situação de violência contra a mulher, e ainda, proporcionar à vítima uma forma customizada e digna de acesso à Justiça.
Durante os 16 anos de vigência da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm">Lei 11.340/2006</a>, os tribunais superiores foram instados a se manifestar acerca dos limites desta competência híbrida e cumulativa, sob diversos ângulos e incluindo as mais variadas situações jurídicas: autorização de viagem, execução de alimentos, processamento de crimes contra a vida e contra a dignidade sexual, dentre outros.
Pois bem. Na edição da coluna <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis">Direito dos Grupos Vulneráveis</a> desta semana, analisaremos os aspectos cíveis delineados pelo Superior Tribunal de Justiça acerca dos limites da especialização do Poder Judiciário em matéria de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como o produto de sua jurisprudência em casos específicos acerca da temática.
<h3>1. Mulher em situação de violência doméstica e o pedido de autorização para viagem ao exterior em caso de guarda unilateral</h3>
O <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm">Estatuto da Criança e do Adolescente</a> regulamenta, em seus artigos 83 a 85, o tema da autorização para viajar. Cuida-se de situação corriqueira nos bancos do Poder Judiciário, sobretudo em casos envolvendo crianças e adolescentes filhos de pais separados. Nesse sentido, o artigo 83, caput, do ECA é categórico ao afirmar que: “Nenhuma criança ou adolescente menor de 16 (dezesseis) anos poderá viajar para fora da comarca onde reside desacompanhado dos pais ou dos responsáveis sem expressa autorização judicial”. Assim, via de regra, os pedidos de autorização judicial para viagem são dirigidos à Vara da Infância e Juventude.
Contudo, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">Superior Tribunal de Justiça</a> já excepcionou à regra do próprio ECA em uma situação específica: quando o pedido de autorização para viajar com o filho menor está lastreado em situação de violência doméstica e familiar vivenciada pela genitora<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Sobre esse ponto, um esclarecimento deve ser pontuado.
Mesmo quando fixada a competência da Vara de Violência Doméstica, nos termos decido pelo STJ, o mérito do pedido deverá ser analisado também à luz do superior interesse da criança ou adolescente. Se, de um lado, a causa petendi é fundada na violência doméstica sofrida pela genitora e fixa a competência para tramitação do feito perante a vara especializada, do outro, o feito envolve criança ou adolescente menor de dezesseis anos, pessoas também vulneráveis, regidas por um microssistema protetivo próprio (v. g.: doutrina da proteção integral, princípios da prioridade absoluta e condição de pessoa peculiar de desenvolvimento etc.) e vítimas indiretas da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em síntese: a tramitação de autorizações para viajar perante as varas de violência doméstica deve promover, ao mesmo tempo, a especialização ao qual faz jus à genitora vítima de violência doméstica, sem se descurar do corpus iuris protetivo do Direito da Infância e Juventude, salvaguardando os interesses de todos os vulneráveis envolvidos.
<h3>2 .Execução de alimentos oriunda de obrigação fixada em medida protetiva de urgência</h3>
A Lei Maria da Penha prevê, em seu art. 22, inciso V, como uma das medidas protetivas que obrigam o agressor, a prestação de alimentos provisionais ou provisórios à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Sem adentrar nas nuances do tema “alimentos a serem pagos à mulher vítima de violência doméstica”, que ainda será explorado durante o ano de 2023 nesta coluna, um importante questionamento chegou até o Superior Tribunal de Justiça: podem os alimentos fixados em medida protetiva de urgência serem executados na própria vara especializada? O Tribunal da Cidadania respondeu afirmativamente<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Este autor concorda com o Superior Tribunal de Justiça. E não são poucos os motivos para tanto.
A fixação de alimentos possui como telos principal a subsistência digna da parte alimentanda — na hipótese em análise, mulheres em situações de violência doméstica e familiar. A urgência da fruição dos alimentos — e obviamente da sua execução em caso de inadimplência — é autoevidente a partir da própria forma em que foram fixados: no bojo de uma medida protetiva de urgência.
Assim, negar a tramitação da ação de execução de alimentos perante a vara especializada resultaria, em última ratio, na própria postergação do recebimento da obrigação alimentar, além de ir de encontro ao próprio ethos protetivo da Lei 11.340/2006, submetendo a mulher vítima de violência doméstica e familiar a nova agressão, ainda que de índole diversa, com o prolongamento de seu sofrimento, ao menos no plano psicológico<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5].</a>
<h3>3. Ação de divórcio e extinção superveniente da medida protetiva de urgência</h3>
O artigo 14-A, introduzido ao corpo da Lei Maria da Penha pela Lei 13.894/2019, confere à mulher em situação de violência doméstica e familiar a possibilidade de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável, excluída a pretensão relativa à partilha de bens, no juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente do local do fato, e, onde não houver, nas varas criminais com competência híbrida e cumulativa acerca da matéria. A mens legis, aqui, exprime a mesma linha de raciocínio comentada no prelúdio deste artigo: busca-se um(a) magistrado(a) com expertise para julgar as questões deduzidas direta ou indiretamente da violência doméstica e familiar<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Não é incomum que casais se divorciem após a prática de atos de violência doméstica e familiar. Essa situação costuma se concretizar quando a mulher em situação de violência doméstica realiza o rompimento do ciclo de violência outrora vivenciado. Geralmente, essa ruptura se materializa com a solicitação de medidas protetivas de urgência ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/judiciario">Poder Judiciário</a> (v. g.: afastamento do agressor do lar, proibição de aproximação e contato, inclusive com a fixação de distância mínima entre os ex-conviventes etc).
Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a se manifestar sobre a seguinte questão: a extinção superveniente das medidas protetivas de urgência possui o condão de modificar a competência da ação de divórcio anteriormente ajuizada perante a vara especializada? O Tribunal da Cidadania entendeu pela perpetuação da jurisdição<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, entendimento acertado na visão deste autor.
A extinção das medidas protetivas de urgência anteriormente solicitadas pela mulher vítima de violência deve ser considerada fato juridicamente irrelevante para fins de modificação da competência de ações conexas em tramitação nas varas especializadas. Essa situação, aliás, é frequentemente percebida na prática forense.
Não é incomum que, após um longo período de vigência, as medidas protetivas de urgência não se façam mais necessárias e percam sua utilidade. Isso geralmente ocorre em razão da própria quebra do ciclo de violência pela vítima, somado a um ou mais fatores diversos, como o início de um novo relacionamento pelo agressor; a mudança de comportamento do agressor após a sua frequência em grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica; o decurso do tempo somado a proibição de contato; e aproximação com a vítima anteriormente impostas pelas MPUs etc. Nesses casos, dada a característica da precariedade e a submissão à cláusula rebus sic stantibus, uma vez não sendo mais prognosticamente possível antever uma situação de perigosidade à luz do princípio da precaução, as medidas protetivas não só podem — como devem — ser revogadas<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Contudo, mesmo em tais hipóteses, é absolutamente comum que ações cíveis e penais relativas aos mesmos fatos continuem em tramitação, seja em razão do caráter de tais ações em matéria de cognição, atividade probatória e natureza dos provimentos jurisdicionais a serem fixados, ou ainda, em razão do abarrotamento de feito em tramitação perante o Poder Judiciário.
Assim, decidiu de forma acertada o STJ ao fazer prevalecer o princípio da perpetuatio jurisdicionis esculpido no artigo 43 do Código de Processo Civil Brasileiro<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, e que ganha ainda mais sentido quando contextualizado em matéria de acesso à Justiça de mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Espero que tenham gostado. Até a próxima!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 33 da Lei 11.340/2006: Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Há quem compreenda a especialização da matéria perante os juizados especiais de violência doméstica como uma solução insuficiente para a incorporação do julgamento com perspectiva de gênero no Brasil. Sobre esse ponto de vista, advertem Adriana Ramos de Mello e Lívia de Meira Lima Paiva: “Ademais, em uma perspectiva um pouco mais utópica, um sistema de justiça verdadeiramente acolhedor e protetor dos direitos das mulheres não entenderia as demandas de gênero como uma especialidade, algo que deveria ser tratado em uma vara especializada somente. Os estudos de gênero deveriam ser obrigatórios a todo e qualquer setor da administração judiciária, uma vez que a estrutura patriarcal não se revela somente no ambiente doméstico, na violência física, psicológica, moral, patrimonial ou sexual praticada contra a mulher. Nas demandas trabalhistas, por exemplo, veem-se inúmeros casos de discriminação laboral contra mulheres que não são julgados sob uma perspectiva de gênero. A solução não é ampliar indefinitivamente a competência para os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas complementar a formação dos operadores do direito em todas as áreas”. (DE MELLO, Adriana Ramos; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na Prática. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 212). Este autor compartilha do entendimento de que ampliação indefinida da competência dos JVDF não deve ser encarada como panaceia, e que a cultura do julgamento mediante a observância de uma perspectiva de gênero não pode ser concentrada apenas aos casos julgados pelas varas especializadas. Todavia, a não aplicação do protocolo com perspectiva de gênero formatado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em determinadas áreas do sistema de justiça brasileiro não parece – no humilde sentir deste autor – ter qualquer relação com a especialização promovida pela Lei 11.340/2006 ao criar os juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.550.166/DF. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/11/2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.475.006/MT. Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 14/10/2014.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.475.006/MT. Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 14/10/2014.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Há, contudo, quem sustente a inconstitucionalidade da Lei 13.894/2019. Nesse sentido, é a posição de Adriana Ramos de Mello e Lívia de Meira Lima Paiva: “O artigo 125 da Constituição Federal quando atribui aos Estados a competência para a organização da sua Justiça, estabelece: Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. A organização judiciária dos tribunais de cada Estado, ao fim, vai determinar a competência ratione materiae, visto que, na maior parte dos tribunais, a competência para julgar essas causas cíveis é da Vara de Família. Portanto, entendemos que as alterações incluídas pela Lei 13.894/2019 atentam contra norma constitucional, já que é vedado ao Poder Legislativo definir matéria de competência dos Tribunais de Justiça sob pena de afronta ao princípio da autonomia dos tribunais previsto no art. 96 da Constituição Federal”. (DE MELLO, Adriana Ramos; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na Prática. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 211)
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.496.030/MT. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 6/10/2015.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>HEEMANN, Thimotie Aragon. Princípio da precaução e medidas protetivas de urgência. JOTA, 18 abr. 2022. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-da-precaucao-e-medidas-protetivas-de-urgencia-18042022">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-da-precaucao-e-medidas-protetivas-de-urgencia-18042022</a>.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a>Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.

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A abrangência das varas especializadas na visão do Superior Tribunal de Justiça

Competência em matéria de violência doméstica contra a mulher – aspectos cíveis

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