Opinião e Análise

Júlio Camargo de Azevedo

Inaugurando uma série sobre questões atuais da tutela jurídica da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pcd">pessoa com deficiência</a>, este primeiro texto tem por objetivo trabalhar um tema contemporâneo que integra a gramática de direitos humanos desse grupo vulnerável: o capacitismo.
Derivado do “ableism” norte-americano, o capacitismo pode ser compreendido como um marcador ou dispositivo social, tendente a designar as relações desiguais de poder e os processos de subjetivação associados à subestimação das pessoas com deficiência na sociedade.
Como lembra Campbell, essa categoria estabelece uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de sujeito e corpo (padrão corporal), projetado como perfeito, típico e essencial, tornando a deficiência um estado diminuído do ser humano<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O capacitismo se molda, assim, sob uma ideologia que propala uma corponormatividade (able-bodieness)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, isto é, uma construção social que expressa a hierarquização de corpos “normais” — sem imperfeições ou falhas, tomados como adequados, perfeitos ou padrões — sobre corpos “excepcionais” ou “especiais”, considerados inferiores à luz do arquétipo de normalidade socialmente propagado.
A ideia de superioridade do corpo normal entoa, portanto, uma capitis diminutio da pessoa com deficiência, que passa a ser encarada como um sujeito diminuído frente à sociedade dominante.
Podem ser considerados produtos do capacitismo: i) a atribuição de rótulos inadequados ou pejorativos às pessoas com deficiência (“inválido”, “especial”, etc.); ii) a infantilização no diálogo ou no tratamento; iii) o questionamento da capacidade; iv) a negativa de atribuição de determinadas tarefas no ambiente de trabalho, entre outras situações discriminatórias.
Outra forma camuflada de capacitismo, cada vez mais explorada pela literatura especializada, envolve a exaltação ou a hipervalorização de tarefas e compromissos cotidianos exercidos por pessoas com deficiência (ex: parabenizar uma pessoa com deficiência por estar se divertindo em uma festa, trabalhando, cozinhando ou se exercitando).
Essa modalidade de capacitismo, ironicamente designada pela doutrina estrangeira como inspirational porn (pornô inspiracional), remete ao prazer inconsciente que as pessoas sem deficiência nutrem em exaltar as atividades habituais das pessoas com deficiência como algo inspirador para si próprias<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A prática revela uma forma específica de hipocrisia social, afinal a mesma sociedade que impõe barreiras às pessoas com deficiência é aquela que exalta ou hipervaloriza suas atividades cotidianas, muitas vezes exercidas com intensa dificuldade graças a ausência de políticas inclusivas.
Assim como o machismo e o racismo, o capacitismo expressa, portanto, relações de poder e gatilhos de hierarquização social, criando o estereótipo de pessoas “normais” em contraposição a pessoas “especiais”.
É possível cogitar ainda de um capacitismo estrutural presente na sociedade brasileira, que opera por meio de regras, práticas, ações e discursos, manifestados em meio às instituições, serviços e equipamentos sociais, favorecendo ambientes de discriminação burocrática contra às pessoas com deficiência.
É o que ocorre, por exemplo, com uma empresa ou órgão público que desobedece estruturalmente políticas de cotas fixadas em favor de pessoas com deficiência ou reserva tarefas laborais menos importantes a este segmento de maneira sistemática.
A partir dos elementos conceituais antes trabalhados, importante que os profissionais jurídicos estejam atentos a terminologias que não atendem à gramática dos direitos humanos das pessoas com deficiência, podendo revelar discursos capacitistas.
Inadequado, assim, a utilização da expressão portador de deficiência para se referir às pessoas com deficiência, como fizeram no passado a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm">Lei 7.853/1989</a> (que dispõe sobre o apoio e a integração social das pessoas com deficiência) e a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm">Lei 10.098/2000</a> (que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade), além do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm">Decreto nº 3.298/1999</a> (que institui a política nacional para a integração da pessoa com deficiência).
A partir da incorporação da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pelo Estado brasileiro, bem como da promulgação da Lei Brasileira de Inclusão (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm">Lei 13.146/2015</a>), a deficiência deixou de ser encarada como uma enfermidade portada pelo indivíduo, alcançando o status de impedimento, que deve ser compreendido à luz da dinâmica relação pessoa com deficiência vs. ambiente.
Logo, a pessoa não porta a deficiência, como se ela fosse uma patologia ou a representação individual de uma disfunção biológica. A deficiência existe — e se torna um problema — na medida em que as barreiras e os arranjos sociais contribuem para a limitação funcional do indivíduo.
Também é incorreto se valer das expressões “pessoa especial”, “excepcional” ou “portadora de necessidades especiais” para designar as pessoas com deficiência. Essas terminologias reforçam unicamente o aspecto diferencial negativo da deficiência, o que não se coaduna com a imperativa exigência de reconhecimento e inclusão social desse segmento populacional.
Igualmente, a expressão “retardado”, cuja etimologia remete a algo que “opera com retardamento; movendo-se ou agindo vagarosamente”, não passa pela filtragem convencional dos direitos humanos, tendo em vista que o seu conteúdo revela uma adjetivação inferiorizante, geralmente atribuída às pessoas com deficiência mental ou intelectual. O mesmo se diga em relação às denominações “inválido” e “incapaz”.
Sobre este último ponto, não se pode olvidar que a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência combate toda discriminação por motivo de deficiência, a qual é definida como “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro” (art. 2º).
Assim, é a partir da não utilização de determinadas expressões e terminologias, bem como da aplicação de conceitos empregados pelo legislador internacional e nacional, que a gramática dos direitos humanos das pessoas com deficiência é construída, instrumento de vital importância para a nomeação de práticas discriminatórias e reversão de discursos excludentes atrelados a esse grupo vulnerável.
No próximo texto, abordaremos a temática das barreiras, conceito-chave para a definição de deficiência e pressuposto da ideia de acessibilidade. Vejo vocês em breve!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Ableism - a network of beliefs, processes and practices that produce a particular kind of self and body (the corporeal standard) that is projected as the perfect, species-typical and therefore essential and fully human. Disability, then, is cast as a diminished state of being human”. Campbell, Fiona Kumari. Inciting legal fictions: Disability date with ontology and the ableist body of the law. Griffith Law Review, 10, 2001, p. 44.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> YOUNG, Stella. I’m not your inspiration, thank you very much. Ted talks, jun/2014.  Disponível em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=8K9Gg164Bsw">https://www.youtube.com/watch?v=8K9Gg164Bsw</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O termo ficou famoso após ser utilizado pela ativista Stella Young. Cf. YOUNG, Stella. I’m not your inspiration, thank you very much. Ted talks, jun/2014.  Disponível em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=8K9Gg164Bsw">https://www.youtube.com/watch?v=8K9Gg164Bsw</a>

capacitismo

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JOTA

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