Mariana Branco
Foi repórter do JOTA. Jornalista formada pela Universidade de Brasília (UnB). Foi repórter do Correio Braziliense e da Agência Brasil, vinculada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), na área de economia.
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Duas decisões proferidas em janeiro pela Seção Judiciária de São Paulo permitem que empresas liberem mercadorias sem a intermediação de despachantes aduaneiros. As sentenças, da 24ª e da 11ª Vara Cível Federal, autorizam a atuação direta das empresas Operadoras de Transporte Multimodal (OTMs) e das Comissárias de Despacho no desembaraço alfandegário.
Para advogados, as decisões são importantes porque mudam o cenário do comércio exterior. Uma possível consequência seria o barateamento dos serviços sem a necessidade de as empresas terem despachantes em seus quadros. A não obrigatoriedade do uso de despachantes também é prevista no Acordo de Facilitação de Comércio (AFC), do qual o Brasil é signatário, como forma de conferir maior agilidade e desburocratização da circulação de mercadorias entre os países.
Especialistas apontam, entretanto, a necessidade de regulação da atuação das empresas sem os despachantes aduaneiros, estabelecendo, por exemplo, regras, sanções e como se dará a fiscalização.
As OTMs são empresas que transportam cargas usando duas ou mais modalidades de transporte mediante um único contrato, com registro junto à Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT). As Comissárias de Despacho, por sua vez, são responsáveis por facilitar os trâmites e documentações que envolvem exportações e importações.
Já o despachante é o profissional que se encarrega de apresentar na alfândega a documentação estabelecida nas normas tributárias relativas ao despacho aduaneiro de importação ou exportação.
As decisões judiciais foram tomadas em ações movidas pelo Sindicato dos Comissários de Despacho, Agentes de Carga e Logística do Estado de São Paulo (Sindicomis). A ação relativa às OTMs (processo 5002054-61.2020.4.03.6100) foi proferida no âmbito de um mandado de segurança coletivo. Já a relacionada às Comissárias de Despacho (processo 0006009-02.1994.4.03.6100) se deu em uma ação para cumprimento de decisão transitada em julgado do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF3).
O acórdão, proferido em 1994, permitiu a atuação das Comissárias no desembaraço aduaneiro. A juíza que julgou a ação recente entendeu que a Receita Federal não cumpriu a decisão anterior. Para o cumprimento, a magistrada determina a inclusão das empresas ao Siscomex, sistema online do governo federal para operações de comércio exterior.
As duas decisões determinam que a Receita Federal viabilize o registro das OTMs e das Comissárias de Despacho no Siscomex. Atualmente, os campos no registro do sistema admitem a inserção de CPF, mas não de CNPJ.
Na decisão que se refere às OTMs, o juiz Victorio Giuzio Neto afirma que a atuação das OTMs na representação de importadores e exportadores está prevista na lei 9.611/1998. Observa, ainda, que o Brasil é signatário do Acordo de Facilitação de Comércio, incorporado ao ordenamento jurídico pelo Decreto 9.326/2018, que busca justamente eliminar o emprego obrigatório de despachantes aduaneiros.
O magistrado afasta o argumento da Receita de que não seria possível a inclusão das OTMs no Siscomex por “limitação orçamentária”. ”A justificativa da Receita Federal de apenas uma ‘limitação orçamentária’ impedir que se faculte o acesso aos OTMs, especialmente quando se leva em conta o período em que existente a previsão legal, já regulamentada, não se sustenta (...) e revela, ao contrário, uma obstinada preservação de ‘status quo’ limitando a atividade de desembaraço alfandegário para os despachantes aduaneiros”.
Ele conclui estabelecendo prazo de 180 dias para alteração e adaptação dos sistemas informatizados da Receita para permitir a habilitação das OTMs.
Já na decisão relativa às Comissárias de Despacho, a juíza Regilena Emy Fukui Bolognese deu efeitos infringentes a embargos de declaração em uma ação para cumprimento de uma decisão de 1994 do TRF3. Ela considerou que a decisão foi descumprida, uma vez que a Receita Federal permitiu a atuação das Comissárias de Despacho por meio das pessoas físicas de seus dirigentes, mas não viabilizou sua inclusão no Siscomex. A juíza observou que a atuação das Comissárias de Despacho faz parte do ordenamento jurídico, uma vez que está prevista no Decreto-Lei 366/1968, que não foi revogado.
A magistrada deu um prazo de 30 dias para que a Receita encaminhe o pedido e informe um prazo para criação um perfil específico para as empresas no Siscomex, "ainda que disponibilizado apenas para a 8ª Região Fiscal, área à qual se refere a ação original". Estabeleceu, ainda, que enquanto não for criado o perfil, a Receita Federal “deverá dar solução provisória para que as comissárias de despacho possam exercer suas atividades diretamente, sem interposição de intermediários”.
A reportagem entrou em contato com a Receita Federal, mas a assessoria de imprensa informou que o órgão não comenta decisões judiciais
Para Renata Bardella, sócia de Tributos Indiretos e Legislação Aduaneira do Schneider Pugliese, com as decisões os serviços de comércio exterior podem se tornar mais competitivos em termos de preço, com um único responsável por toda a transação. “Eu acho que [as decisões] estão muito em linha com o que se busca em termos de simplificação, de uma maior eficiência do comércio exterior”.
Na avaliação da advogada, nos últimos anos não houve resistência da Receita Federal à inclusão de OTMS e Comissárias de Despacho no processo de desembaraço, mas, sim, ausência de interesse.
"A questão não é nova. A questão é ter interesse em fazer isso, ou se outros temas estavam sendo priorizados [pela Receita]. O Siscomex é bastante engessado. Você não consegue, fora de determinados campos, trazer uma informação. Essas travas acabam inviabilizando a participação dos OTMs no despacho. São questões sistêmicas que têm um desdobramento prático para exportadores e importadores", comenta.
No entanto, Valter Tremarin Jr, sócio da área Tributária e Aduaneira do Souto Corrêa e integrante da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/RS, vê dificuldades para que a Receita atenda à determinação judicial. "O Siscomex é um sistema, e qualquer atualização de sistema demanda uma série de ajustes que exigem dinheiro. Qualquer alteração tem um custo significativo", avalia.
Ele aponta, ainda, a necessidade de regulação para que empresas possam atuar sem despachantes aduaneiros. ”As leis que são indicadas nos dois processos, uma de 1998 e outra de 1968, são objetivas ao dizer que OTMs e Comissárias podem ser representantes de exportadores e importadores. Mas precisaria ter uma lei trazendo clareza a isso, com uma regulamentação sobre como essas empresas deveriam atuar, que tipo de qualificação é necessária”, observa.
A demanda das OTMs e Comissárias de Despacho para representar importadores e exportadores tem cerca de 30 anos. “[A atuação direta] contribui principalmente para a desburocratização. É muito mais fácil ter uma pessoa jurídica constituída garantindo uma operação do que um profissional pessoa física [despachante aduaneiro]. Era uma reivindicação do próprio mercado”, afirma Luiz Ramos, presidente do Sindicomis.
Segundo Ramos, com as decisões recentes, o Sindicomis pretende oferecer cursos para preparar as OTMs e Comissárias de Despacho para a atuação no desembaraço alfandegário. Para ele, a possibilidade de atuação direta das empresas, sem necessidade de subcontratação do despachante aduaneiro, tornará o comércio exterior mais ágil.
No entanto, Rogério Chebabi, diretor jurídico da Associação dos Despachantes Aduaneiros do Brasil (Adab), afirma que a dispensa dos despachantes aduaneiros traz insegurança jurídica às empresas que contratarem o serviço de desembaraço alfandegário.
"O despachante pode ser punido por má gestão pela Receita. Quem vai punir a OTM? Quem vai punir a Comissária de Despacho? Ninguém. Não tem legislação que permita fazer isso. Por isso, o despachante é mais seguro", argumenta Chebabi.
Segundo ele, a Adab estuda de que forma atuar em relação à decisão na ação de cumprimento de sentença referente às Comissárias de Despacho. "A gente está estudando uma maneira de combater isso, talvez com uma ação nova. Estamos estudando a decisão de 1994 para ver se a legislação em que se baseou mudou", afirma. Com relação à decisão sobre as OTMs, a Adab pretende ingressar no processo como terceiro prejudicado.