Mariana Muniz

“Todos nós sabemos que o aborto provocado é um fato da vida. Os ministros e ministras sabem disso. Os números e as histórias de sofrimento podem ser importantes para dar fundamento a uma resposta judicial, que queira se distanciar da argumentação de um direito absoluto da vida”.
É a avaliação que faz a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko Volkmer de Castilho, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), sobre a questão que deverá ser enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
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Para ela, o perfil cada vez mais conservador do Congresso – ainda mais hoje do que na Constituinte – não deve levar a uma reação “radical”, que vede inclusive as hipóteses legais de aborto e a hipótese jurisprudencial na gestação de feto anencéfalo.  Mas acredita que uma legislação mais proibitiva provocaria uma articulação das mulheres “maior do que já estamos vendo”, levando a questão novamente ao Supremo.
O argumento de que a descriminalização do aborto não é assunto para o Supremo, acredita Wiecko, é uma questão preliminar que será superada, pois cortes constitucionais de países importantes já deliberaram sobre o tema.
“O tema é polêmico, é político por natureza, pois faz tremer as bases do patriarcado. Talvez precisemos dessa extrema politização para avançar nas pautas da igualdade em nosso País”, afirmou a subprocuradora-geral sobre a possibilidade de julgar o caso em ano eleitoral.
Leia a conversa com a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko, atualmente coordenadora do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça do Conselho Superior do Ministério Público, na série de entrevistas sobre a ADPF 442.
O Supremo teria, no cenário atual, força suficiente para decidir uma questão polêmica como esta sem risco de ver o Congresso alterar a legislação para impedir o aborto em qualquer circunstância?
Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1986-1987, houve o risco de ser constitucionalizada a proteção da vida desde a concepção, de modo a permitir a criminalização total da interrupção da gravidez, mas o movimento de mulheres, articulado no “lobby do batom”, conseguiu barrar esse intento. Funcionou o argumento de que era matéria de lei infraconstitucional e que já havia uma regulamentação.  O Congresso atual tem um perfil mais conservador que o da Constituinte, e é bastante provável que esse perfil se acentue. Mesmo assim, não acredito em uma reação radical ao Supremo, que vede inclusive as hipóteses legais de aborto e a hipótese jurisprudencial na gestação de feto anencéfalo.  Uma legislação mais proibitiva provocaria uma articulação das mulheres maior do que já estamos vendo e seria submetida novamente ao Supremo.
Pelas experiências anteriores e pelas pesquisas já publicadas sobre o tribunal, não espera-se para o curto prazo uma decisão do Supremo. Este é um processo, na sua perspectiva, que será julgado em quanto tempo? Curto prazo? Médio prazo?
Em curto prazo, que seria até o início do próximo ano, certamente não. Será de médio a longo prazo, a depender da percepção que o tribunal tiver sobre a repercussão do julgamento. O tribunal e, em especial, quem estiver na presidência, vai ponderar os prós e contras de uma decisão que pode afetar a imagem do STF na sociedade e na grande mídia e, também, as relações com os outros Poderes.
A ministra Rosa Weber disse, na abertura da audiência, que esta é uma questão judicializada e que será decidida pelo Supremo. Mas esta é de fato uma questão já dada? Ou pode-se argumentar no Supremo que este não é assunto para uma Corte Constitucional? 
A questão foi objeto de muitas falas na audiência pública, a favor e contra. É uma questão preliminar que será debatida e decidida pelo Pleno do Tribunal. Creio que será superada, tendo em vista os precedentes das ações sobre o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo como família e sobre a antecipação terapêutica da gestação de feto anencéfalo. E também porque cortes constitucionais de países importantes já deliberaram sobre o tema.
De que forma podemos mapear o plenário do Supremo com base no julgamento das pesquisas com células-tronco?
A composição do Supremo mudou desde aquele julgamento. E irá mudar até o julgamento da ADPF 442. Mas, observo que, no julgamento da antecipação terapêutica da gestação de fetos anencéfalos, a perspectiva do direito de autodeterminação da mulher sobre a gravidez só foi plenamente incorporada pelos Ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Celso de Mello, que ainda fazem parte do Supremo. Os demais, que julgaram a arguição procedente, se sensibilizaram, sobretudo, com a violação ao direito à saúde física e mental da mulher, porque convencidos previamente da inviabilidade de sobrevida extrauterina do anencéfalo. 
No primeiro dia das audiências, muito se falou das estatísticas de mortes em razão da precarização dos abortos hoje. De que forma os números podem interferir na decisão do STF?
Foram apresentadas estatísticas não só das mortes, mas também da criminalização das mulheres pela prática de aborto, mostrando o funcionamento seletivo e cruel do sistema de justiça criminal em relação às mulheres.
São pesquisas sérias, bem construídas metodologicamente. Independentemente delas todos nós sabemos que o aborto provocado é um fato da vida. Os  ministros sabem disso. Os números e as histórias de sofrimento podem ser importantes para dar fundamento a uma resposta judicial, que queira se distanciar da argumentação de um direito absoluto da vida.
Julgar um caso como este em ano eleitoral seria um risco de extrema politização do tema?
O tema é polêmico, é político por natureza, pois faz tremer as bases do patriarcado. Talvez precisemos dessa extrema politização para avançar nas pautas da igualdade em nosso país.
Aborto é um tema discutido há anos e que comporta decisões muito marcadas. Qual o impacto de uma audiência pública num tema como este?
Foi uma audiência pública muito concorrida presencialmente e transmitida ao vivo. A gravação do que aconteceu e do que foi dito está permanentemente acessível ao público. As intervenções, principalmente aquelas em favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação, foram qualificadas, abordaram aspectos diversos, trouxeram dados relevantes e pouco explorados até agora no debate público.
Mostraram como a decisão da mulher de interromper a gravidez nesse prazo é compatível com a defesa da vida e, mesmo que seja considerada reprovável, a criminalização não é a resposta útil e adequada.  No meio acadêmico será um tema de estudos e debates, criando um ambiente favorável à aceitação da descriminalização.
Reva Siegel, professora de Direito em Yale e estudiosa da constitucionalização do direito ao aborto, destaca que, na perspectiva da pesquisa constitucional comparada, quando o aborto chega às cortes constitucionais, já está consolidada como um conflito constitucional no debate político. Como você analisa este argumento?
No âmbito acadêmico e do movimento feminista brasileiro diria que sim, mas em outros âmbitos não me parece tão evidente. Entretanto, há um movimento global pelo reconhecimento do direito da mulher a decidir sobre seu corpo, que ganha densidade também no Brasil, de modo que uma definição pelo STF vai se tornar inadiável.

Ela Wiecko

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JOTA

Para subprocuradora-geral da República Ela Wiecko, movimento pelo reconhecimento do direito da mulher é global

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'Definição pelo STF sobre descriminalização do aborto vai se tornar inadiável'

A subprocuradoora-geral da República Ela Wiecko, professora da Universidade de Brasília, encerra a série sobre a ADPF 442, que discute aborto no Supremo