Opinião e Análise

Juliana Rodrigues Malafaia

Rita Machado de Oliveira

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta semana, por unanimidade, pela <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/tese-da-legitima-defesa-da-honra-e-inconstitucional-decide-stf-de-forma-unanime-01082023">inconstitucionalidade do uso da tese da legítima defesa da honra</a> em casos de feminicídio ou de agressão contra mulheres. Sob pena de nulidade do ato e do julgamento, a tese não poderá mais ser usada nas fases pré-processual ou processual, tampouco durante o julgamento perante o Tribunal do Júri.
Fundada no pressuposto da superioridade masculina, a ultrapassada tese era utilizada para justificar o comportamento do acusado sob o argumento de que o assassinato ou a agressão seriam aceitáveis quando o comportamento anterior da vítima supostamente ferisse a honra do agressor. Uma tese que, sem dúvidas, fomentava a discriminação e o ódio ao gênero feminino, contribuindo para a perpetuação da cultura de violência contra a mulher.
Por contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação à discriminação, da proteção à vida e da igualdade de gênero, seu uso foi – corretamente, diga-se de passagem – proibido. De acordo com a decisão, defesa, acusação, autoridade policial e juízo não podem utilizar, direta ou indiretamente, qualquer argumento que induza à tese.
Dando destaque aos votos das mulheres, para a ministra Cármen Lúcia a tese da legítima defesa da honra admite como aceitável que se mate mulheres sem que os agressores sejam punidos. Já a ministra Rosa Weber afirmou que a tese da legítima defesa da honra traduz expressão de uma sociedade “patriarcal, arcaica e autoritária”.
Weber afirmou, ainda, que “por meio desse odioso discurso de justificação, a mulher vítima de feminicídio sofre sucessivas violências. Primeiro, contra o seu corpo físico, pondo fim a sua vida. Em seguida, com o assassinato de sua reputação e ultraje à sua memória, reduzida a sua história pessoal ao estigma da mulher indecente e traidora, como se toda a sua existência somente se justificasse em razão de seus compromissos matrimoniais ou amorosos”.
O acerto da decisão rompe com costumes arcaicos e medievais, fundados no patriarcalismo e na superioridade masculina. No Brasil Colônia, homens tinham poder sobre o corpo e a vida da mulher e havia norma que expressamente conferia ao homem que tivesse sua honra lesada o direito subjetivo de agir com violência contra a mulher infiel causadora da lesão.
Conforme previsto no título XXXVIII do Quinto Livro do Código Philipino<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assi a ella”. Após mais de 200 anos de vigência, essa legislação deu lugar ao Código Criminal do Império<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que, apesar de não dispor acerca do direito de matar a mulher em defesa da honra, logo foi revogado pelo Código Penal de 1890, retomando a legítima defesa da honra sob o formato da excludente de ilicitude da completa privação de sentidos e inteligência no ato de cometer o crime<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em conferência proferida na Faculdade de Direito de São Paulo, Nélson Hungria<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, que há muito denunciava o inacreditável direito de matar em defesa da honra, tratou da vigência do Código Penal de 1890 como o “período áureo do passionalismo sanguinário, que andava à solta, licenciado sob a estapafúrdia rubrica de ‘privação dos sentidos e da inteligência’<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
O Código Penal de 1940, marcado pela contribuição de Hungria, membro da comissão revisora, pôs fim à excludente da privação dos sentidos e da inteligência ao dispor no art. 24, inciso I (atual art. 28, inciso I) que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal.
Fechadas as portas da legislação para a legítima defesa da honra no contexto dos crimes passionais, parecia que o Brasil finalmente romperia com o que foi definido pelo doutrinador como o período áureo do passionalismo sanguinário. No entanto, não fossem as severas marcas deixadas pela cultura do patriarcado e pelo machismo estrutural no âmbito social, a tese continuou sendo defendida.
O machismo estrutural não é termo vão. Significa dizer que historicamente a mulher é oprimida em todos os espaços sociais – dentro de casa, no ambiente profissional e, sobretudo, nas relações afetivas. A violência contra a mulher é constantemente alimentada por uma cultura organizada em torno de regras e costumes de domínio patriarcal propagada por gerações sentenciando mulheres à posição de submissão e inferioridade<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Aliás, contra números não há argumentos. Uma mulher é violentada a cada quatro minutos no Brasil<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Em 2022, quase 1.500 mulheres foram vítimas de feminicídio no país, um aumento de 5% em relação ao ano anterior e que vai na contramão dos assassinatos sem recorte de gênero, que tiveram queda de 1%.
O que pode uma mulher fazer para “merecer” morrer? Em qual contexto fático a vida da mulher é menos valiosa que a honra do homem? Atentar contra a vida de uma mulher é evidentemente desproporcional à conduta de lesionar a honra de um homem.
Numa sociedade machista, sexista e misógina, permitir que se defenda a honra do homem não só estimula e perpetua a violência como legitima a eliminação da vida de mulheres. Assim, a decisão constitui um passo importante no enfrentamento ao machismo e à objetificação da mulher.
O combate à violência contra a mulher não tolera condutas a discursos discriminatórios e é dever do Estado criar mecanismos para coibir o feminicídio e não conivência com a violência, devendo atuar de forma ativa na prevenção e na repressão de toda e qualquer prática que enalteça valores constituídos como masculinos em detrimento do feminino.
Citando Desmond Tutu, “se você fica neutro, em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4] </a>https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&amp;pagina=NelsonHungriaPrincipal
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5] </a>https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/175939/000463224.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> DE OLIVEIRA, BRUNA NATALI RODRIGUES. FEMINICÍDIO: análise sociojurídica sobre o machismo estrutural e sua influência na legislação brasileira. Disponível em: <a href="https://app.uff.br/riuff/handle/1/25022%20">https://app.uff.br/riuff/handle/1/25022 </a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> https://www.estadao.com.br/brasil/a-cada-4-minutos--1-mulher-da-entrada-no-sus-vitima-de-violencia-sexual-e-fisica/

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JOTA

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