Desde que escrevemos o artigo “Como ficam as sentenças transitadas em julgado antes da nova Lei de Improbidade?”[1], muitas discussões aconteceram e o Supremo, enfim, começou a decidir, no ARE nº 843.989 (Tema nº 1.199 da repercussão geral), sobre a aplicação retroativa da Lei 14.230/2021, para exigir a presença do dolo para a configuração das condutas previstas no artigo 10 da Lei 8.429/1992 e para a aplicação do novo prazo prescricional.
O voto do relator[2], em síntese, permitiu a retroatividade das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 – no que se refere ao elemento subjetivo – somente para atingir os processos ainda não transitados em julgado. Definiu, ainda, que não seria aplicável retroativamente o novo prazo prescricional.
O ministro André Mendonça divergiu parcialmente [3]. Entendeu que as alterações seriam aplicáveis também aos processos transitados em julgado, de modo que a sentença poderia ser rescindida por ação rescisória, na forma do artigo 525, §12 a §15 do Código de Processo Civil (CPC). Os novos prazos de prescrição intercorrente e geral seriam aplicáveis imediatamente aos processos em curso e aos fatos ainda não processados.
Este artigo busca chamar a atenção para alguns aspectos relevantes que não foram observados nas sustentações orais, nem nos votos proferidos até o momento. Logo de início, é importante verificar que o artigo 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos[4], incorporado com status supralegal, possui redação bastante parecida com o artigo 5º, XL, CF e prevê expressamente a aplicação retroativa da lei mais benéfica. Mas como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) interpreta o dispositivo? Aplicam-se também as garantias penais ao direito sancionatório?
A resposta é positiva. Em, ao menos, três oportunidades, a Corte IDH já afirmou a aplicação dos princípios e das garantias do direito penal ao direito sancionatório. O argumento é simples, mas poderoso: o poder punitivo do Estado não é só exercido por meio do direito penal, mas também pelo direito sancionatório. Como afirmado pela Corte, “em um Estado de Direito, os princípios da legalidade e irretroatividade [devem] nortear as ações de todos os órgãos do Estado, em suas respectivas competências, nomeadamente no que respeita ao exercício do poder punitivo, que se manifesta, com força máxima, como uma das mais graves e intensas funções do Estado contra os seres humanos: a repressão”[5].
De fato, não faria sentido que o poder punitivo fosse limitado pelas garantias penais, mas houvesse ampla e irrestrita liberdade da atuação estatal, para punir o indivíduo em outras searas, como a do direito administrativo. O caso é ainda mais grave quando se leva em conta que as sanções da improbidade administrativa são coincidentes – e podem ser até mais graves, dependendo do crime e dos antecedentes – do que aquelas previstas pelo direito penal (e.g. multa, suspensão dos direitos políticos, perda do cargo ou da função). Assim, a Corte IDH entende acertadamente que as garantias do cidadão se aplicam contra o exercício do poder punitivo em sentido amplo, o que abarca a retroatividade da norma mais benéfica também no âmbito do direito administrativo sancionatório[6].
Sem embargo, não se viu, nos votos proferidos até o momento, nenhuma menção aos precedentes da Corte IDH, nem ao menos como ônus argumentativo. Mesmo que se entenda que as decisões proferidas por Cortes Internacionais não vinculam o Estado brasileiro, o país, ao aceitar a jurisdição do tribunal internacional, deve, ao menos, levar em conta, como um ônus argumentativo, a jurisprudência e os precedentes internacionais na hora de decidir[7].
Haverá também ofensa ao princípio da isonomia. Se o Estado compreende que determinada conduta não é mais grave a ponto de legitimar o emprego do seu poder punitivo, para cercear liberdades fundamentais dos indivíduos, não faz sentido que uns fiquem elegíveis e outros não com base no fato de o ato ter sido praticado antes ou depois da vigência da Lei 14.230/2021.
A coisa julgada, o ato jurídico perfeito e a segurança jurídica – um dos argumentos utilizados para fundamentar a não aplicação retroativa da norma – são direitos fundamentais do indivíduo que visam a garantir uma esfera de inviolabilidade oponível ao Estado e aos particulares. Ao não reconhecer a retroatividade da norma mais benéfica amparado nesses fundamentos, o Supremo legitima o abuso do poder punitivo estatal para a repressão. Trata-se de postura utilitarista, que enxerga o Estado como sujeito de direitos oponíveis ao indivíduo. Inverte-se a lógica kantiana clássica dos direitos humanos como garantia da dignidade humana – em seu valor intrínseco[8] – contra o arbítrio estatal, para perseguir uma meta coletiva de combate à corrupção.
Também desconsidera que corrupção é um conceito político. Os elementos do tipo penal e dos atos de improbidade são definidos pelo Legislativo, naquilo que Alexy chama de discricionariedade epistêmica ante a moldura delineada pela Constituição[9]. Isso significa que o legislador tem, dentro dos parâmetros do artigo 37, §4º, CF, liberdade de conformação, para definir os atos de improbidade administrativa. Contudo, a Corte Constitucional não pode substituir a valoração fático-jurídica do Legislativo sobre a sua própria, sob pena de ofensa à separação de poderes. O próprio artigo 37, §4º, CF reserva ao Legislativo a definição do fato típico e a gradação das sanções (“na forma e gradação previstas em lei”).
Eventual decisão pela irretroatividade possui reflexos igualmente graves em outras esferas do direito administrativo sancionatório. Não custa lembrar que o procedimento para apuração de faltas disciplinares em estabelecimento prisional, previsto na Lei 7.210/1984, tem natureza de processo administrativo. Caso sobrevenha lei mais favorável na execução penal, o STF terá que reconhecer que a norma não retroagirá. Na verdade, isso contrariaria a própria jurisprudência da Corte, que reconheceu a possibilidade de aplicação retroativa da Lei 12.433/2011, que limitou a perda do tempo remido em 1/3, em caso de falta grave – antes o juiz declarava a perda total do direito[10].
Além da inobservância da sistemática do Direito, a decisão abre caminho para a violação dos direitos de diversos políticos, que não poderão se candidatar por terem sido condenados por uma conduta que não configura mais improbidade. Não custa lembrar que, recentemente, o Brasil foi condenado pelo Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[11], por violar os direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em virtude do indeferimento, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do seu registro de candidatura na eleição de 2018. Na época, só o ministro Luiz Edson Fachin votou pelo deferimento do registro, com fundamento na medida cautelar proferida pelo Comitê.
O Brasil corre risco de nova condenação nas instâncias internacionais por desrespeitar a jurisprudência da Corte IDH e alterar o pleito de 2022. Se o julgamento se encaminhar para a não aplicação das garantias do indivíduo ao direito administrativo sancionatório, haverá a violação dos direitos políticos de diversos candidatos que praticaram atos que não são mais considerados graves a ponto de serem punidos com as restritivas sanções da Lei 8.429/1992.
A decisão pode, ainda, provocar um novo embate com o Poder Legislativo, gerando, como backlash, a promulgação de uma emenda constitucional que preveja a aplicabilidade das garantias penais ao direito sancionatório, gerando novo e desnecessário atrito com o parlamento.
[1] Link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-ficam-sentencas-transitadas-em-julgado-antes-nova-lei-de-improbidade-24012022
[2] Link: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE843989LIA.pdf>. Acesso em 12 ago. 2022.
[3] Link: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/_votoMin.ALMfinal.pdf>. Acesso em 12 ago. 2022.
[4] Artigo 9º. Princípio da Legalidade e da Retroatividade. Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.
[5] Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Baena Ricardo y otros v. Panamá, parágrafo 105 e ss, São José da Costa Rica, 2 de fevereiro de 2001. Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_esp.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2022.
[6] Cf. Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Baena Ricardo y otros v. Panamá, parágrafo 105 e ss, São José da Costa Rica, 2 de fevereiro de 2001. Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_72_esp.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2022; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH), Caso del Tribunal Constitucional v. Perú, parágrafo 68 e ss., São José da Costa Rica, 31 de janeiro de 2001. Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_71_esp.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2022; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (IDH). Caso Maldonado Ordoñez v. Guatemala, parágrafo 89, São José da Costa Rica, 3 de maio de 2001. Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_311_esp.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2022.
[7] Sobre o tema, ver SARMENTO, Daniel. Direito constitucional e direito internacional: diálogos e tensões. In: PIOVESAN, Flávia; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Diálogos jurisdicionais e direitos humanos. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016. p. 93-139.
[8] Sobre o valor intrínseco como elemento da dignidade humana, cf. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 76-81; SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 38-39; VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 67-68; e MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 117.
[9] Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 575-627.
[10] Dentre muitos, cf. STF, HC 110.040, Segunda Turma, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe em 29/11/2011; STF, HC 107.862, Segunda Turma, Relator Ministro Joaquim Barbosa, DJe em 03/08/2012; STF, RHC 115.981, Primeira Turma, Relatora Ministra Rosa Weber, DJe em 30/04/2013.
[11] COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DO PACTO DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. Caso Luiz Inácio Lula da Silva v. Brasil. Comunicação nº 2.841/2016. 134ª sessão, Geneva, 2022, julgado em 27 mar. 2022. Disponível em < https://digitallibrary.un.org/record/3975431>. Acesso em 12 ago. 2022.