Alex Vasconcellos Prisco

Daniel Brandão

Concebida por determinação constitucional (art. 173, §1º), a Lei nº 13.303/2016, alcunhada de Lei das Estatais, é o estatuto jurídico ordenador da empresa pública e da sociedade de economia mista, com normas especiais sobre licitações e contratos celebrados por essas entidades em nível federal, estadual, municipal e distrital.
A legislação veio à lume num contexto socioeconômico extremamente conturbado do país, a reboque do desbaratamento, pela Operação Lava Jato, de uma série de escândalos gigantescos de corrupção envolvendo estatais e empresas privadas de setores da infraestrutura nacional. E, no afã de mitigar ao máximo os riscos da repetição de novos ilícitos, a Lei das Estatais instituiu severos mecanismos normativos para detecção e punição administrativa de fraudes e irregularidades, os quais merecem atenção, pois se não forem aplicados com cuidado e parcimônia podem se revelar disfuncionais, ao afetar negativamente o direito à ampla participação das empresas nos procedimentos licitatórios e contratos, em prejuízo do princípio da vantajosidade e da eficiência das contratações públicas.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
É o caso da norma sancionadora do art. 38, incisos IV, V, VI, VII e VIII, onde estão previstas hipóteses de impedimento da empresa de participar de licitação ou de permanecer contratada pela estatal, em razão da simples presença de vínculos societários com outras empresas que tiverem sido penalizadas perante a mesma entidade sancionadora. Pelo texto da Lei das Estatais, a sociedade licitante ou contratada ficará automaticamente impedida quando for constatado que é ou tenha sido constituída por sócio ou administrador de empresa anteriormente suspensa, impedida ou declarada inidônea. Ou seja, a pena ultrapassa a pessoa da sociedade apenada para atingir outras sociedades, tão só por possuírem sócios ou administradores em comum. Gera, ainda, um pernicioso efeito dominó no grupo econômico, conquanto o impedimento de uma acarretará o das demais.
<blockquote class="jota-article__eye">A medida sancionatória, entretanto, é temerária, uma vez que implica verdadeira desconsideração objetiva da personalidade jurídica.</blockquote>
Com efeito, a aplicação sensata e correta desse ponto do art. 38 da Lei das Estatais impõe uma interpretação sistemática, em consonância funcional com outros regramentos que resguardam o princípio da separação entre a pessoa jurídica e seus sócios e administradores. Assim é o art. 50 do Código Civil, agora normativamente fortificado pela Lei nº 13.874/2019 (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-da-liberdade-economica-dois-anos-23072021">Lei da Liberdade Econômica</a>) e que, para fins de excepcional afastamento da autonomia patrimonial das empresas, não se contenta apenas com a existência de liames societários formais, exigindo prova segura do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo concreto desvio de finalidade ou pela efetiva confusão patrimonial.
O § 4º da norma, acrescido pela Lei de Liberdade Econômica, foi claro ao dispor que “a mera existência de grupo econômico”, sem a presença dos requisitos do caput, "não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”.
Portanto, se afigura equivocado e abusivo aplicar de maneira literal e isolada a norma sancionatória do art. 38, incisos IV, V, VI, VII e VIII, da Lei nº 13.303/2016, que deve dialogar sistematicamente com outras fontes normativas do arcabouço jurídico, a fim de que não haja disfuncionalidades nas licitações e contratos na órbita das empresas estatais. A própria Lei nº 13.303/2016, no art. 68, fornece essa abertura sistêmica, ao prever que os contratos celebrados com as estatais também “regulam-se pelos preceitos de direito privado”.
Cumpre ressaltar, ademais, que compete à entidade sancionadora o ônus de provar adequadamente, por intermédio de processo administrativo em que se garanta o contraditório e a ampla defesa, o abuso ou fraude na atuação da empresa formada por sócios ou administradores em comum com empresa sancionada. A imposição desse fardo probatório à estatal deriva dos arts. 2º, II e 3º, V, da Lei da Liberdade Econômica, que declaram ser direito essencial de qualquer pessoa jurídica privada gozar da “presunção de boa-fé” perante o Poder Público e nos atos praticados no exercício da atividade econômica.
Logo, na ótica do sistema legal, licitantes e contratantes do mesmo grupo empresarial devem em princípio ser consideradas, pela entidade sancionadora, como empresas idôneas, autônomas e distintas entre si, com independência administrativa, técnica, financeira, contábil e jurídica. Cabe à empresa pública ou sociedade de economia mista demonstrar o contrário, isto é, que as licitantes ou contratadas são veículos de improbidades ou abusos para se esquivar de penas já aplicadas pela própria entidade.
É equivocado aplicar o dispositivo da Lei das Estatais partindo da má-fé das empresas agrupadas, quando uma delas é sancionada. Além de ser essa uma pressuposição antijurídica, ela ignora a realidade de que, na maioria esmagadora das vezes, a formatação de grupos de sociedades está motivada por razões de ordem técnica e operacional legítimas e juridicamente válidas, e não para perpetrar fraudes contra a Administração Pública. A contaminação sancionatória automática acaba por tornar irregular a prática empresarial corriqueira, lícita e economicamente relevante de formar sociedades com sócios e gestores compartilhados.
Destaque, ainda, para a confusão patrimonial e o desvio de finalidade, que devem ficar muito bem evidenciados no procedimento apuratório de desconsideração na esfera sancionadora da Lei nº 13.303/2016. Se não for assim, já disse o TCU<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> em matéria de licitações e contratos em geral, a Administração Pública aplicará nova penalidade a terceiro, e não dando efetividade à sanção anteriormente aplicada, a qual deve recair exclusivamente sobre a empresa que se confundir com a sociedade penalizada e ter sido por esta usada para se desviar fraudulentamente dos efeitos da pena.
Na visão de doutrina específica sobre o art. 38 da Lei das Estatais, estender a penalidade de uma empresa para outra que participe da licitação ou que esteja contratada, à míngua de fraude, apenas porque tem sócio ou administrador comum com outra empresa penalizada, é “flagrantemente inconstitucional” por violação “ao princípio de que a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> (CF, art. 5º, XLV).
Curioso perceber que toda essa ânsia de facilitar a punição de licitantes e contratadas, em realidade, pode acabar fomentando comportamentos fraudulentos, justamente o que a Lei das Estatais pretendeu evitar. Deveras, a circunstância de licitantes e contrates serem rigorosa e facilmente castigadas por impedimento - o que em muitos casos significará sua “sentença de morte” – tem potencial para incentivar as empresas a fazerem de tudo para evitar essa sanção.
E isso aumenta a chance (motivação) de elas ofertarem propinas maiores e mais atraentes a executivos e dirigentes da entidade sancionadora, para que a pena não lhes seja aplicada. Estudos de economia comportamental na arquitetura normativa de sistemas punitivos são conclusivos em relacionar o alto nível de rigor das penas ao incremento dos atos de corrupção<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Compreende-se que a Lei nº 13.303/2016, concebida como uma legítima reação contra os vultosos esquemas de corrupção, tenha buscado dar tratamento sancionatório mais abrangente e agressivo às infrações verificadas nas relações negociais entre empresas estatais e particulares. A dose do remédio, contudo, foi excessiva e pode intoxicar o próprio paciente (deixa de contar com empresas sérias e competentes).
É preciso evitar o viés punitivista na execução da Lei das Estatais, na medida em que sua adoção contraria as normas do sistema jurídico privatístico da separação entre a pessoa jurídica e seus sócios e administradores, consagrado sobretudo na Lei da Liberdade Econômica.
Nunca foi tão necessário, como hoje, submeter a Lei das Estatais aos influxos liberalizantes da Lei nº 13.874/2019, norma posterior de “sobredireito no campo econômico”, cujo papel é exatamente o de orientar “a interpretação e aplicação de outras normas legais”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, em especial daquelas pertencentes aos ramos dos direitos Civil, Empresarial e Econômico<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, marcos teóricos essenciais ao manejo correto dos institutos jurídicos das licitações e contratos envolvendo empresas estatais.
Imprescindível, pois, a exigência de um grau especial de culpabilidade na configuração do abuso ou fraude da personalidade jurídica de licitantes e contratantes no ambiente da Lei das Estatais, da mesma sorte que há de se ter cautela redobrada na condução dos procedimentos de apuração dessa irregularidade societária, que deve ser sobejamente comprovada a cargo da autoridade sancionadora e submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa das empresas acusadas, nos termos das normas constitucionais e legais aplicáveis.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Esse entendimento está exposto em vários julgados administrativos do TCU.. Vide, por todos, os autos dos procedimentos TC 025.430/2009-5 e TC 000.723/2013-4.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> NIEBUHR. Joel de Menezes. Aspectos Destacados do Novo Regime de Licitações e Contratações das Estatais. Direito do Estado. Disponível em: <a href="http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/joel-de-menezes-niebuhr/aspectos-destacados-do-novo-regime-de-licitacoes-e-contratacoes-das-estatais">http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/joel-de-menezes-niebuhr/aspectos-destacados-do-novo-regime-de-licitacoes-e-contratacoes-das-estatais</a>. Acesso em: 22 de jan. 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Acerca dessa temática, confira-se a palestra de José Vicente Santos de Mendonça proferida no seminário “Direito Administrativo Sancionador”, disponível no canal da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro no You Tube (TV PGE): <a href="https://www.youtube.com/watch?v=VLy7JQMUc84">https://www.youtube.com/watch?v=VLy7JQMUc84</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Proposta acadêmica para a reforma das bases jurídicas da regulação e de sua governança nos âmbitos municipal, estadual, distrital e federal, com minuta de projeto para a Lei Nacional da Liberdade Econômica sob a responsabilidade dos professores Carlos Ari Sundfeld (FGV-SP, coordenador), Eduardo Jordão (FGV-RJ), Egon Bockmann Moreira (UFPR), Floriano Azevedo Marques Neto (USP), Gustavo Binenbojm (UERJ), Jacintho Arruda Câmara (PUC-SP), José Vicente Santos de Mendonça (UERJ) e Marçal Justen Filho (ex-UFPR), p. 9.  (<a href="https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/proposta_de_lei_nacional_de_liberdade_economica_-_sbdp__fgv_direito_sp.pdf">https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/proposta_de_lei_nacional_de_liberdade_economica_-_sbdp__fgv_direito_sp.pdf</a>)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Lei nº 13.874/2019, art. 1º, §1º: “O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.

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JOTA

O equívoco e o abuso ao aplicar de maneira literal e isolada a sanção do art. 38, da Lei nº 13.303/2016

Lei das Estatais: desconsideração da pessoa jurídica e Lei da Liberdade Econômica

O equívoco e o abuso ao aplicar de maneira literal e isolada a sanção do art. 38, da Lei nº 13.303/2016