Janaína Penalva

Wederson Santos

A Lei 14.176/2021 alterou critérios de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para reduzir gastos públicos e manter a austeridade fiscal às custas das pessoas com deficiência. A nova lei é fruto da conversão da Medida Provisória 1023/2020, que se propôs a regulamentar dois dispositivos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI): o auxílio-inclusão (art. 94) e os critérios de miserabilidade e vulnerabilidade para acesso ao BPC (art. 105).
Além de representar uma espécie de repescagem de outras iniciativas do governo Bolsonaro para alteração do critério de renda per capita familiar para pleiteantes do benefício assistencial, a lei atropela a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 567.985/MT, Red. Min. Gilmar Mendes, DGE 065.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>É possível dispor em pelo menos três grupos o conjunto de inconstitucionalidades da Lei 14.176: 1. desconsideração de decisão com repercussão geral do STF sobre o critério de renda per capita familiar necessário para acesso ao benefício assistencial; 2. afronta ao princípio da proibição de retrocesso social via mudanças na operacionalização do benefício assistencial, em que exigências orçamentárias se sobrepõem aos preceitos constitucionais da seguridade social, da dignidade humana e da cidadania; e 3. descumprimento de princípios e regras dispostas na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU que integra a Constituição Federal de 1988.
Em uma avaliação superficial, o marco legal parece garantir mais eficiência ou imparcialidade, já que opta por critérios fixos, baseados em médias aritméticas.
<h3>Critério móvel de renda</h3>
O primeiro conjunto de retrocessos da lei gira em torno da regulamentação do art. 105 da LBI. Em seu art. 1º, alterando o parágrafo 11A do art. 20 da LOAS, a Lei 14.176 desfaz a mencionada decisão do STF. Diz a norma: “§ 3º Observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (...) § 11-A.  O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2 (meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei. “
O STF julgou inconstitucional o critério de ¼ de salário mínimo per capita, definindo um patamar mais ampliado de miserabilidade para garantir compatibilidade da regra com a Constituição. A nova legislação insiste em recuperar esse critério de miserabilidade já considerado inconstitucional, definindo como excepcional a ampliação dos valores para até ½ salário-mínimo.
Um exemplo pode ajudar a entender: se uma pessoa com anemia facilforme pleiteasse o BPC e fosse aplicada a decisão do STF, ela cumpriria o critério de miserabilidade caso sua renda familiar per capita fosse inferior a ½ salário-mínimo, ou seja, abaixo de 550,00 reais.  No atual contexto, esse critério é de ¼ de salário-mínimo (275,00 reais), sendo possível, excepcionalmente a ampliação até ½ salário-mínimo conforme o grau da deficiência, a dependência de terceiros e o comprometimento do orçamento do núcleo familiar com gastos médicos.
A análise individual dessas circunstâncias não parece factível na execução administrativa. De forma que, provavelmente, o INSS terá uma tabela fixa com gastos médios conforme algum critério, como o tipo de deficiência. Outro exemplo: se a pessoa requerente tem anemia falciforme, sua renda será comparada com um valor-referência, na qual será verificada a média de custos que a anemia facilforme tem para um núcleo familiar.
A existência de uma tabela com gastos médios (ainda não publicada) é consequência lógica da alteração do § 4º do artigo 20 da LOAS que enuncia:  O valor referente ao comprometimento do orçamento do núcleo familiar com gastos de que trata o inciso III do caput deste artigo será definido em ato conjunto do Ministério da Cidadania, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS, a partir de valores médios dos gastos realizados pelas famílias exclusivamente com essas finalidades, facultada ao interessado a possibilidade de comprovação, conforme critérios definidos em regulamento, de que os gastos efetivos ultrapassam os valores médios.” (grifou-se)
A introdução das médias de renda desconstrói os elementos probatórios individuais ligados às características do pleiteante do BPC. O direito ao benefício dependerá de uma média de gastos que um tipo de deficiência exige da família, formada por inferências abstratas de outros sujeitos com deficiência e não do caso concreto em que o pleiteante apresenta sua renda e as necessidades para que seja averiguada sua elegibilidade à proteção social.
<blockquote class="jota-article__eye">Por essa medida, há uma desconsideração dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade que devem orientar a assistência social, direito fundamental individual. O constitucionalismo moderno se estrutura pela individualidade dos direitos.</blockquote>
Assim sendo, a imposição de condições para o acesso à proteção social que se formam por um exercício aritmético feito com base em condições de vida de outros indivíduos parece ignorar que direitos sociais também são individuais.
<h3>Auxílio-inclusão e o mercado de trabalho</h3>
Ainda neste grupo de retrocessos, encontram-se aqueles relativos à regulamentação do auxílio-inclusão no art. 2º da referida lei. Novidade trazida pelo art. 94 da LBI, trata-se de novo benefício com o objetivo de incentivar a entrada de pessoas com deficiência beneficiárias do BPC no mercado de trabalho, ao criar a possibilidade de se acumular parte de um benefício assistencial com a renda do trabalho.
Com atraso de quatro anos e meio, a regulamentação do art. 94 da LBI enfim ocorre, mas por critérios adicionais que restringem o acesso ao auxílio-inclusão e que não estão presentes no texto da LBI que o inspira, como os da alínea a, do inciso I e os incisos II e III alterados no art. 26A da LOAS. Por fim, na nova redação do parágrafo 1º do art. 26-g da LOAS introduzida pela Lei estabeleceu que “ (..) o Poder Executivo Federal compatibilizará o quantitativo de benefícios financeiros do auxílio-inclusão com dotações orçamentárias (...)”.
Isto é, o direito ao auxílio-inclusão assume aqui uma forma jurídica sui generis: recebe o beneficio quem der a sorte de o requerer quando houver dotação orçamentária. Em outras palavras, a própria existência do direito (e não só sua efetivação em casos concretos) passa a depender, em abstrato, de recursos orçamentários. Como se o art. 203 da CF não existisse. É a necessidade concreta e comprovada de proteção social das cidadãs e cidadãos que define o direito à assistência social e não o orçamento. O auxílio-inclusão tem por fundamento a cidadania, não restrições fiscais.
Vale ressaltar que o recebimento do auxílio-inclusão é equivalente a 50% do valor de um BPC. Isto quer dizer que o orçamento para o auxílio já existe porque as pessoas com deficiência já o recebem em dobro na forma do BPC.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Ou seja, o auxílio-inclusão pode a médio e a longo prazo significar redução de gastos do orçamento do BPC e não o seu aumento. Claro, portanto, que se trata puramente de uma medida discriminatória, irracional inclusive do ponto de vista fiscal. Sobrepondo uma duvidosa preocupação orçamentária à prioridade do direito fundamental, a nova lei deixa claro que a vida e a cidadania das pessoas com deficiência não importam.
<h3>Avaliação social remota da deficiência</h3>
Um terceiro conjunto de retrocessos diz respeito a descumprimentos de preceitos da Convenção, sobretudo, aqueles relativos ao conceito de pessoa com deficiência. No art. 3º, a lei cria regras excepcionais em prazo determinado – mas que a própria lei diz que poderá ser prorrogado – para avaliação da deficiência. A primeira das mudanças é a possibilidade da avaliação social feita por assistentes sociais do INSS ocorrer de forma remota, por teleconferência.
Novamente, o que parece uma boa ideia, na realidade, é uma restrição de direitos. A caracterização da deficiência para o BPC ocorre em uma avaliação multiprofissional entre médicos peritos e assistentes sociais do INSS. Assistentes sociais avaliam o impacto que fatores ambientais têm na vida das pessoas com deficiência, ao realizar uma avaliação da interação dessas pessoas com a sociedade.
Trata-se de avaliação dos comprometimentos para o exercício da cidadania dos pleiteantes do BPC, não é algo que possa ser feito pela tela de um celular, pela projeção eletrônica de imagens. Essa avaliação ocorre de acordo com o conceito de pessoa com deficiência da Convenção e com a Classificação Internacional de Funcionalidade da OMS.
Para avaliar tecnicamente a interação da pessoa com deficiência com o meio social, o serviço social necessita da presença física da mesma, sem isso, invalida-se a norma que define a deficiência como restrição de participação social e não como uma enfermidade apenas. A avaliação na presença física é, portanto, pré-condição técnica para conhecer as possibilidades de interação social, com o ambiente, que apenas assistentes sociais estão autorizados a realizar.
<h3>Padrão médio para avaliação social</h3>
Ainda no mesmo artigo, mas no inciso II, a lei autoriza o INSS a conceder ou manter o BPC aplicando-se um padrão médio à avaliação social, que compõe a avaliação da deficiência de que trata o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm#art20%C2%A76...">§ 6º do art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993</a>, desde que tenha sido realizada a avaliação médica e constatado o impedimento de longo prazo.
Não existe padrão médio para a avaliação social, pois desconsidera a avaliação contextual da deficiência. Em raciocínio semelhante ao já apresentado sobre as médias de renda familiar, aqui a média aplicada à avaliação social da deficiência significa que as pessoas não terão suas situações avaliadas individualmente, mas contrastadas a uma escala coletiva e abstrata sem relação com as condições fáticas do pleiteante do benefício.
Nesse contexto, não é possível a avaliação dos comprometimentos do exercício da cidadania de forma concreta e individualizada. A avaliação com base em médias impossibilita a averiguação das barreiras enfrentadas pelas pessoas, conforme prevê a Convenção e a LBI. Isso sem mencionar o retorno à medicalização do conceito de deficiência, pela regra de exigência da caracterização pela perícia médica, para posterior fase de avaliação pelo assistente social.
Essa mudança que, inicialmente, parece circunscrita à operacionalização administrativa, é um desrespeito ao conceito constitucional de pessoa com deficiência da Convenção, que define a avaliação multiprofissional, interdisciplinar e biopsicossocial em cada caso, conforme especificou o art. 2º da LBI.
A Lei 14.176 impôs um sacrifício às pessoas com deficiência, em nome de ajustes econômicos e regras fiscais claramente discriminatórias. Pessoas com deficiência enfrentam tormentosas barreiras e discriminações cotidianas que reduzem suas possibilidades de participar ativamente da sociedade.
Como não existe padrão de humano, não há médias ou tecnologias que possam substituir a avaliação das necessidades concretas dos indivíduos em condição de necessidade. Para as pessoas com deficiência, a caracterização da renda e de sua própria condição no mundo são os dois únicos condicionantes para acesso ao BPC definidos no art. 203 da Constituição Federal de 1988.
A mencionada Lei atinge esses dois critérios, ferindo preceitos constitucionais da seguridade social e ignorando que a pluralidade e a diversidade compõem uma sociedade democrática. Assim, mesmo considerando o conturbado histórico de consolidação da assistência social no Brasil, a inconvencionalidade e inconstitucionalidade da Lei 14.176 não tem precedentes.
<div id="" role=""></div>
<script type=""text/javascript"" src=""https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js""></script> 
<script type=""text/javascript""> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Com exceção dos casos previstos no inciso I, do parágrafo 1º do art. 26A, relativos às pessoas ex-beneficiárias do BPC. Apesar de estes valores serem irrisórios pelo baixíssimo quantitativo de beneficiários do BPC que, nos últimos cinco anos, encontraram condições para ingresso no mercado de trabalho.

pessoas com deficiência

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Às custas das pessoas com deficiência, norma alterou critérios de acesso ao Benefício de Prestação Continuada

As inconstitucionalidades da Lei 14.176/2021

A austeridade fiscal sustentada pelas pessoas com deficiência