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Análise

As fake news contra a democracia

Não será fácil distinguir o falso do errôneo. E como fazê-lo sem estabelecer censura?

Manoel Gonçalves Ferreira Filho
22/06/2020|07:48
fake news
Crédito: Pexels

A indignação contra a deturpação das campanhas eleitorais pelas fake News, que justifica investigações no âmbito do STF, arguições no TSE, CPI no Congresso Nacional, e toma conta de todos os meios de comunicação, é salutar e legítima. Entretanto, ela transcende o caso concreto – as eleições brasileiras de 2018 – e vai muito além das discussões que têm sido suscitadas. Chega ao cerne da democracia como sistema de governo.

(É neste ponto necessário um parêntese elucidativo. Tratar de fake News é um tema delicado, não só pelas paixões políticas que provoca, como pelo fato de que o termo é utilizado com diferentes acepções no Brasil. Com efeito, quando se fala em fake News ora se faz referência ora a: 1) notícias inverídicas, ou supostamente tais, em tradução fiel da expressão em inglês;  ora se faz referência 2) à difusão de apelos a participação em eventos ilegais, ao emprego da violência, ou à expressão de ódios e radicalismos contra pessoas ou contra instituições, enfim, ora 3) ao emprego de robôs para o disparo de mensagens em grande número a grande número de pessoas.

Cumpre, por isso, delimitar o escopo deste trabalho. Ele versa sobre a questão de nº 1, a difusão de notícias inverídicas, ou supostamente inverídicas. E o faz porque este aspecto concerne ao direito constitucional e à liberdade de expressão. Alude brevissimamente ao último, porque influi no processo democrático. Não se preocupa com a questão de nº 2, pela simples e óbvia razão que a matéria é de direito penal que pune tais manifestações, conforme de há muito prevê a legislação em todo o mundo. A este propósito não se suscita qualquer questão constitucional e as democracias existentes têm o arsenal de medidas necessárias para enfrentar tais manifestações.)

Ninguém ousará negar que os fundamento mais profundos da democracia estão na natureza humana que é igual para todos e importa na liberdade de todos. A isto acompanha um pressuposto: a capacidade de todos os seres humanos terem condição para escolher quem os há de representar ou governar. É este um pressuposto indiscutível de que eles sabem fazê-lo. (Um herói esportivo brasileiro quase foi linchado por ter dito o contrário).

Entretanto, muitos completariam a verdade acima pressuposta com uma observação complementar. Esta seria – simplifique-se – desde que esteja bem informado sobre a decisão a tomar ou sobre caráter e o pensamento daquele que escolhe, votando, num sistema representativo indispensável no Estado contemporâneo.

Esta necessidade de informação é reconhecida pela necessidade de campanha eleitoral, é tarefa que assumem os partidos, é a que desenvolvem de modo crítico e implacável os meios de comunicação de massa. Neste contexto, as virtudes e defeitos dos candidatos são examinadas desde o momento em que deixaram as fraldas e qualquer deslize jamais é esquecido. Igualmente, o seu programa é esquadrinhado com lentes (às vezes embaçadas por viés ideológico) e confrontado com o de outro, ou outros candidatos (com a dura consequência de que os critérios são tão puritanos que nenhum mereceria ser eleito...).

Esta dependência da informação enseja uma vulnerabilidade nos Estados contemporâneos em que os eleitores são milhões e evidentemente não se conhecem senão pela informação que recebem.

Tal vulnerabilidade é o peso da propaganda. Esta serve para destacar as qualidades dos candidatos e seus partidos, mas podem – digo podem – servir para exaltar em demasia os seus méritos, ou denegrir-lhes ao máximo os seus deméritos. Isto já ocorria na Antiguidade, como é fácil de verificar (leia-se o manual eleitoral do irmão do grande Cícero, o orador).

No mundo contemporâneo, a propaganda se tornou uma arte sofisticada que não nasceu para a política, mas hoje foi incorporada por esta. Desenvolveu-se como técnica de venda, destinada a incrementar o consumo de qualquer produto. Empenha-se, por isso, não na divulgação do verdadeiro, mas do que convém vender, exaltando o que tem de bom o produto e ocultando o que tem de ruim.

Por outro lado, tem ela, hoje, à sua disposição todo um arsenal de meios que não existiam há um século – rádio, cinema, televisão, internet. Seu impacto evidentemente cresceu porque colhe a todos e não apenas a alguns, também porque tem como aliada a força da imagem. Esta vai ao cérebro sem passar pela razão. É o que observa Sartori (Leia-se o que escreve no Homo videns).

Ademais, ela não se dirige apenas ao racional do ser humano, como o era a velha imprensa com seus debates. Ela explora o elemento irracional que possuem todos os seres humanos, seus sentimentos, suas paixões. Nisto, contou com a contribuição involuntária do desenvolvimento científico – da psicanálise, da psicologia, etc. Na realidade, parece ela abeberar-se na Psicologia das multidões de Le Bon (condenado e repudiado pelos cientistas “corretos”) que registra de modo negativo a conduta das multidões, inclusive eleitorais, aponta suas fraquezas e inclinações e sugere como utilizá-las.

A importância da propaganda nas eleições contemporâneas pode ser medida pelo seu custo, dela e de seus especialistas. Os filmes, as divulgações radiofônicas, etc., importam em milhões e milhões – a verba reclamada pelos nossos políticos o demonstra bem – afora também o destaque dos “marqueteiros” – os kingmakers da democracia – e o vulto de seus honorários (a Lava Jato o mostrou). São eles os verdadeiros ideólogos dos partidos e dos candidatos.

O fenômeno das fake News se inscreve no arsenal dos meios e artifícios da propaganda. Sem dúvida é um meio mais barato do que os outros de que se usam, ou usaram. É um mal para democracia como a propaganda “comercial” o é. Reprimir a deformação que imprimem na informação de que disporá o eleitor é necessário, como o é quanto a toda propaganda falsa.

Mas como fazê-lo?

Proibindo fake news – notícias falsas? Não será fácil distinguir o falso do errôneo. Igualmente isto não será feito sem criminalizar a propaganda. E como fazê-lo sem estabelecer censura? E estabelecer censura não contraria de frente a liberdade de expressão e por intermédio desta a liberdade de pensamento e crença?

Enfim, como computar o seu peso e influência sobre os eleitores em comparação com os demais meios de propaganda? Será mais grave que a de outros meios?

Não sei. Pergunto.

Por fim, cabe voltar ao aspecto nº 3. É este um problema ligado à tecnologia da informação. É baldado pretender reverter o que a internet – diga-se assim – permite (e já nos inunda), ou seja, a multiplicação de propaganda indesejada. Equivale a discutir, na metade do século passado, se a televisão devesse ser proscrita para que o debate político se mantivesse nas páginas dos jornais.

É necessário, sim, e não apenas para o voto, que a legislação ordinária preveja a identificação dos responsáveis pelas mensagens e consequentemente possibilite sua eventual responsabilização.

Em termos pragmáticos, até que as perguntas sejam respondidas não valerá a pena contentarmo-nos com punir a calúnia, a difamação, a injúria, a pregação da subversão da ordem e outros crimes que há séculos constam da legislação penal?

Mas tudo isto não dispensa o eleitor de pensar o voto.logo-jota

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