Mariana Muniz

O julgamento de um homem que foi mantido algemado durante o Tribunal do Júri foi anulado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por maioria de votos, os ministros consideraram que o fato de o réu aparecer de algemas desnivela o equilíbrio que deve existir entre acusação e defesa, especialmente em se tratando de julgamento realizado por jurados.
Para a maioria dos ministros, os jurados – leigos – podem ser influenciados ao verem alguém algemado, sentado no banco dos réus, o que prejudica a imparcialidade com que devem agir ao longo do julgamento.
<a style="color: #000000;" href="/wp-content/uploads/2017/04/algemas.pdf">Leia a decisão</a>
Embora não estabeleça a obrigatoriedade de se retirar as algemas do acusado preso que é levado a julgamento perante o júri, a decisão deixa claro que a regra é a de que o acusado seja julgado sem algemas.
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Ao discordar do voto da relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, que negava o pedido de anulação do julgamento, o ministro Rogério Schietti ponderou que, “a menos que se aduza alguma peculiaridade do caso concreto, a denotar efetivo risco de que o réu, com mãos livres, poderá pôr em risco a segurança dos circunstantes ou fugir – risco que não pode decorrer do simples fato de responder por crime hediondo – revela-se ilegal a manutenção do réu algemado durante a sessão de julgamento”.
A situação se torna ainda mais grave, segundo o ministro, quando se trata de juízes leigos.  “Para quem o simbolismo do uso de algemas pelo acusado possui significado mais relevante do que se se tratasse de julgamento perante juiz togado”.
Para o ministro, o princípio da presunção de inocência exige que o acusado seja tratado com respeito à sua pessoa e dignidade e que não seja equiparado àquele sobre quem já pesa uma condenação definitiva.
Diante deste cenário, o STJ anulou o julgamento justamente por conta da falta de fundamentos da decisão judicial que negou o pedido da defesa para que fossem retirados os grilhões. Com a decisão do tribunal, outro julgamento em plenário deverá ser realizado. Desta vez, sem o uso de algemas.
Fundamento genérico
No caso, o réu foi condenado pelo 1º Tribunal do Júri da Comarca de São Paulo a 18 anos de reclusão, por ter, supostamente, assassinado a enteada de dois anos.  O réu respondeu preso ao processo, e assim continua até hoje.
Durante o julgamento, a defesa pediu ao magistrado que retirasse as algemas, de forma a evitar que a cena pudesse influenciar os jurados.  A juíza negou o pedido, argumentando que não havia efetivo policial suficiente para dar segurança a todos que estavam no plenário.
"O réu está sendo processado por homicídio qualificado, crime grave, classificado pela lei como hediondo. Ainda, o efetivo da polícia militar neste tribunal é pequeno e insuficiente para a garantia e segurança de todos, tornando o uso de algemas ainda necessário à ordem dos trabalhos”, justificou a magistrada, na ocasião.
Diante da negativa, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), pedindo a anulação do julgamento em razão de o acusado ter permanecido algemado durante todo o tempo. A ordem foi negada.
Em paralelo, diante da condenação em plenário, a defesa também recorreu ao TJSP. No recurso de apelação, foi novamente debatida a nulidade do julgamento, em razão da questão das algemas. O TJ indeferiu o apelo e afirmou que, no tocante às algemas, a fundamentação da juíza estava adequada.
Só então a defesa interpôs o recurso ordinário em habeas corpus ao STJ, voltando a argumentar que o julgamento era nulo, já que o réu não poderia ter permanecido algemado.
A relatora, ministra Maria Thereza, negou provimento ao recurso, sob a justificativa de que "a autoridade que presidira a assentada bem se desincumbiu quando fundamentou a restrição na insuficiência de policiamento para garantia da segurança dos presentes".
Após o voto da ministra, em novembro de 2016, Schietti pediu vista para melhor analisar a questão. O ministro considerou a argumentação da juíza de primeiro grau genérica e sem indicação concreta.
“Simplesmente afirmar que o efetivo é pequeno e insuficiente, sem nem ao menos informar quantos policiais estavam designados para auxiliar na sessão, parece-me não satisfatório para o sacrifício do direito do réu a somente usar as algemas em caráter excepcional”, defendeu.
A posição de Schietti foi acompanhada pelos ministros Néfi Cordeiro e Sebastião dos Reis Junior. Ficaram vencidos a ministra Maria Thereza e o ministro Antônio Saldanha Palheiro.
Argumento
Na fundamentação, Schietti recorreu à Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal (STF). Pelo enunciado, “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Além disso, o ministro lembrou que o artigo 474, §3º, do Código de Processo Penal (CPP) prevê que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.
E que o uso de algemas durante julgamento fere os princípios da dignidade humana e da ampla defesa – já que, salvo comprovada necessidade, não é “correto submeter um cidadão algemado perante o tribunal do júri.
Em parecer do subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, o Ministério Público Federal opinou pela anulação da sessão de julgamento do júri e pela revogação da prisão preventiva do acusado.
Os advogados responsáveis pelo caso, Euro Bento Maciel Filho e Gabriel Huberman Tyles, avaliam que a decisão do STJ deixa claro o compromisso do tribunal com o direito de defesa do cidadão.
“Os ministros não só prestigiaram o sagrado direito de defesa, como contribuíram, e muito, para evitar que abusos iguais continuem ocorrendo”, afirmam os advogados, que são associados ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Repercussão
Para o defensor público Fernando Calmon, que contabiliza mais de 300 atuações em juris, a decisão do STJ contribui para restaurar o equilíbrio na relação processual diante dos jurados.
“O acusado algemado entrando em plenário, sendo interrogado ou mesmo assistindo o julgamento, reforça a todo momento a hipótese da sua culpa. No julgamento popular, é muito forte e presente a ideia da reprovabilidade", explica. "E a imagem do acusado algemado sempre serviu para este propósito."
Na defensoria pública há 24 anos, Calmon entende que é natural ao leigo julgar primeiro o autor e só depois prestar atenção aos fatos. “Em um ambiente social onde a violência é muito divulgada, não é difícil visualizar o inimigo a ser punido com brevidade”.
Na avaliação do criminalista Augusto de Arruda Botelho, a decisão da 6ª Turma é correta em todos os aspectos. “A súmula que regulamenta o uso das algemas é bastante clara e acertada. Infelizmente, ela por muitas vezes vem sendo desrespeitada, principalmente em audiências de primeira instância no Brasil todo”.
Para Botelho, dizer que não há efetivo policial para garantir a segurança da audiência é um argumento “absolutamente genérico”. “De fato, infelizmente, o efetivo policial é reduzido em todos os fóruns de qualquer comarca do país”.
O outro argumento genérico, segundo o advogado, é recorrer à gravidade do crime para justificar o uso das algemas. “A gravidade do delito vem sendo ao longo dos anos completamente expurgada da jurisprudência para justificar qualquer coisa. O que traz ainda mais acerto a esta decisão é que este não é um processo comum, é um processo de júri. E o uso da algema influencia diretamente no julgamento por parte dos jurados”, avalia.
O Ministério Público do Estado de SP foi procurado para comentar a decisão do STJ, mas não se manifestou até a publicação da reportagem.
Supremo
Em junho de 2016, a 1ª Turma do STF anulou a audiência de instrução e julgamento de um homem que foi mantido algemado durante todo o procedimento. Acusado por tráfico de drogas, o réu teve o pedido para retirar as algemas negado pelo juiz da 1ª Vara Criminal de São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
Segundo o colegiado, a medida não obedeceu aos critérios estabelecidos pela mais alta corte do país na Súmula Vinculante 11. O relator do caso, ministro Luiz Edson Fachin, entendeu que “o reclamante foi submetido ao uso de algemas sem fundamentação adequada em audiência de instrução e julgamento em que, além da realização do interrogatório, foram colhidos depoimentos de testemunhas”.
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JOTA

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