O parecer da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre a Medida Provisória 703/2015, que regulamenta a leniência no âmbito da Controladoria-Geral da União (CGU), reforça o entendimento do setor privado de que não há, hoje, segurança jurídica para a celebração de acordos em relação a atos de corrupção. No parecer, favorável à concessão de liminar em uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5466) proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS) no Supremo, a procuradora-geral Ela Wiecko afirma que a MP 703 “subverte a lógica interna dos acordos de leniência” e “enseja insegurança para as próprias empresas interessadas”.
O entendimento é compartilhado por procuradores do Ministério Público Federal e também por advogados que atuam no meio corporativo e se esforçam em encontrar saídas para que empresas envolvidas em escândalos de corrupção possam resolver suas pendências com a Justiça e a administração pública e seguir em frente.
Desde o início da Operação Lava Jato, duas empresas que atuam na área de infraestrutura firmaram acordos de leniência perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para prestar informações sobre crimes de formação de cartel e de fraudes em licitações em troca de benefícios como a suspensão de processos administrativos, cíveis e criminais e redução de multas. Já no âmbito da CGU, outras sete empresas negociam o mesmo tipo de acordo em relação a crimes de corrupção de funcionários públicos no âmbito da Lei Anticorrupção, mas até agora nenhum foi fechado.
A diferença entre os acordos de leniência no Cade e na CGU é um dos principais pontos da discussão que envolve a MP 703, editada pelo governo federal em janeiro deste ano para regulamentar o instrumento no que se refere à corrupção. Enquanto os acordos junto ao Cade contam com a participação do Ministério Público já na negociação de seus termos, nos acordos da Lei Anticorrupção – agora regulados pela MP 703 –, o Ministério Público pode ou não participar.
“A MP 703 desvirtuou a ideia do acordo de leniência, o Ministério Público não pode ser posto de escanteio na discussão dos termos do acordo” diz Thiago Lacerda Nobre, procurador-chefe do MPF em São Paulo. O procurador Rodrigo de Grandis, também do MPF em São Paulo, lembra que o único órgão que pode contemplar todos os tipos de processo envolvendo um ato de corrupção é o Ministério Público. A presença do MP nos acordos pode garantir à empresa leniente que, além de redução na multa a ser aplicada na esfera administrativa, ela seja beneficiada com a suspensão de ações judiciais cíveis e seus executivos com a suspensão de processos criminais. Neste sentido, uma das inovações trazidas pelos acordos fechados na Operação Lava Jato entre Ministério Público e Cade foi a inclusão da suspensão de ações de improbidade administrativa contra as empresas e seus executivos no pacote de benefícios oferecidos às empresas lenientes.
“Os acordos de leniência fechados apenas com a CGU abrirão flancos para que a empresa seja alvo de ações de improbidade e seus executivos, de ações penais”, diz De Grandis. “Não é lógico que os acordos não tenham a participação do Ministério Público, pois se o acordo não contemplar algo que o órgão entende necessário, depois pode ser judicializado”, afirma Nobre.
O parecer da PGR segue no mesmo sentido. Segundo o documento, a MP 703 “subverte a lógica interna dos acordos de leniência, ao permitir que qualquer interessado, a qualquer tempo, celebre o acordo, ainda que sem oferecer elementos relevantes à descoberta de ilícitos sob investigação.” Ainda de acordo com o parecer, a MP “enseja insegurança para as próprias empresas interessadas, ao criar a possibilidade de o Ministério Público buscar invalidação de acordo do qual não tenha participado” e, “com seu regime frouxo, ineficiente e excessivamente aberto, prejudica a prevenção e a repressão da corrupção e o cumprimento dos compromissos internacionais do Brasil”.
O entendimento do Ministério Público Federal tem como pano de fundo o tipo de informação a ser prestada pelas empresas lenientes e que é de interesse dos procuradores. No caso da Camargo Corrêa, por exemplo, que fechou acordos de leniência junto ao Cade e à força-tarefa do Ministério Público na Lava Jato, as informações abriram novas frentes de investigação para além das fraudes nas licitações da Petrobras, trazendo dados sobre a usina de Angra 3, da Eletronuclear.
Ausência do MP dá espaço a discricionariedade
Segundo o advogado Eduardo Gaban, sócio da área antitruste e concorrencial do escritório Tauil & Chequer Advogados, qualquer acordo de colaboração, seja do tipo que for e em qualquer país, pressupõe que o Estado está disposto a conceder certos benefícios em troca de informações às quais não teria acesso por outros meios. Assim funcionam as delações premiadas fechadas a partir das regras da Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850, de 2013) e a Lei Antitruste (Lei nº 12.529, de 2011). Para ele, o problema da MP 703 se resume ao fato de não ser obrigatória a participação do Ministério Público nos acordos. Deixar que apenas a administração pública feche acordos sem o Ministério Público, segundo ele, “é abrir espaço para a discricionariedade na colaboração a ser feita nos acordos”.
Gaban lembra que a própria Lei Antitruste, que inaugurou a leniência no sistema jurídico brasileiro, não prevê expressamente a obrigatoriedade de participação do Ministério Público. Mas, ao longo do tempo, os acordos evoluíram para que essa presença se tornasse parte do acordo, sem a qual a lei seria letra morta – afinal, dificilmente uma empresa estaria disposta a colaborar se tivesse como benefício a redução da multa, mas ficasse exposta a ações penais por formação de cartel na Justiça. As primeiras leniências no Cade trouxeram o problema à tona e o órgão antitruste interpretou a legislação para tornar a presença do MP uma regra nos acordos.
Se a Lei Antitruste evoluiu ao longo do tempo para tornar os acordos de leniência eficazes, o mesmo poderia ocorrer com a Lei Anticorrupção, mesmo que a MP 703, ainda não transformada em lei, deixe em aberto a participação do Ministério Público. Esse passo, no entanto, é mais complexo, já que a norma não trata de processos contra pessoas físicas, mas apenas de processos administrativos contra pessoas jurídicas. Ou seja, mesmo que o Ministério Público passe a ser chamado a atuar nas leniências em negociação na CGU, não seria possível incluir ações penais contra pessoas físicas entre os benefícios concedidos em troca da colaboração da empresa. No caso de uma parcela significativa das empresas brasileiras, de estrutura familiar e controladas por seus próprios sócios, esse é um entrave enorme para a celebração dos acordos – afinal, eles protegeriam a empresa, mas não seus acionistas.
Desestímulo à delação premiada
Se para as empresas é um problema, a ausência das pessoas físicas nos acordos de leniência da Lei Anticorrupção, do ponto de vista do Ministério Público, está sendo encarada como um desestímulo aos acordos de delação premiada fechados no âmbito das investigações criminais. Executivos de empresas poderiam deixar de colaborar com investigações criminais, sabendo que a empresa será beneficiada em uma leniência, dificultando o trabalho do Ministério Público na investigação de possíveis envolvidos em atos de corrupção.
Especialistas no assunto apontam outra consequência negativa da lei, que envolve a natural tensão entre empresas e funcionários nesses casos. Companhias podem fechar acordos de leniência para reduzir penalidades entregando funcionários ou mesmo obrigando-os a fazer delações direcionadas, a fim de minimizar eventuais condenações ou mesmo evitá-las. “Esse tipo de coisa já ocorre até mesmo na leniência da Lei Antitruste: empresas correm para celebrar acordos quando há uma ameaça de delação por parte de um funcionário”, diz uma fonte ouvida pelo JOTA.
O advogado Francisco Todorov, sócio da área antitruste do escritório Trench, Rossi e Watanabe, lembra que a medida provisória que permitiu os acordos de leniência perante o Cade não incluía pessoas físicas, ponto que foi corrigido durante a conversão da MP em lei. “Com isso, aos poucos a lei foi sendo aplicada”, diz. “O que motiva a leniência é que, se a empresa não fizer, outra o fará”, afirma Todorov.
Este é outro ponto de críticas à MP 703 vai além. Segundo o procurador Rodrigo De Grandis, do Ministério Público Federal em São Paulo, as regras da MP 703 acabam por desestimular a leniência. “A maior preocupação em relação à medida, e que foge à lógica da leniência do Cade, é o fato de ela proporcionar que toda empresa envolvida em um episódio de corrupção faça leniência”, diz. Conforme o texto da MP, a primeira empresa a fechar um acordo pode ter remissão completa da multa, enquanto as demais terão redução de até dois terços da multa. “Assim não há incentivo para que a empresa seja a primeira a colaborar”, afirma o procurador. Segundo ele, ao não criar uma instabilidade no sistema, a MP não desestimula a perpetuação da corrupção.
Em função desses problemas, especialistas acreditam que dificilmente a leniência prevista na Lei Anticorrupção será utilizada, ao menos em larga escala, mesmo em tempos de Lava Jato. “Se existisse apenas essa hipótese de leniência no Brasil, seria um desastre”, diz Eduardo Gaban. “Vai ser difícil alguém celebrar um acordo.” O criminalista Rogério Taffarello concorda, ao menos antes que as regras da MP 703 sejam confirmadas ou alteradas – hipótese mais provável – no Congresso Nacional, onde a medida provisória tramita na Câmara dos Deputados e recebeu 150 emendas. “As empresas estão com medo de celebrar acordos e alguns meses depois eles serem invalidados por um juiz ou os termos mudarem com a votação da MP”, afirma.
Leniência e punições estão em evolução nos EUA
Importado do direito anglo-saxão, o chamado common law, o acordo de colaboração ainda está em processo de adaptação no Brasil. Mas mesmo nos Estados Unidos, onde esse tipo de acordo é amplamente utilizado em casos de corrupção, trata-se de um instrumento em evolução constante. Lá fora, empresas podem se apresentar a autoridades como o US Department of Justice (DOJ) ou a Securities and Exchange Comission (SEC) para fechar acordos quando descobrem atos de corrupção e resolvem fazer um disclosure ou quando já estão sob investigação. Com acordo, a multa e as demais sanções às empresas podem ser mitigadas. Sem acordo, serão maiores, e os responsáveis correm o risco de serem processados por crimes.
Não é um processo célere, conta a advogada Isabel Franco, especialista em compliance e legislações anticorrupção do escritório KLA Advogados. Com ampla experiência nos EUA, Isabel conta que as investigações relacionadas a infrações à lei americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) envolvem diversas idas e vindas da empresa e sua equipe de investigação interna aos órgãos de controle. “As autoridades mandam investigar e organizam as investigações”, afirma. Segundo ela, periodicamente a empresa precisa levar às autoridades os resultados obtidos e é questionada sobre vários pontos, tendo que responder a todas as perguntas. Se a investigação não andar, a empresa será pressionada e pode até ser obrigada a contratar um monitor externo, escolhido pelas autoridades, para controlar a apuração dos atos de corrupção.
Foi o que ocorreu com a Siemens, multinacional alemã que recebeu a maior multa já paga por uma empresa por violação à FCPA, que atingiu US$ 1,6 bilhão. Flagrada em um esquema de corrupção de funcionários públicos em diversos países do mundo, a Siemens teve que contratar como monitor externo o ex-ministro das finanças da Alemanha para controlar as investigações internas. O processo da Siemens levou sete anos para ser concluído.
No mesmo caminho estão as empresas brasileiras Petrobras, Eletronuclear, Odebrecht e Embraer, ambas em investigação pela SEC e pelo DOJ nos Estados Unidos. No caso da Embraer, a empresa começou a ser investigada em 2009 após suspeitas de pagamento de propinas a funcionários públicos de três países, entre eles a Argentina, para obter contratos de compra de aeronaves. As investigações ainda estão em andamento. No caso das demais, a origem das investigações é a Operação Lava Jato. E é no caso da Petrobras, entre outros, que as autoridades americanas estão debatendo a real eficácia da aplicação de multas às empresas envolvidas em corrupção. Segundo Isabel Franco, recentemente a procuradora geral assistente do DOJ, Leslie Caldwell, fez um discurso afirmando que o foco do Departamento de Justiça americano nos próximos anos é a punição criminal de pessoas físicas. O DOJ passa, portanto, a se concentrar na pessoa física, e não na jurídica.
Os números relativos às punições por violação à FCPA deixam clara essa discrepância. Em 2002, foram punidas duas empresas e aplicadas multas que totalizaram US$ 2,7 milhões, mas apenas seis pessoas foram punidas. O auge da aplicação da lei foi em 2010, com um total de R$ 1,8 bilhão em multas aplicadas a 21 empresas – 18 pessoas foram punidas. No ano passado, foram US$ 143,1 milhões em multas aplicadas contra 12 empresas e 11 foram punidas. Nos bastidores, há dúvidas quanto à pertinência e eficácia de aplicação de uma multa vultosa à Petrobras. Em parte porque o caso, dada a quantidade de pessoas envolvidas nas investigações da Lava Jato, encaixa-se como uma luva na nova diretriz das autoridades americanas. Em parte porque a multa recairia, em última instância, sobre toda a sociedade brasileira, já que se trata de uma estatal.