Mariana Muniz

O ataque a unidades de saúde e o modo de combate ao terrorismo vêm apagando lentamente normas internacionais escritas há mais de um século e meio. A situação exige de juristas e países uma atualização das Convenções de Genebra, que desde 1864 traçam um arcabouço de proteção a equipes de socorro e protegem combatentes feridos. Depois, todo o direito internacional humanitário foi consolidado nas Convenções de Genebra de 1949 e dois protocolos das Convenções, de 1977.  Sem ação, o direito humanitário internacional corre o risco de se tornar “letra morta”.
O alerta foi feito ao JOTA pela magistrada e doutora em direito Françoise Bouchet-Saulnier, diretora jurídica da organização não-governamental Médicos sem Fronteiras (MSF). Ela é autora de diversos livros e artigos sobre o trabalho humanitário, direito humanitário e a justiça internacional – especialmente o Guia Prático do Direito Humanitário (Paulinas, 1998).
A organização esteve no Conselho de Segurança das Nações Unidas na quarta-feira (28/9) para pedir que a comunidade internacional se una contra os ataques, cada vez mais frequentes, a hospitais em zonas de guerra. Na avaliação de Bouchet-Saulnier,  o momento atual é inédito na história das organizações humanitárias.
“Não podemos deixar o direito humanitário internacional virar letra morta. Ou então”, continuou a professora do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), “estaremos perdidos, e nos mataremos todos uns aos outros, já que o acesso à ajuda humanitário estará prejudicado pela guerra ao terror e os atos contraterroristas.”
Há um ano, no dia 3 de outubro de 2015, o hospital da organização em Kunduz, no Afeganistão, foi atingido e destruído por um ataque da aviação dos Estados Unidos. Ao todo, foram 42 mortos e 37 feridos – num atentado que dividiu as águas do que até então se conhecia como “regras da guerra”. Entre os mortos, 14 eram membros da equipe da MSF. Integrantes do Talibã estavam entre os pacientes do centro de tratamento.
De lá para cá, o recrudescimento do conflito sírio criou desafios ainda maiores. Mais de cinco milhões de pessoas buscam refúgio na Europa, um movimento migratório que influencia as eleições no bloco e causa cenas chocantes de pessoas mortas tentando chegar às fronteiras. A histórica cidade de Aleppo permanece isolada, sem acesso a equipes de socorro, diante dos bombardeios sistemáticos apoiados pela Rússia, levando os EUA a suspenderem o diálogo com os russos nesta segunda-feira (3/10).
Entre a preocupação com o crescente número de ataques nas zonas de guerra – amplificada pela situação na Síria – e o cuidado de pessoas em situação de risco em todo o mundo, Françoise Bouchet-Saulnier disse acreditar que o mundo ainda não encontrou resposta ideal para o resultado de guerra contra o terrorismo. “Enquanto isso, seguem desrespeitando tudo aquilo que debatemos nos escritórios e nas reuniões. Dizem que são erros. Eu pergunto: porque tantos erros contra os mesmos alvos? ”
De Paris, onde funciona um dos centros operacionais da organização não-governamental criada em 1971, a jurista conversou com o JOTA por telefone. Confira a seguir a íntegra da entrevista sobre o estado atual do direito humanitário no mundo:
Na Síria e no Iraque, fala-se muito numa guerra inédita, nunca antes vista. Estamos também diante de uma complexidade jurídica inédita?
Sim, e estamos diante de uma situação que parece apenas se agravar. Uma situação cada vez mais grave e complexa, inclusive pela implicação de um maior número de atores: a ONU, as coalizões internacionais. Hoje estamos diante de desafios mundiais, como é o caso dos imigrantes, que impactam o mundo inteiro, não apenas uma parte dele. Então, eu diria que há uma globalização e uma interdependência entre cada um de nós que faz com que cada vez que ocorre alguma coisa num canto do mundo, isso terá uma consequência para todos. E isso leva os estados a intervirem, a agir, para aplicar uma ordem ou uma nova desordem para aumentar as trincheiras e os interesses em jogo e é verdade que isso leva a situações complexas. Podemos dizer que há mais atores, que a natureza das ações muda, que o nível das ações se torna mais complexo – temos coalizões armadas, que fazem bombardeios aéreos, temos tropas no solo.
Como fica o direito humanitário diante dessa maior complexidade?
A guerra está em todos os lugares e as situações em que o atendimento humanitário é necessário também se diversificam. Vemos que é possível ter epidemias em meio a um conflito, epidemias com estados que não são mais capazes que agir, como foi o caso do ebola. Tudo isso é muito complexo. Podemos ficar deprimidos, mas acho que não temos escolha. A única alternativa é se adaptar. E isso é possível. No entanto, é preciso mudar as estruturas, especialmente as do Direito. Em alguns locais, o direito se torna um problema, mas ele é feito para ser interpretado. E também é preciso aceitar mudar a forma de agir porque, às vezes, a ação piora o problema, ao invés de resolvê-lo.
Quais são as bases do direito humanitário que protege pacientes e hospitais?
Como toda organização humanitária, os Médicos Sem Fronteiras (MSF) cuidam de todos os pacientes, doentes ou feridos. No direito humanitário, escrito por juristas e forças armadas, é preciso ressaltar, o estatuto de machucado ou doente apaga todos os outros, inclusive o de combatente. É a base da primeira Convenção de Genebra, assinada em 1864, por 16 estados. Ela prevê cuidados aos feridos qualquer que seja sua nacionalidade, a neutralidade ou inviolabilidade das equipes e estabelecimentos, como os hospitais. Não existe distinção, entre os feridos, de quem é civil ou militar. Mas em situações de conflitos, os estados caem na armadilha de considerar todos os homens em idade de combater como combatentes.
Além disso, neste tipo de contexto, este mesmo direito humanitário considera que a recusa deliberada de cuidados por parte de um médico constitui um crime de guerra. Existem pressões sobre os pacientes da parte dos militares. Não é questão de aceitar que um médico seja enviado para a prisão por ter atendido um ferido. O direito humanitário nos diz: é preciso cuidar de todos os feridos, sem exceção.
Isso quer dizer que, na prática, as Convenções de Genebra, precisam ser adaptadas às novas formas da guerra?
Uma proporção preocupante de ataques às infraestruturas médicas e suas equipes parece fazer parte de uma estratégia militar conhecida como “ataques de duplo impacto”, que consistem em otimizar o número de vítimas mirando os serviços de socorro, incluindo aí os serviços de ajuda humanitária. O segundo ataque destinado a atingir as equipes de socorro ocorre geralmente entre 20 e 60 minutos após o primeiro. Quatro incidentes ao longo dos dois últimos meses de 2015 apresentam todas as características de um ataque de impacto duplo.
E são as mulheres e crianças que pagam um dos preços mais altos desses ataques, já que representam de 30 a 40% das vítimas de guerra levantadas em 2015 nas 70 estruturas de saúde que a organização mantém em Aleppo, Idleb, Hama, Homs e Damasco. Lá morreram 7009 pacientes e 154 647 outros feridos foram atendidos nesses locais. Esse número alto parece mostrar muito bem que os beligerantes não fizeram os esforços necessários ou adequados para evitar causar as vítimas entre a população civil. A obrigação de proteger os civis contra as violências de guerra não é respeitada, o que significa uma violação do direito internacional humanitário.
Como as organizações, no âmbito do direito humanitário, podem dialogar com todos os atores presentes nos conflitos
Um dos problemas e um dos debates mais acalorados sobre a situação na Síria foi a noção de que o acesso aos locais de conflito deveria ser solicitado ao governo.
Isso faz parte de um dos desafios em torno do direito humanitário e do direito levado adiante pelos estados porque se o acesso deve ser solicitado aos governos, isso significa dizer que o acesso se torna uma moeda de troca, um interesse do conflito, um interesse humanitário, político. Um conflito armado é justamente uma questão de controle de território, de população e enfrentamento. Então o acesso não é uma questão neutra. É até mesmo imperativo. E quando se trata de conflito humanitário, temos que ter certeza que as populações controladas por um grupo não estão provadas de bens essenciais a sua sobrevivência. Isso é algo diferente, e é verdade que a atitude da MSF baseada no direito humanitário é que uma organização humanitária não precisa pedir para um governo para ter acesso a uma zona que não é controlada por esse governo. Se não, na verdade, a gente transforma o acesso num interesse do conflito, num interesse de soberania nacional e aí, o acesso vira uma arma de guerra estatal. Na Síria, nós interviemos sem grandes problemas jurídicos no início do conflito com todos os grupos armados não estatais – mas para conseguir negociar com esses grupos, é preciso aceitar não passar, necessariamente, pelo acordo do governo que está, justamente, combatendo esses grupos armados.
Como estabelecer concretamente um diálogo com os grupos armados, a exemplo do Estado Islâmico?
Há uma forma de hipocrisia de dizer que é o governo que tem que autorizar o diálogo com os grupos armados não-estatais contra o qual ele luta. Essa hipocrisia está no cerne de um sistema internacional, no sentido de inter-nações, inter-estados, que é gerenciado pelas Nações Unidas, pelos estados, e do qual a ação humanitária deveria poder, de alguma forma, se liberar. A pressão moral que existe, e existirá sempre, é que um grupo armado pode não manter sua palavra quando ele ocupa um território e foi o que ocorreu entre MSF e o grupo Estado Islâmico (EI), mas o acesso com outros grupos que cumprem sua palavra é possível, é necessário, e é submetido unicamente à flutuação do controle do território por essas populações. Hoje temos um problema diferente, é que não temos mais apenas o controle do solo, mas também aéreo. E o solo pode ser controlado por um grupo, e o espaço aéreo e os bombardeios, podem ser feitos por um grupo diferente. O que dificulta o acesso. No momento atual, quem bombardeia os hospitais na Síria são os que controlam o espaço aéreo – que pode ser tanto o governo quanto a Coalizão Internacional [integrada por 60 países].
Em que a luta contra o terrorismo alterou o ordenamento jurídico das organizações humanitárias?
Existem mil formas de ação humanitárias. São muitas as maneiras de ser útil e de responder às necessidades humanas que não são levadas em consideração e que são sanados e resolvidos por uma forma de generosidade e engajamento. Em torno disso, cada organização pode muito bem ter um desejo de ir ajudar em coisas muito diferentes. Existe uma divisão fundamental que é a do conflito armado e ela passa pela neutralidade e porque a neutralidade é importante num conflito armado? Ela permite ir até o adversário. O que mostra o profissionalismo das organizações humanitárias hoje em dia não é ir discutir com o governo de um país em guerra. Porque o governo de um país em guerra dá para fazer um trabalho humanitário de desenvolvimento. Há sempre a necessidade de alguém que possa fazer, por exemplo, um trabalho de coleta seletiva – a vida comum continua, é preciso lembrar, mesmo nas situações de guerra. Mas se a ideia é ir até o adversário, até aquele que foi denominado o “inimigo”, o “diabo”, e nós falamos do terrorismo hoje em dia, mas é preciso dizer que em todas as guerras é preciso demonizar o inimigo, é preciso ser neutro, que você seja reconhecido como neutro pelo direito humanitário que vai permitir dizer ao governo “eu vou até o inimigo”. Porque existem diferentes atores no conflito armado e cabe ao direito humanitário dizer isso. Pois o direito comum só reconhece os estados e hoje o inimigo é principalmente um ator não-estatal.
As organizações humanitárias atuam sob o manto de três princípios: humanidade, neutralidade e imparcialidade. Isto é, a escolha será feita pelo tamanho das necessidades. Do instante em que há hospitais públicos que funcionam e que são capazes de cuidar da população de uma determinada região, não é necessário que MSF monte um hospital específico para essa população. O interesse da organização humanitária é levar cuidado onde as necessidades fundamentais para a sobrevivência da população estão sendo atingidas.
Os hospitais de MSF vêm sendo alvo de ataques constantes desde 2015. Uma situação rara de vermos até então. Como a organização está agindo juridicamente?
Nossos hospitais têm sido vítimas de erros. Primeiro foi o hospital de Kunduz, no Afeganistão. Um erro que matou quase 50 pessoas e deixou vários feridos. Só este ano, 18 hospitais apoiados ou administrados diretamente por MSF foram atacados. Dezesseis deles na Síria, e dois no Iêmen. A justificativa para todos esses ataques tem sido a do erro. Mas eu pergunto: porque tantos erros contra os mesmos alvos? Embora seja muito difícil provar a intencionalidade desses ataques, fica claro que a aplicação do direito humanitário internacional está sendo colocada em xeque pelas legislações antiterrorismo mundo afora. A resolução 2286, aprovada em 3 de maio deste ano pelo Conselho de Segurança, reafirma a garantia de proteção a hospitais, profissionais de saúde e pacientes em zonas de conflito, como determinam as Convenções de Genebra. Mas nada parece ser feito para que os profissionais de saúde e os pacientes sejam respeitados, para que o direito a ser atendido seja respeitado. Violam-se todos os compromissos firmados pelo Direito Internacional Humanitário e isso é inaceitável. Por isso, além de irmos à ONU, estamos falando com todo mundo, para que as pessoas saibam a gravidade da situação que vivemos hoje. Tudo isso é inédito – e, infelizmente, muito perigoso.
Esse cenário atual da guerra – com terrorismo e novos atores – aponta para a necessidade de uma atualização das Convenções de Genebra?
Absolutamente. É claro que, se o direito é um produto da humanidade, ele deve ser colocado exatamente onde deveria estar. Portanto, sim, atualizar as diretrizes que guiam o direito humanitário e as condutas de guerra é algo extremamente importante e urgente. Mas eu gostaria de frisar, e ser bastante enfática quando faço isso, que as Convenções de Genebra ainda não necessárias e devem ser respeitadas enquanto único marco jurídico-legal que temos, como marco avalizado por todas as nações e amplamente debatido entre elas. Não podemos deixar o direito humanitário internacional virar letra-morta, ou então estaremos perdidos, e nos mataremos todos uns aos outros, já que o acesso à ajuda humanitário estará prejudicado pela guerra ao terror e os atos contraterroristas. O que quero dizer? Na ausência de um marco que supere ou melhore o que está nos tratados de Genebra, tudo o que podemos fazer é pedir para que as instituições internacionais respeitem o direito que temos hoje, que respeitem as organizações humanitárias, pois nós queremos ajudar as pessoas.

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JOTA

Françoise Bouchet-Saulnier defende atualização das Convenções de Genebra

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