Opinião e Análise

Alexandre Veronese

No dia 26 de novembro de 2015, por meio da convocação do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi realizada uma interessante reunião, em Brasília, para debater o Exame de Ordem e a educação jurídica. Toda a atual gestão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na figura do presidente Marcus Vinicius Furtado Coêlho, merece o reconhecimento pelo esforço – sempre bem intencionado e pleno de sintonia com o interesse público – de animar as discussões sobre a educação jurídica no nosso país. Este texto objetiva não somente levantar um tema para debate, mas, também, homenagear a gestão da OAB que finda neste ano de 2015.
A discussão da relação entre o Exame de Ordem e a educação jurídica é sempre oportuna, uma vez que a formação dos advogados é uma peça muito importante do quebra-cabeça de organização de um pleno Estado de Direito. Todavia, as discussões havidas no mencionado fórum acabaram tomando um rumo pragmático em prol do acolhimento de sugestões para potenciais reformas de curto prazo em detalhes das provas que compõem o Exame de Ordem unificado para o ingresso nos quadros da advocacia brasileira. Em parte, este rumo é positivo, uma vez deve ser entendida como oportuna a possibilidade da OAB permitir um debate direto e franco com as coordenações das centenas de cursos de graduação em direito do país, além das diversas entidades representativas da educação, que compõem o setor. As últimas acorreram ao debate, tendo comparecido representantes da Associação Nacional de Universidades Públicas (ANUP), da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), da Associação Nacional de Entidades Católicas (ANEC) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Porém, acredito que debate deve ser realizado em uma perspectiva bem mais ampla, relacionada com o futuro da educação jurídica que se pretende construir no Brasil. E tal debate exige reconhecer que o Exame da Ordem é parte relevante do processo. Contudo, que a discussão sobre a formação dos advogados – assim como tem ocorrido no âmbito da magistratura e de suas escolas – é premente e merece propostas de modificação.
Inicialmente, deve ser indicado que o Brasil possui um enorme problema na educação jurídica e no encaixe pedagógico entre a formação acadêmica e a preparação profissional. Quando a Comissão Nacional de Educação Jurídica (CNEJ) veio à imprensa para comunicar algumas questões preliminares sobre a reforma do marco regulatório da educação jurídica, a primeira sugestão que se apresentava era a criação de um terceiro estágio de formação – no caso, obrigatório – aos alunos de direito: o estágio social. O processo sobre a reformulação do marco regulatório da educação jurídica está no Conselho Nacional de Educação, que é o fórum competente para rediscutir a Resolução CNE/CES nº 9/2004 que define as diretrizes curriculares nacionais sobre os cursos de graduação em direito. Voltando ao estágio, cabe notar que os graduandos de direito já são obrigados a realizar um estágio curricular obrigatório, que está previsto na referida Resolução CNE/CES nº 9/2004 e que é identificado com os núcleos de prática jurídica. Além dele, é comum que os discentes realizem estágios profissionais em escritórios de advocacia e órgãos públicos – estes, optativos – ao longo do curso de graduação para robustecer a sua formação profissional. Logo, o estágio social proposto pela OAB – e não defendido junto ao Ministério da Educação (MEC) ou implantado na regulamentação até o presente momento – seria um proposto terceiro estágio. Não interessa discutir se tal estágio seria, ou não, uma boa solução para o problema da formação prática dos estudantes de direito. O ponto central é que a proposta de um estágio social evidencia o grande dilema da educação jurídica brasileira: como conciliar a parte acadêmica com a formação profissional?
Para ter dimensão do dilema, cabe lembrar que temos no horizonte dois grandes modelos internacionais de formação jurídica que lidam de modo diverso com a preparação profissional dos advogados. O primeiro modelo é muito peculiar e foi construído nos Estados Unidos da América. Naquele país, o curso de direito é uma pós-graduação, que deve ser cursada após a realização de um bacharelado. Ele é conhecido como “juris doctor” (o JD). Ele é um curso de três anos, usualmente, que padece do mesmo dilema brasileiro: a tensão entre as demandas por uma formação profissional e em prol da excelência acadêmica. Os cursos norte-americanos são fortemente avaliados pela “American Bar Association”, a qual possui o poder de “acreditação”, ou seja, de certificação de tais cursos em relação aos seus padrões para que seus egressos possam ser considerados como potenciais candidatos ao ingresso nos quadros da advocacia. É uma certificação de cunho profissional. O grande dilema daquele país está relacionado com os custos dos cursos, pois as exigências para as faculdades de direito são altas e as expectativas de ganhos por parte dos egressos são – em tempos recentes – decrescentes.
Todavia, como os Estados Unidos da América lidaram com o problema grave de fornecer excelência acadêmica e formação profissional? A solução foi atender as exigências de excelência acadêmica, típicas das universidades daquele país e as demandas feitas pela “American Bar Association”. Ao buscar atender os dois conjuntos de exigências, os cursos de direito dos Estados Unidos da América se tornaram muito caros e, por outro lado, eles também possuem uma invejável estrutura. Portanto, os docentes (professores titulares), de modo geral, são muito bem remunerados e existe uma ampla estrutura administrativa e acadêmica de suporte. Mesmo assim, existem críticas aos cursos naquele país, baseados no diagnóstico de que estes seriam excessivamente acadêmicos. Estas críticas ganharam força no mundo corporativo e nas grandes firmas de advocacia recentemente. As bancas e as empresas gostariam de receber advogados melhor preparados ao desempenho das funções profissionais; todavia, concordam que os cursos são muito caros. Assim, o natural seria postular uma diminuição dos padrões acadêmicos. A questão é bem complicada e a “American Bar Association” ainda está intensamente envolvida em debates buscar a solução ao dilema.
O outro modelo é o europeu. De uma forma geral, os cursos de graduação na Europa – em especial após o Processo de Bolonha, acordo regional que unificou os padrões acadêmicos daqueles países – possuem três anos, complementados por mais dois anos de mestrado, sendo este dotado de uma opção de percurso acadêmico ou profissional. O percurso acadêmico, obviamente, é uma preparação ao doutorado acadêmico, pelo qual se espera a formação de um pesquisador em direito. Os percursos profissionais possuem variedade e têm foco em um futuro ingresso em atividades práticas. No entanto, os cursos de graduação em direito europeus são fortemente acadêmicos, havendo a compreensão da dinâmica profissional como uma fase posterior à graduação, a ser realizada com atenção às opções do egresso. Logo, um egresso de uma graduação em direito, que pretenda atuar na magistratura, buscará ingressar na escola da magistratura para ser preparado para atuar naquela função. O mesmo ocorre com a advocacia. O ingresso nos quadros da Ordem dos Advogados se dá por meio de um processo que envolve provas para um curso com mais de um ano, composto fortemente pela supervisão prática de advogados experientes, além da aprovação em uma avaliação final. Tudo é sempre conduzido pela entidade corporativa. Ainda que existam críticas ao modelo europeu – e o custo alto também é um problema –, ele resolve a tensão entre a formação acadêmica e a preparação profissional de forma eficiente.
De fato, os modelos acima indicados demonstram duas maneiras de construir uma relação entre a Ordem dos Advogados e a educação jurídica. A primeira se dá pelo reconhecimento de que a certificação da Ordem dos Advogados – nos Estados Unidos da América – não é obrigatória, mas é uma maneira relevante de fazer com que a escola oferte um curso que será aceito por aquela corporação quando os egressos buscarem sua inserção profissional. Tal situação ganha especial ênfase quando se tem em vista que a função de advogado, nos Estados Unidos da América, é a porta de entrada às demais funções judiciárias – promotoria e magistratura, por exemplo. O outro modelo – europeu – atribui à Ordem dos Advogados o dever de formar os seus quadros, assim como as demais escolas profissionais (magistratura, por exemplo) possuem tal obrigação.
O Brasil possui um modelo que precisa ser repensado. Aqui, nossas escolas não são verdadeiramente certificadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, como nos Estados Unidos da América, e nem tampouco a OAB oferta a formação profissional aos ingressantes nos seus quadros, como na Europa.
De acordo com nossa regulamentação, quem prepara o advogado? Nos termos da regulamentação vigente, produzida pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação, é uma tarefa própria e indelegável dos próprios cursos de graduação. Com tal opção, vivemos um sistema pleno de ficções. E por meio delas, a regulamentação vigente – e a crença generalizada – atribui aos cursos de graduação a responsabilidade para formar egressos em direito que sejam aptos ao exercício da advocacia, do Ministério Público, da magistratura, das atividades policiais e etc. A pressuposição é que o egresso sai de um curso de direito pronto para uma ampla e variada gama de funções diversas na vida profissional, o que é – evidentemente – improvável. Além disso, o curso de graduação – nos termos da Resolução CNE/CES nº 9/2004 pretende que, após cinco anos em tempo parcial, os egressos terão condições acadêmicas para efetivar, também, estudos de pós-graduação em sentido estrito. Este sistema precisa ser repensado.
Desta forma, ao ouvir sugestões no sentido de que o Exame ao ingresso nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil deva ser aproximado, em sua substância, ao Exame Nacional de Desempenho – ENADE – se tem a dimensão de que o modelo brasileiro está numa opção muito diferente ao que se faz nos dois modelos citados. A avaliação de suficiência acadêmica dos cursos dos Estados Unidos da América e da Europa não é realizada pelas suas entidades corporativas. Isto seria exacerbar das suas funções. Os padrões de excelência acadêmica não podem, por óbvio, ser aferidos pela entidade que congrega a corporação dos advogados ou de qualquer outro grupo profissional jurídico. Esta é uma tarefa que envolve outra lógica, afinal. Esse ponto de vista foi bem indicado – no evento do dia 26 de novembro de 2015 – pela oportuna fala de Sandro Alex Simões, coordenador do curso de graduação em direito do Centro Universitário do Pará (CESUPA) e pesquisador da área de educação jurídica. A Ordem dos Advogados do Brasil poderia ofertar novas propostas bem mais interessantes e inovadoras se focalizar na apreciação crítica das experiências estrangeiras com atenção ao problema da preparação profissional à advocacia.
A minha proposta para debate seria pensar em algum curso formativo posterior ao Exame de Ordem, que realmente preparasse os egressos do curso de graduação em direito. O ideal seria o verdadeiro ingresso no quadro da Escola Nacional de Advocacia, que oferecia cursos de capacitação nas suas seções locais, além de outras atividades de educação profissional continuada, ao longo da carreira dos advogados. Todavia, se estas forem de caráter compulsório, como seria o modelo europeu, isto evidenciaria o problema dos custos. Tal curso envolveria mais uma barreira ao ingresso na atividade profissional e, ainda, aumentaria os custos dos estudantes de direito. De outro lado, o modelo dos Estados Unidos da América é impraticável no Brasil, uma vez que a OAB não possui competência legal para certificar ou para acreditar qualquer curso de graduação e nem, tampouco, ela pode fazer exigências de caráter vinculativo, nos termos da legislação vigente. Logo, pensar na transposição de um modelo no qual a “American Bar Association” realiza uma forte atividade de fiscalização indireta por meio de certificação com fins profissionais se torna muito difícil. É compreensível que tal proposta seja rechaçada pelo prisma dos custos. Porém, é possível desenhar alguma forma de colaboração mais efetiva entre o sistema educacional e a OAB do que o modelo atual, como muito bem indicou Rômulo Weber, da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) no evento da Ordem dos Advogados do Brasil. Assim, continuo – junto com o Rômulo Weber e outros colegas – a crer na possibilidade de que seja debatida alguma proposta para o Brasil que seja próxima da experiência da Europa, adaptada às necessidades locais.
Todavia, tenho certeza de que existem muitas opções interessantes! Qual seria a melhor solução? Não há uma resposta pronta e acabada, infelizmente. Creio que o tema merece debates mais detidos, com mais atenção à formação dos advogados, ao invés de buscar debater a qualidade acadêmica dos cursos por meio do Exame de Ordem. Devemos criar sinergias e não sobreposições. Colaboração e não concorrência. Integração em um sistema em prol da educação jurídica que não conflite com a preparação profissional. Assim, o evento criado pela Ordem dos Advogados do Brasil foi muito interessante por permitir a realização de um debate franco – e inicial, espero – sobre o Exame de Ordem e a educação jurídica brasileira.

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JOTA

Dificuldades para conciliar a formação acadêmica e a preparação profissional 

Advogados e ensino jurídico

Dificuldades para conciliar a formação acadêmica e a preparação profissional