Ana Flauzina

Há coisas que nos marcam na vida. Os amores são uma delas. Do meu primeiro namorado, trago a memória da inocência, da descoberta, das conversas sem fim. Nesses diálogos, lembro de meu preto me falar de sua infância, de como a falta era uma presença constante, de como sua mãe o fazia dormir na hora do almoço quando as panelas estavam vazias. Numa madrugada, enquanto ele chorava essa dor sufocada soluçando recostado no meu peito, com a confiança que só os apaixonados têm, eu me lembrei de minha avó e do que ela repetia quando me contava histórias de sua infância: “o sono mata a fome”, me dizia a minha velha com os olhos marejados.
Essas duas pessoas, unidas pelo meu amor e separadas pelo tempo, carregam uma narrativa comum. A fome é mesmo uma realidade inescapável dos diários das pessoas negras no Brasil. Mas se a falta de acesso à alimentação básica é um dado concreto, que maltrata, que saqueia a dignidade, que pune, não me parece ser suficiente falar só de quem a sofre. Como um dia disse Carolina Maria de Jesus: “quem inventou a fome são os que comem”. Por isso, para entender porque a fome segue estruturando a vida de gerações de pessoas nesse país, é preciso olhar para quem a cria, quem a sustenta, quem dela se nutre.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Hoje, em um Brasil devassado pela pandemia da Covid-19, que nesse momento soma mais de 280.000 vítimas fatais, essa resposta se faz ainda mais urgente. Com um presidente da República investido no incremento do genocídio negro, enfrentamos diariamente os efeitos do descaso com o sistema de saúde e a negação da letalidade do vírus. O racismo, que há muito opera como vírus letal, determina a forma como essa tragédia se desenha na prática.
<blockquote class="jota-article__eye">De acordo com levantamento feito pela Agência Pública, o Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde produz assimetrias obscenas: a cada duas pessoas brancas vacinadas, apenas uma negra recebeu a vacina, considerando as 8,5 milhões de pessoas que receberam a primeira dose.</blockquote>
Enquanto o programa de vacinação segue a passos lentos e desordenados, o auxílio emergencial é negociado de forma calculada. Afinal, entre nós, sabe-se que a fome é uma moeda política valiosa capaz de eleger e desestabilizar governos. Em um jogo de alta tensão protagonizado pelos desmandos do Executivo Federal e de um Legislativo sempre em busca da melhor oferta no mercado, instala-se o quadro de extrema insegurança alimentar que vitima grande parte da população.
Diante dessa forte crise humanitária, há que se questionar a atuação do sistema de justiça. Aqui, é importante destacar algumas decisões importantes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como, por exemplo, as do julgamento da ADPF (709), ajuizada pela Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB) em junho de 2020 e da (ADPF 742) ajuizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em setembro do mesmo ano. Em ambos os casos, o Tribunal se manifestou de forma unânime, acolhendo os pedidos para a adoção de medidas de defesa da saúde, incluindo ações emergenciais para garantir a segurança alimentar das comunidades tradicionais.
Mas se o Judiciário se posiciona de forma enérgica na contenção das barbáries produzidas pelos outros poderes, quando se trata de suas ações, o que se verifica é a soma com as lógicas do racismo que produz dor e indignidade pelo país afora. Ou seja, temos um sistema de justiça que atua no paradoxo entre medidas que, de um lado, mantém sua imagem civilizatória e, de outro, sustentam a manutenção de nossos abismos sociais, garantidos por meio de decisões judiciais que chancelam a tortura, a fome e a morte.
Para ilustrar essa questão, trato do debate que gira em torno da covid-19 e das prisões. Lidando com milhares de ações em todo o país que requerem a liberdade de pessoas encarceradas - muitas delas ajuizadas por presos(as) provisórios(as) e que fazem parte de grupos de risco -  o que se verifica, na prática, é um Judiciário que segura a chave dos presídios condenando centenas de pessoas à morte. As denúncias feitas pelos(as) presos(as) e seus familiares, que se acumulam sob o olhar condescendente do Ministério Público e da Defensoria pública em vários Estados, registram o aumento das violações no cárcere. Como tem sido reportado pelo projeto Infovirus, que acompanha o cotidiano da vida prisional durante a pandemia, além dos relatos constantes de tortura, piora nas condições de salubridade e falta de assistência médica, há o grito generalizado da fome como um dado patente em boa parte dos presídios do país.
Na contramão desse quadro degradante, me alegra ver que, apesar de tudo, há ainda muitos esforços dirigidos para a garantia da vida.
<blockquote class="jota-article__eye">Lançada nessa terça-feira, no site temgentecomfome.com.br, a campanha “Tem gente com fome”, articulada pela Coalizão Negra por Direitos em parceria com a Anistia Internacional e outras entidades da sociedade civil, promove um financiamento coletivo para garantir a distribuição de cestas básicas para mais de 200.000 famílias em todas as regiões do Brasil.</blockquote>
Em um período em que o vírus começa a contaminar nossa esperança, iniciativas sérias como essa merecem apoio e reconhecimento.
Para mim, levar a concretude do alimento a quem precisa renova os horizontes da cooperação, do compromisso e da humanidade. Além da denúncia dos desmandos e da cobrança das instâncias oficiais, há que se abrir espaço para ações coletivas engajadas, nos bairros, nas ruas, nas esquinas por onde cada um(a) de nós circula, para nos lembrarmos de nossa força transformadora e nos afastarmos da energia de impotência política que paira pelo ar.
Mais do que isso, como alguém que trafega pelos labirintos do fazer jurídico, é a partir desse tipo de ação que me reconecto com o sentido mais pleno e fiel do que é fazer justiça. Um tipo de justiça cultivado por uma sabedoria ancestral que nos trouxe até aqui. Uma justiça baseada na partilha como um princípio, não como generosidade. Uma justiça que, acima de tudo, me conecte com os sentidos da igualdade e da dignidade: em nome da minha avó querida, em nome da ternura de meu primeiro namorado e de todas as mulheres negras que ainda hoje ninam seus(suas) filhos(as) para que, na ausência do pão, possam se nutrir com seu amor.
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O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=1062owtx9o4
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covid-19

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JOTA

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