Rakel Duque

No último dia 14, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) determinou o trancamento de ação penal que apurava as circunstâncias de um aborto (artigo 124, do Código Penal), em razão da quebra do sigilo profissional entre médico e paciente.  
De acordo com a notícia veiculada pelo próprio site do STJ[1], a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez, quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu comunicar o fato à polícia. Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente, para comprovação de suas afirmações, e arrolado como testemunha. Com isso, o Ministério Público propôs a ação penal e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a paciente foi pronunciada. 
O assunto foi tratado de forma tão sigilosa, que sequer o número do processo foi divulgado, apesar de representar um importante precedente sobre tema do sigilo médico. Sabe-se, contudo, que o colegiado da 6ª Turma entendeu – acertadamente — que a iniciativa do médico em comunicar o fato supostamente praticado pela paciente, bem como apresentar o prontuário médico da paciente e, ainda, prestar seu depoimento na qualidade de testemunha violaram o artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) e geraram nulidade das provas reunidas nos autos.  
O sigilo médico foi quebrado, portanto, de duas formas: 1) mediante a palavra do médico, seja pela sua iniciativa na comunicação do fato, ou na qualidade de testemunha; e 2) pela apresentação de documentos médicos, que podem incluir prontuários, boletins de atendimento, imagens de câmeras de segurança que registram atendimentos a pacientes, ou qualquer formalização documental do atendimento prestado ao paciente. 
O artigo 207 do CCP prevê que as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão devam guardar segredo são proibidas de depor, salvo se desobrigadas pelo próprio paciente.  
O Código de Ética Médica, ao regulamentar o sigilo profissional do ofício, prevê, em seu artigo 73, que é vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. O parágrafo único do referido artigo ainda esmiuça hipóteses em que a proibição persiste: 
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.<span data-ccp-props="{&quot;134233117&quot;:false,&quot;134233118&quot;:false,&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:993,&quot;335559738&quot;:288,&quot;335559739&quot;:288,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559745&quot;:120,&quot;335559746&quot;:120,&quot;469777462&quot;:[1701],&quot;469777927&quot;:[0],&quot;469777928&quot;:[1]}"> 
De modo geral, a palavra do médico deve ser mantida em sigilo, nos termos do artigo 207, do CPP, salvo se a pessoa paciente der anuência ao seu testemunho. Já os documentos médicos podem ser objeto de quebra de sigilo, mediante autorização do paciente ou decisão judicial fundamentada. 
O artigo 89 do já mencionado Código de Ética Médica dispõe ser vedado ao médico “liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente”. O § 1.º do artigo 89 ainda prevê que, na hipótese de instrução de procedimento criminal, o prontuário médico “será encaminhado ao juízo requisitante”, o que reforça a tese de que o documento só pode ser entregue após manifestação da pessoa paciente, ou de determinação judicial[2]. 
A jurisprudência do STJ há muito assenta que “o sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme depreende-se da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. A hipótese dos autos abrange as exceções, considerando que a requisição do prontuário médico foi feita pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida” (RMS 11.453/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, j. 17.jun.2003, g.n.). 
O médico que viola o sigilo profissional pode eventualmente responder às penas do artigo 154, do Código Penal, caso revele, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Destaca-se que a investigação, neste caso, se procede mediante representação. 
No caso discutido pelo STJ, a corte determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas pertinentes.  
O ministro Sebastião Reis Júnior, relator, destacou que “o médico que atendeu a paciente se encaixa na proibição, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão intelectual, bem como de depor sobre o fato como testemunha”. 
Há, como em toda regra, exceções, que obrigam médicos e hospitais a quebrarem o sigilo médico, o que representa, juridicamente, a justa causa para a violação do dever de sigilo. Tais hipóteses excepcionais estão previstas em dispositivos que ordenam as unidades de atendimento à saúde públicas e privadas a comunicar casos de violência contra crianças e adolescentes (cf. <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm#:~:text=Art.%20245.%20Deixar,caso%20de%20reincid%C3%AAncia.">artigo 245, do ECA</a>), contra pessoas idosas (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm#:~:text=Art.%2019.%20Os%20casos%20de%20suspeita%20ou%20confirma%C3%A7%C3%A3o%20de%20viol%C3%AAncia%20praticada%20contra%20pessoas%20idosas%20ser%C3%A3o%20objeto%20de%20notifica%C3%A7%C3%A3o%20compuls%C3%B3ria%20pelos%20servi%C3%A7os%20de%20sa%C3%BAde%20p%C3%BAblicos%20e%20privados%20%C3%A0%20autoridade%20sanit%C3%A1ria%2C%20bem%20como%20ser%C3%A3o%20obrigatoriamente%20comunicados%20por%20eles%20a%20quaisquer%20dos%20seguintes%20%C3%B3rg%C3%A3os">Cf. artigo 19, do Estatuto da Pessoa Idosa</a>), ou contra mulheres (Cf. <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.778.htm">Lei 10.778/2003</a>). Tais dispositivos legais buscam resguardar a integridade física e os interesses das pessoas em situação de vulnerabilidade, em casos nos quais a pessoa paciente é vítima, e não agressor(a).  
Outra exceção está descrita no <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm#:~:text=%C2%A0%C2%A0%20II%20%E2%80%93%20crime%20de%20a%C3%A7%C3%A3o%20p%C3%BAblica%2C%20de%20que%20teve%20conhecimento%20no%20exerc%C3%ADcio%20da%20medicina%20ou%20de%20outra%20profiss%C3%A3o%20sanit%C3%A1ria%2C%20desde%20que%20a%20a%C3%A7%C3%A3o%20penal%20n%C3%A3o%20dependa%20de%20representa%C3%A7%C3%A3o%20e%20a%20comunica%C3%A7%C3%A3o%20n%C3%A3o%20exponha%20o%20cliente%20a%20procedimento%20criminal%3A">artigo 66, inciso II, da Lei de Contravenções Penais</a>, que prevê a prática de infração penal, na modalidade omissiva, daquele que deixa de comunicar, à autoridade competente, crime de ação pública de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente/paciente a procedimento criminal.  
A conclusão a que se chega, portanto, é a de que o sigilo profissional é um dever do médico e um direito do paciente, que se comunica com a inviolabilidade da intimidade, bem como com o princípio da não auto-incriminação e com o direito universal de acesso à saúde. A violação desse dever de sigilo deve ocorrer apenas no melhor interesse do paciente, em casos expressamente previstos pela legislação, a depender da sua posição no caso concreto: se vítima de um crime, ou autor do delito.
<hr />
[1] STJ. “Sexta Turma tranca ação penal por aborto ao ver quebra de sigilo profissional entre médico e paciente”. Publicada em 14.03.2023. Disponível em <a class="Hyperlink SCXW266016745 BCX0" href="https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/14032023-Sexta-Turma-tranca-acao-penal-por-aborto-ao-ver-quebra-de-sigilo-profissional-entre-medico-e-paciente.aspx" target="_blank" rel="noreferrer noopener">https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/14032023-Sexta-Turma-tranca-acao-penal-por-aborto-ao-ver-quebra-de-sigilo-profissional-entre-medico-e-paciente.aspx</a> 
[2] Existem outros dispositivos disciplinares a respeito do sigilo do prontuário médico, dos quais destaca-se a Resolução n.º 1.605/2000 do CFM dispõe, em seu artigo 1.º, que “o médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica”.

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Violação do dever de sigilo deve ocorrer apenas no melhor interesse do paciente, em casos expressamente previstos pela lei

STJ reforça importância do sigilo médico no processo penal

Violação do dever de sigilo médico deve ocorrer apenas no melhor interesse do paciente, em casos expressamente previstos pela lei