Gustavo Alano Moretti

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, recentemente, no RE nº 603.136/RJ<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a constitucionalidade do enquadramento dos contratos de franquia como serviços de qualquer natureza, passiveis de tributação por meio do ISS, de competência dos municípios.
Conforme entendeu o STF, é permitida a incidência do ISS sobre contratos de natureza “híbrida”, que regulam tanto prestações de fazer como de dar. Considerando que os contratos de franquia são compostos por um complexo de obrigações, de dar e de fazer, e, portanto, de natureza híbrida, sua inclusão na lista de serviços tributáveis anexa à Lei Complementar nº 116/2003 estaria em plena conformidade com a Constituição.
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Não obstante o entendimento exposto acima, o presente artigo não tem como objetivo discutir a correção ou não da decisão proferida pelo STF, mas sim analisar uma passagem do voto do ministro relator, que trata a respeito da interpretação das regras de competência tributária.
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Conforme exposto em seu voto, um ponto de preocupação do ministro relator era o de que, ao declarar a inconstitucionalidade da cobrança de determinado tributo sobre certas atividades econômicas, o STF estaria a criar “vazios no sistema tributário”, fazendo com que determinadas realidades ficassem livres de qualquer incidência tributária. O ministro cita os casos da locação de móveis e dos próprios contratos de franquia, conforme segue:
É que, pela decisão de inconstitucionalidade, estamos a criar “vazios” no sistema tributário, decotes na já combalida estrutura fiscal dos estados e municípios, fatos livres de tributação. Cite-se como exemplo o precedente da não incidência de ISS sobre a locação de bens móveis. Sobre essa atividade, o município não pode cobrar o ISS, tampouco o estado pode exigir o ICMS. De certo modo, o mesmo aconteceria com os contratos de franquia, na hipótese de não se admitir a incidência do imposto municipal.
<blockquote class="jota-article__eye">Com base no trecho acima, questiona-se: pode o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo, ainda que nobre, de evitar que algumas realidades econômicas fiquem livres de incidência de tributos, estender os limites estabelecidos pelas regras de competência?</blockquote>
O questionamento posto acima ganha ainda mais relevância no momento atual, considerando que novas tecnologias têm modificado as relações entre as pessoas de formas que antes sequer poderiam ter sido imaginadas pelo constituinte – ainda que não seja o caso dos contratos de franquia.
Ainda assim, a resposta para essa pergunta, a meu ver, deveria ser negativa, por duas principais razões.
Em primeiro lugar, a Constituição optou por fazer a distribuição das competências tributárias por meio de regras, em um sistema rígido que descreve pormenorizadamente as materialidades sobre as quais seria possível a instituição de impostos.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> A escolha dessas materialidades teve como objetivo possibilitar a tributação de fatos presuntivos de riqueza, que indicassem a capacidade do cidadão de contribuir com o Estado, para que este faça frente às despesas públicas gerais.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Ocorre, entretanto, que não é qualquer manifestação de riqueza que implica na possibilidade de tributação, mas somente aquelas elencadas nas regras de competência tributária.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Isto significa que não existe um imposto sobre capacidade contributiva.
Ou seja, por mais nobre que seja a finalidade perseguida pelo legislador, ele não pode extrapolar os limites impostos pela Constituição, tributando o contribuinte pelo simples fato de possuir riqueza.
Nesse sentido, caso se entenda que os fatos elencados na Constituição não se compatibilizam com a complexidade da realidade atual, em que as novas tecnologias revolucionaram as relações comerciais, cabe a sua alteração por meio de emenda constitucional – desde que, é claro, dentro dos limites impostos pelas clausulas pétreas e demais garantias constitucionais asseguradas aos contribuintes.
Portanto, não é papel do Judiciário “corrigir” a Constituição, mas sim cabe ao Poder Legislativo, por meio de seus representantes eleitos democraticamente pelo povo, adaptá-la à nova realidade.
<blockquote class="jota-article__eye">O ponto a que se quer chegar, é que, no voto do ministro relator, é atribuído um poder ao STF que ele não tem, ainda que dentro do seu papel institucional de “defesa da arrecadação tributária”, nas palavras do ministro.</blockquote>
Em segundo lugar, cabe lembrar que, apesar da rigidez do sistema tributário, o Constituinte previu a possibilidade de incidência de impostos sobre realidades econômicas além daquelas elencadas na Constituição. Nesse sentido, o artigo 154, inciso I, da Constituição estabeleceu que é de competência residual da União, por meio de lei complementar, a instituição de impostos (desde que não-cumulativos) sobre fatos geradores e bases de cálculo nela não contemplados.
Ora, admitir que o STF molde as competências tributárias, de forma a possibilitar a sua incidência sobre realidades econômicas não previstas na Constituição, significa inutilizar completamente a referida regra. Se todas as realidades pudessem ser tributadas pelo Estado, ampliando-se o campo de incidência das materialidades já descriminadas, não haveria razão para a existência de uma competência residual.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Caso se entenda que as materialidades previstas na Constituição não dão conta de abarcar toda a complexidade da realidade atual, cabe ao Poder Legislativo, novamente, editar lei complementar.
Em conclusão, concordando ou não com o resultado do julgamento do RE nº 603.136/RJ, o ponto é que o trecho do voto do ministro relator acima analisado não parece compatibilizar-se com o Sistema Tributário Nacional, na forma como estabelecido pela Constituição.
Caso o referido entendimento seja utilizado como base para o julgamento de outras causas semelhantes, que envolvam uma possível extrapolação de competência por parte de um dos entes federados, o contribuinte enfrentará restrições injustificadas no seu patrimônio e em sua liberdade, hipótese que a Constituição, justamente, visou a evitar ao distribuir de forma rígida as competências tributárias.
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Referências
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 603.136/RJ. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 29/05/2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 218-219.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SCHOUERI, Luís Eduardo Schoueri. Direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 260.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LEÃO, Martha Toribio. Direito fundamental de economizar tributos: legalidade, liberdade e solidariedade. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 142.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ÁVILA, Humberto. Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 33.

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JOTA

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