Paulo Fernando Pinheiro Machado

<footer>
<blockquote class="jota-article__quote">"Bernardo de Chartres costumava dizer que nós [os Modernos] somos como anões empoleirados nos ombros de gigantes [os Antigos], e assim podemos ver mais e mais longe do que estes. E isso não é por causa da agudeza de nossa visão ou da estatura de nosso corpo, mas porque somos levados para o alto e elevados pela magnitude dos gigantes."
John of Salisbury</blockquote>
Bernardo de Chartres já no século 12 havia definitivamente resolvido a famosa “querela dos antigos e dos modernos”, que agitou a Academia Francesa no século 17: nós, os contemporâneos, só podemos ver mais longe porque nos apoiamos nas obras daqueles que nos antecederam, os antigos. O progresso do conhecimento e da humanidade somente pode se dar em um processo de integração e de superação dos antigos, baseado no respeito e na gratidão pelo esforço daqueles que nos precederam. Do contrário, trata-se de um processo de barbárie, de destruição pura e simples do esforço de construção e manutenção da civilização.
Nesse espírito e no âmbito das celebrações do Bicentenário da Independência, a Comissão de Filosofia do Direito do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), sob a presidência da professora Maria Lúcia Gyrão e organização do professor Francisco Amaral, está a promover um ciclo de palestras intitulado “O Pensamento Sociológico-Jurídico do Brasil Independente”. Pelo ciclo, até o mês de dezembro do corrente ano, estão-se a apresentar as principais escolas de pensamento que marcaram a formação e a trajetória da construção do direito pátrio. A leitora poderá assistir às gravações das palestras no <a href="https://www.youtube.com/c/tviab/featured">canal do IAB no YouTube</a>.
Coube ao autor destas mal-traçadas, na palestra do mês de outubro, discorrer um pouco sobre o culturalismo jurídico e a contribuição original de Miguel Reale para a filosofia do direito. O vídeo do evento, que contou com a abertura do presidente do IAB, dr. Sydney Sanches, pode ser assistido <a href="https://www.youtube.com/watch?v=ZCaOssGaGZU&amp;ab_channel=TVIAB.InstitutodosAdvogadosBrasileiros">aqui</a>. O culturalismo é a escola filosófica para a qual o direito não é apenas uma estrutura normativa formal, desprovida de valores, como era a forma que o positivismo o encarava. Ao contrário, o culturalismo procura abarcar o fenômeno jurídico na sua integralidade, como fruto do desenvolvimento cultural de um povo ou de uma nação.
O pai do culturalismo foi o jurista e político alemão Gustav Radbruch. Membro do Reichstag pelo Partido Social-Democrata, Radbruch foi ministro da Justiça da Alemanha de Weimar entre 1921 e 1923. Com a ascensão de Hitler ao poder, Radbruch foi perseguido e demitido de sua posição como professor de Direito Penal da Universidade de Heildelberg, partido para o exílio na Inglaterra. A sua demissão ocorrera de maneira legalista, no bojo da edição da famigerada “Lei para a Restauração do Serviço Público Profissional”.
Radbruch, assim, sentira o peso e o perigo da neutralidade do direito, advogada pelo positivismo jurídico. A separação entre norma e valor dava azo a que a lei se tornasse uma mera folha de papel, na qual as regras mais brutais e injustas poderiam ser inscritas. Era preciso, pois, reintroduzir o elemento valorativo na filosofia do direito, visto não mais em sua normatividade pura apenas, mas como fruto da cultura de um povo nitidamente delimitado no tempo e no espaço. Nascia, assim, o culturalismo jurídico.
A reconciliação entre valor e norma, contudo, não se dá de maneira automática. Fruto ainda da tradição filosófica moderna, que parte do pressuposto da “Guilhotina de Hume”, isto é, da separação total entre fato e valor, era preciso encontrar uma solução para o problema de como inter-relacionar o direito com a moral. E a chave dessa resposta, ao menos no nível da abstração teórica, foi dada por Miguel Reale.
Miguel Reale, então, propõe uma solução original para esse dilema, na maior contribuição do pensamento brasileiro à filosofia jurídica universal: a teoria tridimensional do direito. Para Reale, era preciso superar os binômios fato/valor e valor/norma em uma nova estrutura tridimensional, que reconhecesse que fato, valor e norma se encontravam integrados na realidade concreta, mas separados apenas no nível da abstração teórica. E o elemento normativo, desenvolvido pelo positivismo kelseniano, estaria, agora, apto a atuar como o elemento mediador entre o fato e o valor, que se interrelacionavam em uma dialética de implicação e polaridade, mediada pela norma jurídica.
A teoria tridimensional do direito, sem dúvida um marco crucial no desenvolvimento da compreensão humana acerca da realidade que nos cerca, como bem asseverou o professor Paulo Dourado de Gusmão, foi um esforço de fornecer uma explicação total, integral, do fenômeno jurídico. O professor Gusmão, contudo, com grande acuidade, remarca que tal esforço falhara, porque, segundo ele, é a essência mesma da cultura estar inacabada.
Nesse sentido, o objetivo inicial do culturalismo, que era o de introduzir o valor na norma jurídica para que a brutalidade legalista do regime nazista, que gerou o Holocausto, a Segunda Guerra Mundial, e ceifou milhões de vidas pelos extremismos do século 20, falhara. Ao partir do pressuposto, falso como a filosofia antiga e medieval já o havia demonstrado, da clivagem absoluta entre fato e valor, a introdução do elemento cultural na análise do direito não o torna mais estável. Ao contrário, o elemento de valor cultural, tanto em Radbruch como em Reale, não tem fundamento. Trata-se, para esses autores, de um fenômeno mutável, instável e que, em linhas gerais, em nada se distingue do conceito de ideologia de Marx ou de Althusser. A cultura, vista em sua normatividade abstrata, pode muito bem ser a cultura do comunismo ou a do nazifascismo.
O culturalismo, e a teoria tridimensional do direito, assim, ao partirem de um pressuposto filosófico falso, o da “Guilhotina de Hume”, produzem uma visão do fenômeno jurídico que é instável e propenso ao darwinismo extremista: em uma sociedade multicultural na qual o valor a ser inserido na norma jurídica é aberto, como na grundnorm kelseniana, o direito continua, como no positivismo, a ser apenas o locus da mais brutal luta ideológica.
É somente pela reinserção de elementos mais perenes, de caráter metafísico, na estrutura do direito, que se poderá ter uma visão mais realista e ao mesmo tempo mais estável do fenômeno jurídico. E a metafísica, note a leitora, é justamente o elemento rejeitado pelo culturalismo. O pensamento jurídico brasileiro, assim, deverá, nas próximas décadas, produzir um esforço de incorporação da metafísica no direito, eliminando o falso pressuposto da clivagem entre fato e valor e dando-lhe maior força e perenidade para a defesa de valores eternos e imutáveis. O direito, assim, deverá ser encarado para a além da sua tridimensionalidade, como um poliedro de múltiplas formas, em um movimento contínuo, porém regular e circular, em torno de um eixo fundamental, perene e imutável, de natureza metafísica.
Podemos ver mais longe, como diria Bernardo de Chartres, porque somos anões montados nos ombros de gigantes. Miguel Reale e o culturalismo foram marcos na construção do pensamento jurídico brasileiro, além de nossa primeira contribuição autóctone à filosofia universal. É preciso, pois, valorizar e integrar esse marco em uma nova síntese que, ao incluir outros elementos, como a metafísica, prossiga na construção do pensamento e da civilização brasileiras. Uma civilização não se constrói pela destruição da tradição e das instituições, mas sim pela integração delas em uma nova leitura que não rejeite, mas que valorize e enalteça, o passado. O contrário é a barbárie. Roma die uno non aedificata est.[1]
<hr />
[1] Roma não foi construída em um dia.
</footer>

miguel reale wikimedia commons

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A importância de se preservar as instituições e a tradição jurídica brasileiras

Revisitando Miguel Reale e o culturalismo

A importância de se preservar as instituições e a tradição jurídica brasileiras