Cláudio Barbosa

Edvaldo Fernandes da Silva

O propósito deste breve artigo é discutir se as resoluções editadas pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado">Senado Federal</a> para dispor sobre sua organização e funcionamento se enquadram no conceito de lei federal para fins de cabimento de recurso especial. Essa problemática será analisada à luz da missão constitucional e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
<a href="https://www.stj.jus.br/sites/portalr/Institucional/Gestao-estrategica/Missao-visao-e-valores">A missão constitucional do STJ</a> é uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional em âmbito nacional. Trata-se de missão da maior relevância, uma vez que a unidade política, econômica e social de uma nação depende, em grande medida, de sua unidade jurídica e da eficácia de suas leis em todo o território nacional.
Uma das principais ferramentas de consecução dessa missão constitucional é o julgamento de recursos especiais, sobretudo sob a sistemática dos recursos repetitivos. É por meio do julgamento dos recursos especiais que o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a> pode controlar diretamente a interpretação jurídica das leis federais conferidas pelos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal. É essa atribuição que faz a Corte da Cidadania um dos órgãos de vértice do Poder Judiciário brasileiro.
No entanto, com o intuito de reduzir a quantidade de recursos apreciados, o STJ tem cabe vez mais <a href="https://www.conjur.com.br/2020-mai-08/gustavo-favero-vaughn-jurisprudencia-defensiva">criado entraves ao acesso à Corte por meio do recurso especial a partir da chamada jurisprudência defensiva</a>. Se por um lado esse fenômeno pode ter o nobre objetivo final de melhorar a qualidade das decisões de mérito proferidas, por outro lado o efeito colateral é a rejeição do exame de controvérsias importantes em detrimento da própria missão constitucional do STJ. É isso que ocorre com a problemática analisada neste artigo.
Na década de 1990, a jurisprudência do STJ era firme ao se posicionar pelo cabimento de recurso especial fundado na interpretação de Resoluções do Senado. Isso porque elas são atos normativos primários, com fundamento de validade expresso na Carta Constitucional ao lado das leis federais complementares, das leis federais ordinárias ou mesmo dos decretos legislativos autônomos (art. 59, XIII, da Constituição Federal). Por essa razão, não há falar em hierarquia entre essas espécies normativas. Observe-se, a propósito, ementa de acórdão representativo do entendimento da época:
<blockquote class="jota-article__citation">PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. A EXPRESSÃO "LEI FEDERAL". ALCANCE. A LOCUÇÃO "LEI FEDERAL", CONTIDA NO ARTIGO 105, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ABRANGE TÃO-SOMENTE AS LEIS COMPLEMENTARES, ORDINARIAS E DELEGADAS, AS MEDIDAS PROVISORIAS, OS DECRETOS LEGISLATIVOS, AS RESOLUÇÕES DO SENADO FEDERAL, OS DECRETOS, OS REGULAMENTOS E OS CONVENIOS ENTRE ESTADOS-MEMBROS PREVISTOS NA PROPRIA CONSTITUIÇÃO, EM MATERIA TRIBUTARIA, (...)</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 22.023/DF. Rel. Min. Demócrito Reinaldo, Primeira Turma, j. 9 set. 1992, p. DJ 13 out. 1992 p. 17662).</blockquote>
Todavia, com o passar do tempo, a jurisprudência do STJ consolidou o entendimento contrário<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A partir de uma interpretação dita restritiva do conceito de “lei federal” para fins de cabimento do recurso especial, a Corte da Cidadania passou entender que tal recurso não seria cabível para discutir a interpretação das resoluções do Senado. Essa interpretação acaba rebaixando equivocadamente as resoluções autônomas do Senado Federal ao mesmo nível hierárquico de atos regulamentares infralegais (como portarias e circulares administrativas) — o que não é o caso.
Com todo o devido respeito a esse posicionamento, constata-se que uma análise mais detida da natureza jurídica e das peculiaridades das Resoluções do Senado atrai conclusão distinta.
Desde já cabe salientar que a presente análise envolve as resoluções de natureza autônoma, geral e abstrata, para dispor sobre organização e funcionamento dessa Casa Parlamentar (como autoriza o citado art. 59, XIII, da Constituição). Não se trata de discussão sobre resolução de efeitos concretos, como é o caso, por exemplo, das resoluções editadas pelo Senado Federal para julgar processos de impeachment (<a href="https://legis.senado.leg.br/norma/562339/publicacao/15634840">Resolução 35/2016</a> e <a href="https://legis.senado.leg.br/norma/564156/publicacao/15648144">Resolução 101/1992</a>). As resoluções de efeito concreto, realmente, não são dotadas de suficiente normatividade para fundamentar a interposição recurso especial.
Não obstante, as resoluções autônomas detêm inequívoca normatividade e abstração, além possuir natureza jurídica de lei federal, nos exatos termos dos dispositivos constitucionais que permitem a interposição do recurso especial.
Como visto, essas resoluções são atos normativos primários, com a mesma hierarquia das leis ordinárias, complementares e delegadas federais. Assim como as leis federais disciplinam a organização e funcionamento dos órgãos de boa parte da Administração Pública (princípio da legalidade estrita administrativa — art. 37, caput, da Constituição), as resoluções autônomas servem para disciplinar a organização e funcionamento do Senado Federal e da Câmara dos Deputados (art. 51, IV e art. 53, XIII, da Constituição). O objetivo é permitir que essas Casas Parlamentares possam disciplinar sua organização interna sem a interferência indevida do presidente da República, uma vez que o processo legislativo das resoluções não possui fase de deliberação executiva (sanção e veto). Tudo em homenagem ao princípio da separação de poderes (art. 2º, da Constituição Federal).
Como resultado dessa peculiaridade das resoluções autônomas, por exemplo, tem-se que o Regimento Interno do Senado Federal (uma resolução autônoma — Resolução do Senado Federal 93/1970) disciplina a própria maneira pela qual as leis federais são votadas e aprovadas. Além disso, as Resoluções do Senado também disciplinam aspectos importantes dos impostos estaduais, como alíquotas máximas (art. 155, 1º, IV/CF) e mínimas (art. 155, § 2º, V, “a” e § 6º, II/CF). Daí a relevância e o inequívoco caráter abstrato dessas resoluções, que funcionam, na prática, como leis federais.
A ratio da jurisprudência do STJ que “tout court” exclui as resoluções do Senado Federal do escopo do direito federal impugnável na vida do recurso especial estaria correta se essas espécies normativas tivessem sem fundamento de validade direta ou indiretamente em lei em sentido estrito emanada do Poder Legislativo da União, em tratado ou em medida provisória.
Contudo, na estrutura piramidal do ordenamento jurídico brasileiro as resoluções da Câmara Alta do Parlamento nacional estão no mesmo nível das espécies normativas indicadas nas alíneas a, b e c do inc. III do art. 105<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>  da Constituição da República, por seu fundamento de validade é a Constituição da República.
Assim como é incontestável que a expressão “lei federal” para fins de cabimento de recurso especial inclui medidas provisórias, que são atos normativos do Poder Executivo com “força de lei”, a mesma lógica se aplica às resoluções, que embora não configurem lei federal “stricto sensu”, detêm a mesma força normativa.
Entender que a violação às resoluções autônomas do Senado não desafia a interposição de recurso especial tem como consequência inafastável a impossibilidade de uniformização nacional da interpretação judicial dessas resoluções.
É que caso o STJ entenda não ser possível o exame de resoluções autônomas do Senado em sede de recurso especial, essa Corte jamais poderá conhecer dessas controvérsias em ritos processuais que se iniciam em 1ª instância. Essa circunstância permitiria que, não sendo hipótese de foro por prerrogativa de função, a interpretação das resoluções autônomas do Senado ficaria ao completo alvedrio dos tribunais de 2ª instância — sem qualquer uniformização nacional.
É dizer, cada um dos de 32 tribunais de 2º grau da Justiça Comum poderia interpretar o sentido jurídico dessas resoluções como bem entendesse. Isso em flagrante violação ao princípio da segurança jurídica e em flagrante violação ao próprio pacto federativo, pois um tribunal de 2º grau poderia impor à Casa Parlamentar da Federação Nacional uma interpretação que negasse vigência a suas resoluções sem possibilidade de controle pelo STJ. Essa conclusão não merece prosperar.
Não é ocioso destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF), por evidente, entende que a controvérsia relacionada à interpretação de resolução do Senado é infraconstitucional (SUPREMO TRIBUNAL FEDRAL. Agravo em Recurso Extraordinário 671261. Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 27 set. 2019). É dizer: assim como ocorre com as controvérsias que dizem respeito a interpretação das leis federais em sentido estrito, a Suprema Corte se posiciona pelo caráter infraconstitucional das controvérsias que dizem respeito às resoluções do Senado.
Como as resoluções autônomas do Senado são atos normativos primários com a mesma hierarquia das leis federais, o fato de o STF entender que sua natureza é infraconstitucional reforça a conclusão de que cabe ao STJ uniformizar a interpretação judicial relativa a esses atos normativos.
Diante de tudo o que foi discutido, conclui-se que as resoluções editadas pelo Senado para dispor sobre sua organização e funcionamento (resoluções autônomas – art. 59, XIII, da Constituição Federal) se enquadram no conceito de lei federal para fins de cabimento de recurso especial. A superação da atual jurisprudência do STJ, com toda a vênia, se faz necessária para que a Corte da Cidadania possa bem desempenhar sua missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional pátria.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Vide SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.557.254/RJ. Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, 25 ma. 2020, DJe, 29 mai. 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(...)
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
<ol>
<li>
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
</li>
<li>
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
</li>
<li>
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. (...)
</li>
</ol>

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JOTA

Superação da atual jurisprudência do STJ se faz necessária

Resoluções do Senado e o conceito de lei federal para cabimento de recurso especial

STJ parece ter passado a desconsiderar a natureza jurídica das resoluções autônomas do Senado Federal em nome da jurisprudência defensiva