Mayara Gasparoto Tonin

O instituto da reabilitação permite a reintegração de agentes econômicos sancionados pela administração pública no mercado de licitações e contratações públicas, desde que tenham cumprido alguns requisitos.
Trata-se de uma forma alternativa de lidar com situações que conduziriam à impossibilidade de atuação no mercado de contratos administrativos: em vez de impedir o agente de exercer sua atividade, o que teria o potencial de prejudicar a concorrência (redução de competidores) e de causar problemas sociais (redução de emprego e de atividade econômica), os entes contratantes avaliam se os interessados adotaram determinadas medidas para restabelecer a sua confiabilidade perante o poder público.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A nova Lei de Licitações (PL 4.253/2020), que ainda aguarda sanção presidencial, prevê uma espécie de procedimento de reabilitação, em dispositivo legal autônomo, com mais requisitos do que aqueles previstos na Lei 8.666/1993 (decurso de um prazo mínimo e ressarcimento dos danos).
O art. 87, IV, da Lei 8.666/1993 prevê a possibilidade de reabilitação para o contratado que tenha sido declarado inidôneo pela inexecução total ou parcial do contrato.
A redação final do dispositivo, que trata da aplicação de sanções, estabelece que a inidoneidade pode perdurar “até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior” – que é de dois anos.
De todo modo, na sistemática da Lei 8.666/1993, não há propriamente a previsão de um procedimento de reabilitação, com o estabelecimento de um rito, de competências, de parâmetros.
A reabilitação, inclusive, é um instrumento pouco utilizado na prática do Direito Administrativo brasileiro. Tanto é que somente muito recentemente foi editada regulamentação a seu respeito: a Controladoria-Geral da União publicou a Portaria 1.214/2020-CGU, aplicável no seu âmbito de atuação, cujo art. 2º prevê exigências cumulativas para a concessão da reabilitação: “o transcurso do prazo de dois anos (...) a contar da data de publicação do ato que aplicou a sanção” (inc. I); “o ressarcimento integral dos prejuízos causados pela pessoa física ou jurídica, quando apontados pela administração pública (...)”; e a “adoção de medidas que demonstrem a superação dos motivos determinantes da punição, o que inclui a implementação e a aplicação de programa de integridade” (inc. III).
Nota-se que a norma repete as condições previstas na Lei 8.666/1993 e acrescenta a exigência de implementação de práticas que evidenciem alguma alteração no cenário que levou à punição do agente.
Já a nova Lei de Licitações prevê a possibilidade de concessão de reabilitação ao interessado que cumprir cinco requisitos cumulativos. Trata-se de previsão legal um pouco mais próxima do que se entende por um procedimento, organizado e objetivo, de reabilitação.
Segundo o art. 162 do PL 4.253/2020, a reabilitação depende da “reparação integral do dano” (inc. I); do “pagamento da multa” (inc. II); do “transcurso do prazo mínimo de 1 (um) ano da aplicação da penalidade, no caso de impedimento de licitar e contratar, ou de 3 (três) anos da aplicação da penalidade, no caso de declaração de inidoneidade” (inc. III); do “cumprimento das condições de reabilitação definidas no ato punitivo” (inc. IV); e da “análise jurídica prévia, com posicionamento conclusivo quanto ao cumprimento dos requisitos definidos neste artigo” (inc. V).
Para algumas espécies de infração (como a apresentação de declaração falsa ou a prática de ato típico da Lei Anticorrupção), há a exigência de cumprimento de mais um requisito: a implantação ou o aperfeiçoamento de um programa de integridade.
Na linha da regulamentação da CGU, esse requisito adicional deriva provavelmente do art. 7º da Lei 12.846/2013, que estabelece que serão considerados, na aplicação das sanções previstas naquela Lei, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
É essencial que esses mecanismos de integridade sejam efetivos. Não basta a adoção de medidas apenas formais: elas devem ser eficazes e gerar resultados práticos, pois são a forma pela qual os licitantes ou contratados declarados inidôneos podem demonstrar que voltaram a ser confiáveis para retornar ao mercado de contratações públicas.
Essa exigência adicional, que valoriza o autossaneamento do agente econômico infrator, poderia ter sido melhor explorada pela nova Lei de Licitações. A ideia da reabilitação deveria ser justamente permitir que um agente econômico readquirisse o direito de participar de licitações e de firmar contratos com a administração pública se demonstrar que adotou medidas efetivas para assegurar que os atos irregulares praticados no passado não mais ocorrerão no futuro – e não simplesmente estabelecer determinado prazo, exigir o pagamento de determinada quantia, aplicar uma penalidade pecuniária.
É muito positivo o estabelecimento de requisitos objetivos para a reabilitação de licitantes e contratados que tenham sido sancionados. Na verdade, é importante para a administração pública que esses agentes econômicos possam ser reintegrados ao mercado de contratos administrativos, que passará a contar com mais competidores, contribuindo para a existência de propostas mais vantajosas nas licitações.
<blockquote class="jota-article__eye">O problema, evidenciado pela nova Lei, é a imposição de requisitos demasiadamente subjetivos ou, por outro lado, excessivamente rigorosos, que dificultem essa reintegração.</blockquote>
O PL 4.253/2020 inova ao prever a possibilidade de reabilitação para a sanção de impedimento de licitar e contratar com a administração pública (na Lei 8.666/1993, o instituto era aplicado apenas no caso de declaração de inidoneidade).
Entretanto, a nova Lei mantém a mesma lógica sancionatória tradicional da Lei 8.666/1993, acrescentando mais instrumentos repressivos, tais como a aplicação de multa, o aumento do prazo mínimo de dois para três anos para a reabilitação da sanção de inidoneidade, a possibilidade de criação de (outros) requisitos no ato punitivo e a necessidade de análise jurídica acerca do cumprimento das exigências que seja prévia à concessão da reabilitação.
Esse novo cenário implica o inevitável questionamento (e preocupação) sobre quais serão os parâmetros para a aplicação da multa, que condições de reabilitação poderão ser definidas no ato punitivo, se poderão ser estabelecidos requisitos além daqueles já previstos na Lei e quais serão os limites aplicáveis, quem será o responsável pela análise jurídica prévia e em que momento ocorrerá o exame conclusivo.
A reprodução dos mecanismos sancionatórios tradicionais e a previsão de requisitos subjetivos e restritivos nos incisos do art. 162 podem prejudicar a eficácia e a aplicação prática do procedimento de reabilitação.
Por exemplo, a Lei 13.979/2020, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da pandemia, previa a possibilidade de contratação excepcional de agente econômico “independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público” (art. 4º, §3º).
O mesmo consta do art. 2o, §3º, da Medida Provisória 1.026/2021, que dispõe sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, bens e serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, comunicação social e publicitária e treinamentos destinados à vacinação contra a Covid-19 e sobre o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.
Ou seja, as consequências da imposição de uma sanção restritiva podem ultrapassar o âmbito individual do licitante e do contratante e acabar por atingir o mercado de contratação pública e a concorrência como um todo – em última análise, a própria administração.
Não se pretende afirmar que não há sentido na manutenção de sanções de afastamento de licitar e contratar, mas que, se elas não são reservadas apenas para as hipóteses mais graves (inaptidão do agente para executar o contrato, atos de corrupção), ao menos o processo de reabilitação dos licitantes ou contratados sancionados deve ser mais acessível.
O art. 162 do PL 4.253/2020 demonstra o potencial da nova Lei de implementar um procedimento geral de reabilitação de licitantes e contratados sancionados pela administração pública, que possa ser aplicável por todos os entes contratantes.
Mas as exigências devem servir para simplificar o processo de reintegração dos interessados ao mercado, não para causar ainda mais dúvidas àqueles que pretendem solicitar a sua reabilitação e àqueles que devem analisar o cumprimento dos requisitos.
O histórico de aplicação da Lei 8.666/1993 demonstra um insucesso dos seus mecanismos na prevenção futura de condutas ilícitas. Mesmo assim a nova Lei repete, de outro modo e com outros requisitos, as penalidades e a forma de reabilitação tradicionais.
Por exemplo, a possibilidade de revisão da penalidade “a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada”, prevista no art. 65 da Lei 8.784/1999, poderia ter sido incorporada ao regime de reabilitação da nova Lei, diante da sua maior compatibilidade com a realidade atual e com a lógica da Lei 13.655/2018, que acrescentou à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro disposições sobre a aplicação do Direito Público.
Afinal, considerar a ocorrência de fatos novos ou circunstâncias relevantes para revisar (e até cancelar) uma sanção mostra-se mais razoável e proporcional do que simplesmente aguardar o decurso de um prazo mínimo ou pagar uma multa pecuniária (sanções de caráter meramente punitivo).
Diante disso, resta a dúvida (e a expectativa) acerca da efetividade do procedimento de reabilitação estabelecido pela nova Lei de Licitações. A forma como a reabilitação foi (re)estruturada não traz muitas esperanças de uma maior utilização do instituto no âmbito da nova Lei – que não estabeleceu propriamente um rito procedimental, preferindo aumentar os requisitos em vez de considerar a alteração das circunstâncias.
Em outras palavras, melhor seria se a nova Lei tivesse disciplinado um roteiro para licitantes, contratados e administração pública, com o estabelecimento de competências, parâmetros objetivos para a concessão da reabilitação, consideração do autossaneamento dos agentes econômicos sancionados e prazos para a tomada de decisões internas.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

PEC dos Precatórios

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JOTA

Resta a dúvida acerca da efetividade do procedimento de reabilitação estabelecido pela nova lei de Licitações

Procedimento de reabilitação de licitantes e contratados na nova Lei de Licitações

Resta a dúvida acerca da efetividade do procedimento de reabilitação estabelecido pela nova lei de Licitações