Alexandre Schiller

Existe um conceito jurídico ao qual o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> já por diversas vezes recorreu para proferir relevantes comandos contra entes governamentais, a exemplo de agências reguladoras, do INPI, da União e mesmo do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/congresso-nacional">Congresso Nacional</a>, chamado de estado de coisas inconstitucional.
Trata-se de um conceito adotado pela primeira vez, em 2004, pela Suprema Corte colombiana, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional na situação de mais de 3 milhões de pessoas deslocadas pela violência interna no país e determinou que as autoridades nacionais fizessem as correções necessárias.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>
<h3><a href="https://www.jota.info/produtos/poder%20?utm_source=cta-site&amp;utm_medium=site&amp;utm_campaign=campanha_poder_q2&amp;utm_id=cta_texto_poder_q2_2023&amp;utm_term=cta_texto_poder&amp;utm_term=cta_texto_poder_meio_materias">Tenha acesso ao JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político com informações de bastidores que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas. Conheça!</a></h3>
Esse conceito foi <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/em-decisao-unanime-stf-reconhece-estado-de-coisas-inconstitucional-nos-presidios">recentemente adotado pelo STF para decidir a ADPF 347</a>, quando a corte, em 2023, reconheceu a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro e deu prazo para que o governo federal elaborasse um plano de intervenção para reduzir a superlotação dos presídios. Também ao julgar a ADI 5529/DF, o STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional em relação à mora excessiva do INPI em decidir processos administrativos, ordenando que sua estrutura fosse revista.
Estabeleceu-se, na Colômbia e no Brasil, que são elementos para a decretação do estado de coisas inconstitucional: (i) a violação massiva a direitos fundamentais; (ii) a omissão persistente das autoridades no enfrentamento da violação; (iii) a necessidade de intervenção de diversas entidades e autoridades para solucionar o problema; e (iv) o risco de sobrecarga jurisdicional caso as mesmas questões sejam levadas ao Judiciário por meio de litígios individuais.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>
Todos esses elementos estão hoje presentes em um setor regulado e que é fiscalizado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>): o setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros (TRIP), cuja gestão pelo Poder Público afeta os direitos mais básicos de locomoção de milhões de cidadãos de todo o país, mas que tem sofrido com a omissão persistente do Poder Público, dependem hoje da intervenção de outras entidades para resolver o problema e ainda está na iminência de uma forte onda de judicialização, tudo em razão da forte captura da agência reguladora por forças econômicas e políticas.
Os serviços de TRIP movimentam mensalmente milhões de passageiros e envolvem cifras bilionárias, mas a prestação do serviço está concentrada em poucas empresas, por falhas atribuíveis à agência reguladora — que embora tenha reconhecido as falhas menos de cinco anos atrás, é incapaz de corrigi-las.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>
O cenário hoje é muito parecido com aquele que existia em 2008, quando o STF, em julgamento relatado pela ministra Ellen Gracie, concluiu que o poder de barganha e a força política do setor fez malograr todas as tentativas de adequação dos serviços de TRIP ao modelo constitucional.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a> Dezesseis anos depois, a agência aprovou um “Novo Marco Regulatório” que, confirmando aquele prognóstico, veio para manter a exclusividade de algumas empresas na prestação dos serviços e colocar em xeque a expansão da oferta dos serviços.
<h3>A anomalia histórica das regras que disciplinam o setor</h3>
De acordo com a disciplina que perdurou por décadas, os serviços de TRIP sempre foram delegados à iniciativa privada. A regra, muito antes da Constituição de 1988, era que a delegação se daria via permissão dos serviços, mediante licitação, com outorga em caráter precário e por prazo determinado. Apesar disso, os serviços sempre foram delegados através de autorizações especiais, sem maiores rigores formais, sem licitação e sem seleção por critérios isonômicos.
Com a criação da ANTT pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm">Lei 10.233/2001</a>, passou a ser dela a atribuição de editar a regulamentação. Uma das suas primeiras incumbências era de fazer cumprir o Decreto 2.521/1998, que exigiu que houvesse a licitação dos serviços até o ano de 2008. O prazo, porém, nunca foi cumprido. Nunca houve uma licitação sequer e o regulador não apenas foi conivente, como foi responsável pelo descumprimento dos mandamentos legais e constitucionais.
A omissão da ANTT deflagrou uma ampla judicialização, com sucessivos questionamentos da inércia da agência. Tamanha foi a discussão que o tema alcançou o STF, que por várias vezes reconheceu a responsabilidade do Poder Público e da ANTT pelo caos instaurado no setor. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, o quadro era de “flagrante omissão administrativa”<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>.
<h3>A reação do Congresso ao quadro de omissão a partir de 2014</h3>
O cenário caótico culminou, em 2014, na alteração do regime de outorga, da “permissão” para a “autorização”, por meio da Lei 12.996/2014. A lei encerrou a necessidade de realização de licitação e impôs o dever da ANTT de assegurar isonomia de tratamento e a possibilidade de ingresso de todos os prestadores de serviço que preenchessem requisitos isonômicos para prestar os serviços.
A ANTT editou, então, a Resolução 4.770/2015 para disciplinar a delegação dos serviços e prever um prazo de transição, que terminaria em agosto de 2019, quando deveria haver a abertura do setor à concorrência e ser assegurada liberdade de preços e a livre entrada de concorrentes.
A ANTT, porém, não realizou maiores estudos ao longo dos quatro anos seguintes e simplesmente converteu as “autorizações especiais” deferidas ao longo dos anos em “autorizações regulares”. Do dia para a noite dezenas de empresas se tornaram oficialmente autorizadas a prestar os serviços e foram privilegiadas, em seguida, pela omissão da ANTT em deferir outorgas a novos concorrentes, o que acabou assegurando exclusividade sem licitação.
Buscando sanar a omissão da ANTT, o Poder Executivo editou o Decreto 10.157/2019, que instituiu a Política Federal de Estímulo ao Transporte e reforçou a premissa de que deveria haver livre concorrência. Era de se esperar que a ANTT passasse a dar cumprimento à disciplina legal e normativa. Não foi o que ocorreu.
<h3>Ação e reação das incumbentes e sua influência no processo normativo da ANTT</h3>
No mesmo ano em que foi editado o Decreto 10.157/2019, a Diretoria da ANTT proferiu a Deliberação 955/2019, que reconheceu o quadro de anomalia regulatória e concluiu que diversas regras da agência que limitavam a concorrência passaram a ser incompatíveis com o sistema legal vigente.
A Diretoria determinou, assim, que fossem analisadas centenas de pedidos de mercado acumulados nas prateleiras da ANTT. O impacto foi extremamente positivo: os mercados em que houve o ingresso de novos concorrentes viram redução de preço e ampliação da oferta de serviços adicionais. Mas o progresso durou pouco.
Em março de 2021, o TCU, acatando uma medida cautelar de um player do setor, proibiu a ANTT de deferir mercados a novas transportadoras.
Mas não foi só isso. Logo em seguida a Diretoria da ANTT reprovou a proposta de normativo que havia sido desenhada pela área técnica da agência seguindo as premissas fixadas na Deliberação 955/2019 e que buscava assegurar a concorrência. A justificativa adotada é que teria havido um vício no procedimento, porque a audiência contou com a participação de servidores da ANTT e isso tiraria a imparcialidade da proposta apresentada. Um novo estudo deveria ser preparado.
Uma segunda proposta da área técnica da ANTT foi levada a discussão na Audiência Pública 006/2022, mas ela não agradou à Diretoria. Mais uma vez os Diretores da ANTT concluíram que seria necessário realizar ajustes na proposta e ordenaram que fosse reaberta a audiência para alterar novamente a minuta. O objetivo agora seria de rever o capítulo que tratava das “inviabilidades técnica, operacional e econômica” objeto do artigo 47-B da Lei 10.233/2001.
Assim, pela terceira vez a ANTT reiniciaria as discussões sobre a minuta de “marco regulatório”, agora para introduzir uma série de modificações à versão inicial, e que culminaria na inclusão de proteções regulatórias explícitas em benefício de algumas empresas e em detrimento da maioria dos concorrentes e, pior, em prejuízo dos passageiros.
<h3>A Resolução 6.013/2023: o regime de transição para inglês ver</h3>
Diante do cenário grave de contínua postergação da aprovação de regras compatíveis com a Lei 10.233/2001, a ANTT editou uma regra de transição, a Resolução 6.013/2023, que previu que seria autorizada a imediata outorga de mercados desatendidos, ou seja, de pares de cidades sem qualquer oferta de serviços de TRIP. Segundo a norma, tais pedidos seriam deferidos a todas as empresas que preenchessem os requisitos para prestar os serviços.
Ocorre que a ANTT não cumpriu a regra, que claramente foi editada para inglês ver, com o objetivo de criar a ilusão de que a agência estaria avançando no cumprimento das bases estabelecidas na Lei 10.233/2001.
O que houve, na verdade, é que a ANTT simplesmente se recusou a apreciar os requerimentos que estavam paralisados nas suas prateleiras. A agência simplesmente não apreciou nenhum dos requerimentos, o que mais uma vez deu causa à judicialização. Houve o ajuizamento de mais de três centenas de ações judiciais junto às varas federais de todo o país, especialmente do Distrito Federal, que sofreu e continua a sofrer o abarrotamento de ações que questionam a omissão deliberada da ANTT. Enquanto isso, a agência passou a rever as normas até então editadas com a finalidade de cumprir a Lei 10.233/2001.
<h3>A reedição das normas para reverter o quadro de abertura e o cumprimento da lei 10.233/2001</h3>
Em meados de 2023, a agência apresentou a terceira versão do “Marco Regulatório”, em substituição às normas e às propostas discutidas pelos vários anos anteriores. A nova proposta estaria, supostamente, embasada em Nota Técnica<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a> que apontava para uma série de premissas alinhadas à Constituição, ao cumprimento da Lei 10.233/2001 e à ampliação da concorrência no setor.
Contudo, as regras editadas previram o oposto do que constava das premissas. A regra propunha a criação de “janelas de abertura”, a limitação do número de prestadoras de serviço em todos os mercados e a inclusão de restrições para o ingresso de novas transportadoras, com explícita proteção dos antigos incumbentes.
A terceira proposta foi extremamente criticada pela sociedade e por diferentes entes governamentais.
Dezenas de transportadoras se manifestaram contra a proposta na audiência. O Ministério da Fazenda concluiu que a proposta era inadequada por proteger explicitamente antigos incumbentes. O Ministério do Desenvolvimento concluiu serem descabidas as limitações à própria outorga de mercados. Servidores da própria agência se manifestaram contra a minuta, inclusive apresentando uma proposta retificada de norma técnica nos autos do processo 50500.291815/2023-20, que, nada obstante, sequer foi levado ao conhecimento da sociedade.
O Cade também teve oportunidade de tecer considerações, conforme consta dos autos do Ato de Concentração 08700.002488/2022-48, concluindo que as barreiras regulatórias precisavam ser revistas para impedir situações de elevada concentração de mercado.
Por fim, o MPF também se manifestou contrariamente à proposta, indicando que o novo marco "criou barreiras à entrada para as empresas transportadoras no mercado ao estabelecer premissas incompatíveis com o princípio legal de ambiente de livre e aberta competição ao definir inviabilidade econômica”.<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>
Apesar das diversas vozes contrárias, nenhuma das opiniões foi considerada pela Diretoria da ANTT, que levou a norma à votação.
<h3>A aprovação da Resolução 6.033/2023 pela ANTT e a normatização do ilícito</h3>
A despeito das inúmeras críticas, a Diretoria da ANTT levou a proposta a julgamento na última reunião de diretoria do ano, em 21.12.2023, e aprovou sumariamente a norma, inclusive com modificações propostas de supetão no julgamento.
Não apenas o voto do relator não apresentou uma única consideração sobre as opiniões técnicas contrárias, como a proposta ainda foi modificada pelo voto do diretor-geral no próprio julgamento, sem prévio debate, sem ouvir a opinião dos órgãos técnicos, com isso contrariando frontalmente a premissa que havia sido adotada pelo mesmo diretor-geral, em 2022, para indeferir e adiar, por três anos, a aprovação do marco regulatório inicialmente proposto.
Resultou daí a aprovação da Resolução 6.033/2023, que estabeleceu as limitações claras à entrada de novas autorizatárias no setor de transporte rodoviário. Em termos objetivos, a resolução criou quatro condições centrais: (i) número máximo de outorgas, apenas aplicáveis a novas transportadoras, (ii) janelas de entrada, apenas aplicáveis a novas transportadoras, (iii) processo seletivo público, apenas aplicável para novas transportadoras, e (iv) sorteio de mercados apenas aplicável a novas transportadoras.
Para as antigas prestadoras de serviço — que receberam autorizações especiais no passado, sem nunca ganhar uma única licitação — a nova resolução assegurou exclusividade dos mercados já estabelecidos, prevendo pílulas de concorrência, com vagas para o ingresso de concorrentes nos mercados apenas preenchidas uma vez ao ano. Os principais mercados do país sequer admitem o ingresso de concorrentes, porque os parâmetros previstos pela agência partem da suposição que esses mercados todos seriam economicamente inviáveis pelo simples fato de que as empresas já teriam margens de lucro apertadas.
<h3>O estado de coisas inconstitucional e a necessidade de correção dos rumos</h3>
Ao editar a Resolução 6.033/2023 e revogar a Deliberação 955/2019, a ANTT claramente buscou reverter o quadro de abertura que havia sido inaugurado em 2019. A agência instituiu barreiras explícitas para proteger prestadores de serviço, em desfavor da concorrência e dos milhões de usuários do sistema de transporte, reduzindo drasticamente a eficiência e contrariando não apenas o que a própria ANTT havia decidido em 2019, como o que o STF determinou no ano passado.
Isso porque o STF decidiu, em 2023, nas ADIs 5549 e 6270, que a ANTT apenas pode restringir a outorga de autorizações em casos de excludência de interessados, isso é, quando, em determinados mercados, não houver empresas interessadas em prestar serviços de transporte. Trata-se da única hipótese em que a ANTT pode criar restrições à outorga, para viabilizar a realização de processo seletivo público, sob determinadas condições específicas capazes de atrair interessados.
A disciplina estabelecida no “Novo Marco Regulatório” da ANTT, contudo, fez o inverso: ela tratou de normatizar as restrições e passou a assegurar, explicitamente, exclusividade sem licitação. A norma positiva a violação a direitos fundamentais. Ela afronta o direito ao transporte, estabelecido no artigo 6º da Constituição, com reflexos sobre outros direitos assegurados à população, como o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, todos afetados pelas graves restrições impostas por atos de Estado.
Em conclusão, a atuação da ANTT no setor de transporte rodoviário interestadual de passageiros exemplifica um claro estado de coisas inconstitucional, caracterizado pela omissão persistente da ANTT em cumprir normas legais, pela captura regulatória e pela implementação de um marco normativo que viola direitos fundamentais ao transporte, à livre concorrência, à eficiência, dentre outros.
Ao ignorar pareceres técnicos, recomendações de outros entes e promover um regime que favorece incumbentes em detrimento de novos operadores, a ANTT agrava a violação de direitos fundamentais dos cidadãos e perpetua um sistema regulatório disfuncional que necessita de urgente correção.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> SCHINERMANN, Caio César Bueno, Estado de Coisas Inconstitucional e Diálogo no Supremo Tribunal Federal, in Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 7, p. 117-141, 2016.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> ADPF 347, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 04-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 18-12-2023  PUBLIC 19-12-2023, p. 121.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Voto à Diretoria Colegiada nº 5/2019, Processo nº 50501.346390/2018-26, Relator Diretor Davi Barreto, 23.10.2019.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> MS 27516, Relatora: Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 22.10.2008, DJe-232, Divulg 04.12.2008, Public 05-12-2008, Ement VOL-02344-01, PP-00104.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> STF, STA 357, Presidente Min. Gilmar Mendes, DJe de 3 fev. 2010.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Nota Técnica SEI nº 3990/2023/COARP/GEEST/SUPAS/DIR/ANTT.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> Informação nº 3/2024/AC/3CCR.

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JOTA

ANTT perpetua um sistema regulatório disfuncional que necessita de urgente correção

O estado de coisas inconstitucional no transporte rodoviário de passageiros

ANTT perpetua um sistema regulatório disfuncional do transporte rodoviário de passageiros que necessita de urgente correção