Otavio Yazbek

Há algumas semanas quem acompanha temas de mercado de capitais foi surpreendido por algo inusitado. Instigados por publicações em uma rede, a Reddit, milhares de pequenos investidores começaram a comprar ações de uma empresa cujo modelo de negócio já há muito se mostrava inadequado e que vinha tendo os títulos de sua emissão cada vez mais desvalorizados, a GameStop. Esse movimento foi apresentado como uma espécie de ativismo, uma revolta das “sardinhas” contra os “tubarões do mercado”, grandes investidores que insistiam em realizar vendas a descoberto daquelas ações. Esse artigo pretende discutir alguns aspectos do ocorrido, tendo em vista a regulamentação brasileira.
O que são vendas a descoberto
Antes de prosseguir, é importante falar de um tema incidental, mas não menos relevante para a discussão: as vendas a descoberto (short sales) e seus efeitos para o mercado.
Para se compreender a dinâmica dessas operações, é importante entender que elas se apoiam em uma peculiaridade operacional – as operações com ações no mercado à vista não são liquidadas de imediato, após a sua realização – sua liquidação é diferida. Hoje, nos Estados Unidos, como aqui, o prazo para a entrega das ações e o pagamento do preço é de 2 dias (D+2). 
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Os investidores que assumem, por qualquer razão, que o preço de um ativo deve cair podem, então, vender aquele ativo e, como não será necessário entregá-lo de imediato, não é nem mesmo necessário que dele se disponha quando da realização da operação. Quando da data da liquidação, esses investidores podem tomar o papel emprestado (por meio de uma operação própria, também bastante comum) e cumprir as suas obrigações.
Quando do vencimento do contrato de empréstimo, o short seller adquire, em mercado, novas ações para devolver ao emprestador. Se, de fato, as suas expectativas se confirmam, as ações serão adquiridas por um preço mais baixo. A diferença entre o preço pelo qual se vendeu e o preço de aquisição (mais o custo do empréstimo) será o resultado do vendedor.
Mesmo a venda a descoberto é uma operação de risco. Se, ao invés de cair, o preço da ação subir, o vendedor amargará as perdas decorrentes de ter vendido mais barato algo que, posteriormente, deverá comprar mais caro. Aliás, o risco de perda é ilimitado nessas operações – quanto maior o aumento do preço, maior a perda suportada.
As vendas a descoberto podem, também, afetar o comportamento do mercado. Realizadas em condições normais, elas são operações legítimas como qualquer outra e ajudam no regular processo de formação de preços (afinal, elas são liquidez decorrente das expectativas dos agentes econômicos). Claro, como qualquer outra operação, elas podem ser usadas para manipular preços – mas não há nada nelas de eminentemente manipulativo.
Da mesma maneira, em situações de grave crise de liquidez (como após a crise de 2008), alguns governos precisaram restringir a realização de vendas a descoberto. Com a crise, tais operações podiam gerar um efeito de desvalorização ainda maior de alguns papéis. Sua restrição atendia, naqueles casos excepcionais, a uma demanda por estabilidade.
No Brasil não temos um histórico de problemas com operações de venda a descoberto, nem mesmo em momentos de crise. Isso até por conta de algumas características da nossa regulamentação. No mercado brasileiro, os empréstimos são feitos de forma centralizada, pela mesma entidade que administra o sistema de liquidação de operações e o vendedor precisa necessariamente “cobrir” suas vendas antes da liquidação, estando sujeito a mecanismos compulsórios ou a penalidades. Da mesma maneira, existe aqui uma limitação, de 20% do float, para o número de ações de uma companhia que se pode ofertar em empréstimo (o que limita o volume de vendas a descoberto).
O que aconteceu no fim de janeiro de 2021
Feitos esses esclarecimentos, podemos voltar ao que aconteceu recentemente, primeiro no mercado americano e depois, em menor escala, aqui. Nos Estados Unidos, onde o movimento de pequenos investidores foi, de fato, bastante significativo, as ações da GameStop se valorizaram artificialmente, gerando perdas, como seria de se esperar, para os short sellers (o chamado short squeeze, situação em que quem está vendido fica em corner). Isso foi visto como uma vitória pelos idealizadores do movimento. São evidentes, no entanto, os equívocos em que se apoia tal interpretação.
No caso da GameStop, as vendas a descoberto eram uma decorrência natural das perspectivas existentes para a empresa, era assim que o mercado a via. As compras maciças, por outro lado, eram flagrantemente artificiais e, se o preço subiu, cedo ou tarde ele deveria começar a cair novamente, porque o mercado se ajusta novamente. E essa queda não tardou a ocorrer. Em outras palavras, promoveu-se um determinado efeito, com ganhos e perdas para participantes do mercado, e criou-se uma bolha. Quem perde, quando essa bolha se desfaz, são justamente os que permanecem comprados!
Poucos dias depois, ocorreu um movimento parecido no Brasil. A partir de um grupo de investidores no Telegram (o “Short Squeeze IRB”), orquestrou-se a compra de ações de emissão do IRB. Em razão de algumas questões, tais títulos passaram por uma relevante desvalorização desde o ano passado. Com isso, naturalmente, aumentou o volume das vendas a descoberto. No fim de janeiro, artificialmente infladas pelas compras de pequenos investidores, as ações sofreram uma significativa valorização. E, desde então, como seria de se esperar, os preços voltaram a cair.
O movimento ocorrido no Brasil é ainda mais esdrúxulo do que aquele ocorrido nos Estados Unidos. Regras como as acima referidas, de limitação do volume de empréstimo, fazem com que também haja muito menos vendas a descoberto. Com isso, a pressão compradora esperada, quando os vendedores tiverem que adquirir as ações para as devolver aos emprestadores, é muito menor – não há propriamente squeeze. A cópia, como de hábito, seja por inocência, seja por má fé, é simplória. Mas resta o efeito de bolha e, em consequência, a vulnerabilidade para as “sardinhas” que adquiriram as ações e podem não as conseguir vender tão bem quanto imaginavam.
De qualquer maneira, tais movimentos não passaram despercebidos dos reguladores. Vale explorar algumas das principais questões regulatórias.
A atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e seus limites
Do ponto de vista do arcabouço regulatório brasileiro, o regulador tem instrumentos para lidar com essas situações. A primeira questão que se impõe diz respeito à Instrução CVM nº 08/79, que trata de ilícitos relacionados à integridade do processo de formação de preços.
<blockquote class="jota-article__eye">Quando um grupo de investidores combina entre si certos movimentos de mercado, com o intuito de gerar efeitos sobre os preços, se está, evidentemente, no campo das práticas cobertas por aquela Instrução.</blockquote>
Nela se caracteriza manipulação de mercado “a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda”. Manipulação, aliás, não é apenas ilícito administrativo, mas também crime, nos termos do art. 27-C da Lei nº 6.385/76.
A mesma norma define outro ilícito, o de criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço (“aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocarem, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários”). Recentemente, diretores da CVM já declararam que a acusação pelos dois tipos ao mesmo tempo, apesar de atípica, não seria impossível.
A aplicação da Instrução CVM nº 08/79 sempre foi polêmica, em especial porque as definições nela trazidas são muito abertas. Nem sempre é fácil enquadrar com segurança determinadas condutas sob aqueles tipos. Por outro lado, essa é também a sua força: à medida em que surgem novas práticas de mercado, as categorias ali previstas continuam aplicáveis. Foi assim que se lidou, por exemplo, com práticas como spoofing e layering nos últimos anos. O esforço no presente caso – como sinalizado pela CVM em nota publicada em 29/01 – nem seria tão grande.
A rigor, quando na apresentação de um grupo de Telegram se declara a intenção de provocar um efeito artificial sobre o funcionamento do mercado (ainda que, também ali, se declare que não se trata de manipulação) e quando, com isso, investidores operam em conjunto, não parece difícil caracterizar a conduta sob a Instrução CVM nº 08/79. As dificuldades podem surgir na construção dos casos, uma vez que a situação em si é inédita: a quem se deve acusar? Qual a viabilidade de uma acusação em massa?
Mas há outros possíveis ilícitos a considerar. Já há algum tempo a CVM se mostra preocupada com a atuação de influencers, que muitas vezes atuam como se fossem agentes regulados, como analistas ou consultores (o tema foi objeto do Ofício Circular CVM/SIN 13/2020). Os líderes daqueles movimentos podem, dependendo da sua atuação, ser acusados de exercício irregular de atividade regulada (que também é crime, nos termos do art. 27-D da Lei nº 6.385/76). Tudo pode piorar se quem instigou as práticas for ligado à empresa que teve as ações negociadas, como aventado por alguns participantes do mercado – aí não apenas aumenta a repreensibilidade, como também se pode estar diante de casos de insider trading.
Até aqui, porém, falamos especialmente das condutas sancionadoras da CVM. Será que ela não poderia atuar de outra maneira? Quando aparecerem investidores de varejo reclamando que foram induzidos a entrar naquela bolha e sofreram perdas, o regulador será questionado por não ter ido além daquele aviso ao mercado, promulgado após os fatos.
A acusação será injusta. Cabe ao regulador estabelecer o arcabouço dentro do qual se atua e fiscalizar o cumprimento das normas, adotando as medidas sancionadoras em caso de descumprimento. Como já se descreveu, as regras brasileiras vão além do que é mais tradicional em matéria de regulação de mercado e dispõem também de um componente prudencial, destinado a impedir certas distorções.
Além disso, a B3, por administrar os sistemas de negociação, dispõe de outros instrumentos, aprovados pela CVM, como a interrupção de negociações e a realização de leilões, para enfrentar problemas de formação de preços. No dia 29/01 adotou-se um procedimento de leilão contínuo para as ações do IRB.
Essa combinação de mecanismos prudenciais e de instrumentos repressivos é mais do que adequada para lidar com esses novos problemas, ainda que possa haver alguns desafios conceituais. Ir além disso é querer – como é tão comum – que o regulador proteja o investidor contra si mesmo.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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JOTA

Combinação de mecanismos prudenciais e de instrumentos repressivos é adequada para lidar com manipulação

O caso GameStop, sua versão local e o mercado de capitais

Mercado de Capitais: a venda a descoberto é uma operação de risco e pode, também, afetar o comportamento do mercado