Anderson Santos da Silva

Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) o <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5109720">RE 1.017.365/SC</a>, em que foi reconhecida a repercussão geral do tema do <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-ao-vivo-marco-temporal-das-terras-indigenas-sessao-do-dia-31-8-2023-31082023">marco temporal de ocupação das terras indígenas</a>. A questão espera uma definição do STF desde o julgamento do caso Raposa Serra do Sol (<a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2288693">Pet 3.388</a>), no qual o tribunal adotou a “teoria do fato indígena”, concluindo, assim, que a presença do povo indígena na data da promulgação da Constituição Federal é uma condição para o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação.
Na ocasião, porém, o STF ressalvou que o marco temporal poderia ser relativizado em caso de “renitente esbulho”. No julgamento do <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4548671">ARE 803.462-AgR-MS</a>, a 2ª Turma afirmou que o renitente esbulho poderia se revelar por “efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual, conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”.
A solução do marco temporal, contudo, ainda não foi suficiente para criar um ambiente de segurança jurídica, principalmente porque a decisão proferida no caso Raposa Serra do Sol não produziu efeitos vinculantes. Agora, com o reconhecimento da repercussão geral da questão no RE 1.017.365/SC, o STF está diante da oportunidade de resolver satisfatoriamente o problema.
Para tanto, o STF não pode ignorar o que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte IDH</a>) tem a dizer sobre o tema. Esta corte já conta com uma rica jurisprudência sobre o direito à propriedade coletiva da terra pelos povos indígenas e tribais e teve a chance de desenvolver vários parâmetros interpretativos dos instrumentos internacionais de direitos humanos. Esses standards foram assim resumidos no caso do <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf">Povo Indígena Xucuru e seus Membros v. Brasil</a>: 
<ul>
<li class="jota-article__citation">1) a posse tradicional dos indígenas sobre suas terras tem efeitos equivalentes aos do título de pleno domínio concedido pelo Estado;</li>
<li class="jota-article__citation">2) a posse tradicional confere aos indígenas o direito de exigir o reconhecimento oficial de propriedade e seu registro;</li>
<li class="jota-article__citation">3) os membros dos povos indígenas que, por causas alheias a sua vontade, tenham saído ou perdido a posse de suas terras tradicionais mantêm o direito de propriedade sobre elas, apesar da falta de título legal, salvo quando as terras tenham sido legitimamente transferidas a terceiros de boa-fé;</li>
<li class="jota-article__citation">4) o Estado deve delimitar, demarcar e conceder título coletivo das terras aos membros das comunidades indígenas;</li>
<li class="jota-article__citation">5) os membros dos povos indígenas que involuntariamente tenham perdido a posse de suas terras, e estas tenham sido trasladadas legitimamente a terceiros de boa-fé, têm o direito de recuperá-las ou a obter outras terras de igual extensão e qualidade;</li>
<li class="jota-article__citation">6) o Estado deve garantir a propriedade efetiva dos povos indígenas e abster-se de realizar atos que possam levar a que os agentes do próprio Estado, ou terceiros que ajam com sua aquiescência ou sua tolerância, afetem a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território;</li>
<li class="jota-article__citation">7) o Estado deve garantir o direito dos povos indígenas de controlar efetivamente seu território, e dele ser proprietários, sem nenhum tipo de interferência externa de terceiros; e</li>
<li class="jota-article__citation">8) o Estado deve garantir o direito dos povos indígenas ao controle e uso de seu território e recursos naturais.</li>
</ul>
Logo se vê que os standards 3 e 5 assumem especial relevo para o RE 1.017.365/SC. Especificamente sobre o limite temporal do direito à reivindicação das suas terras, a Corte IDH tem afirmado, desde o primeiro caso a respeito da proteção das terras indígenas (<a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_79_por.pdf">Comunidade Indígena Mayagna (Sumo) Awas Tigni v. Nicarágua</a>), que “a estreita relação que os indígenas mantêm com a terra deve ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica” e que essa relação “não é meramente uma questão de posse e produção e sim um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-los às gerações futuras”.
Desse modo, “enquanto essa relação exista, o direito à reivindicação destas terras permanecerá vigente” (caso <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_146_esp2.pdf">Comunidade Indígena Sawhoyamaxa v. Paraguai</a>). E essa relação dos povos originários com suas terras, segundo a corte, pode se expressar de variadas maneiras, a depender da etnia e das circunstâncias concretas, o que pode incluir (caso <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_146_esp2.pdf">Comunidade Indígena Sawhoyamaxa v. Paraguai</a>):
<blockquote class="jota-article__citation">''O uso ou presença tradicional, através de laços espirituais ou cerimoniais; assentamentos ou cultivos esporádicos; caça, pesca ou coleta estacional ou nômade; uso de recursos naturais ligados a seus costumes, e qualquer outro elemento característico de sua cultura".</blockquote>
Levar em conta a jurisprudência da Corte IDH certamente é um dever do STF, já que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e se sujeita à jurisdição contenciosa daquela corte, além de ser signatário da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, diretriz interpretativa também utilizada pela Corte Interamericana. 
O respeito à jurisprudência da Corte Interamericana é, portanto, antes de qualquer coisa, uma forma de prevenção da responsabilidade internacional do Estado brasileiro. Contudo, mais do que uma dimensão preventiva, a abertura para um diálogo transjudicial com a Corte IDH pode contribuir decisivamente para o aprimoramento da deliberação do STF. Afinal de contas, não existe um órgão capaz de capturar todas as nuances de questões tão complexas e de possuir com exclusividade a melhor resposta para esses problemas.

indigenas protestam contra marco temporal

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JOTA

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