Jimir Doniak Jr.

Tão logo finalizadas as eleições e premido pela redução de arrecadação decorrente das mudanças nacionais nas regras do ICMS, o governador de Goiás propôs e a Assembleia Legislativa desse estado aprovou (Lei 21.670/2022) a criação de mais um dos exóticos fundos estaduais alegadamente destinados a obter recursos para investimentos e infraestrutura.
O Fundeinfra goiano segue a linha do Fundersul, de Mato Grosso do Sul, e do Fethab, de Mato Grosso. Ele estabelece como sua principal fonte de recursos uma contribuição exigida no âmbito do ICMS como condição para a fruição de benefício ou incentivo fiscal e para regime especial de controle das exportações. Em outras e mais diretas palavras, o Governo de Goiás pretende instituir uma pretensa e esdrúxula contribuição de caráter não tributário, que seria facultativa, mas que será condição para benefícios ou regimes favoráveis ao contribuinte. Com isso, a contribuição ao Fundeinfra é medida substitutiva do ICMS, de modo que ou se recolhe a contribuição, ou se se submete ao ICMS e a pesados deveres instrumentais/acessórios.
Essa proposta não é juridicamente admissível. Vejamos.
Como se sabe, o estado é obrigado a seguir todo o regime tributário e fiscal estabelecido na Constituição. Entre esses limites estão: (1) a submissão à legalidade, de modo que o valor do tributo deve decorrer do que consta em lei; (2) as exportações não podem ser oneradas; (3) o tributo estadual sobre operações de circulação deve se submeter à não cumulatividade, com compensação do imposto devido em uma operação com o cobrado nas operações anteriores; (4) os municípios têm direito a receber parte da arrecadação derivada do ICMS; (5) o destino a ser dado aos recursos arrecadados deve ser objeto de orçamento aprovado pela Assembleia Legislativa.
Com o Fundeinfra, inversamente, (1) a legalidade é desacatada, pois o valor a ser recolhido não é aferido apenas pelo que consta na lei; (2) as exportações passam a ser oneradas pela contribuição a esse fundo; (3) não há direito à não cumulatividade; (4) em lugar de a arrecadação com o ICMS ser repartida com os municípios ter-se-á uma contribuição destinada exclusivamente a um fundo; (5) a decisão quanto ao destino dos recurso ficará a cargo de um conselho gestor nomeado pelo governador de Goiás.
Perceptível que a contribuição ao Fundeinfra não passa de um mecanismo para contornar o regime jurídico tributário e fiscal: para ter o benefício do ICMS, há a condição de recolher a contribuição ao fundo, de modo que esta substitui o ICMS. Em lugar dos limites do regime jurídico e fiscal do imposto, tem-se uma contribuição maleável, sem essas amarras.
A conclusão é que a contribuição que levará recursos ao Fundeinfra é verdadeira fraude à Constituição. Como se sabe, a fraude à lei consiste em uma violação indireta ao ordenamento jurídico: ato aparentemente lícito, com suposto amparo no que é chamado de norma de cobertura, mas que leva a resultado proibido por outra norma. Como reconhecido em precedentes do STF (MC-ADI 2.984, Recl 8.025, MS 28.447, ADPF 523), também existe a fraude à Constituição, ou seja, o uso de instrumentos inicialmente legítimos, mas que representam um contorno a outras normas constitucionais, que são, assim, fraudadas.
Lembremos a forte imagem divulgada por Geraldo Ataliba: não se constrói uma fortaleza de pedra, para colocar portas de papelão. Realmente, as limitações constitucionais ao poder de tributar seriam muito frágeis e dependeriam somente da boa-vontade dos governantes, se fosse aceitável substituir o regime tributário por uma contribuição substitutiva de um tributo.
Não, essa prática não é tolerável! Bem ao inverso disso, no direito não se pode fazer indiretamente o que não se pode fazer diretamente. Não se pode fazer por vias transversas o que não se pode fazer retamente. Simples assim!
Logo, se diretamente o princípio da legalidade deve ser obedecido, se não se pode onerar as exportações, se a não cumulatividade é preceito obrigatório, se não se pode deixar de repartir o ICMS com os municípios, se é vedado destinar a arrecadação sem orçamento aprovado; também não se pode fazer isso indiretamente, por meio de uma contribuição a um fundo, substitutiva do regramento do ICMS.
É patente a fraude à Constituição. O estado de Goiás acredita ter encontrado uma espécie de chave mágica para afastar as limitações constitucionais ao poder de tributar: basta colocar, como condição para afastar o oneroso encargo tributário, uma pretensa contribuição facultativa não tributária. A ser aceitável esse tipo de estratagema, não se pode descartar que, futuramente e em exemplo extremo, a União Federal aprove uma condição para afastar um pesado imposto sobre a renda com alíquota de 50%, consistente em o contribuinte voluntariamente recolher uma contribuição com alíquotas mais amenas estabelecidas pelo Poder Executivo. Magicamente seriam afastadas as limitações constitucionais, como o princípio da legalidade, e a obrigação de dividir a arrecadação decorrente do IR com os Estados e os Municípios: bastaria colocar como condição para afastar o encargo tributário gravoso que o contribuinte dispensasse suas garantias constitucionais.
É verdade que o Supremo Tribunal Federal já analisou a constitucionalidade do FUNDERSUL, do Mato Grosso do Sul. Entretanto, a análise pecou pela falta de profundidade e se limitou a afirmar que a contribuição a esse Fundo não possuiria natureza tributária. A questão, porém, não é essa. O ponto central é que não se pode tolerar a fraude às limitações constitucionais ao poder de tributar e às regras orçamentárias. Esperamos que o Judiciário, quando provocado, não aceite essa insidiosa e perigosa irregularidade, que está se alastrando pelo País, em outros Estados.

real-money-g96db362c0_1920

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Governo goiano acredita ter encontrado espécie de chave mágica para afastar limitações constitucionais ao poder de tributar

Goiás e a fraude à Constituição

Governo de Goiás acredita ter encontrado espécie de chave mágica para afastar limitações constitucionais ao poder de tributar