Julia Mendes Montoya Lazo

Paulo Rená da Silva Santarém

Embora tenha sido proferida decisão em sede de repercussão geral, o cenário do direito ao esquecimento está longe de se esgotar no Brasil. Vários processos serão julgados à luz da declaração de incompatibilidade com a Constituição da República, ensejando debates não só quanto à correção dessa recente tese, mas no necessário preenchimento do conteúdo objetivo dos direitos de personalidade e, ainda, nas especificidades materiais de cada situação litigiosa.
Em 9 de novembro de 2021, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu o reexame do pedido de indenização por dano moral, formulado contra a TV Globo por um serralheiro, inocentado à época da chacina da Candelária. O colegiado não exerceu juízo de retratação e manteve a condenação ao pagamento de R$ 50 mil. Mas, em respeito à tese do Supremo Tribunal Federal (STF), removeu da fundamentação o direito ao esquecimento, substituído pela identificação de excesso no exercício de liberdade de expressão e de informação.
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Para o relator, ministro Luis Felipe Salomão, o episódio de 2006 do "Linha Direta: Justiça", ao explorar o famoso crime de 1993, ofendeu a dignidade do autor da ação, pela forma como expôs nacionalmente seu nome e sua imagem, com ênfase no seu indiciamento, e não na absolvição por falta de provas diante do tribunal do júri. Contra o voto, apresentado em agosto, apenas o ministro Raul de Araújo divergiu, e restou vencido.
A devolução para a Turma do STJ ocorreu em razão de o STF, em fevereiro de 2021, ter fixado o Tema de Repercussão Geral nº 786, com a tese de que a Constituição Federal brasileira não acolhe o direito ao esquecimento, definido como "o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais". O posicionamento ocorreu com o julgamento do caso Aída Curi (RE 1.010.606)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, ajuizado por parentes da vítima também contra a TV Globo,  em razão da reconstituição, pelo mesmo "Linha Direta: Justiça", de um crime brutal cometido em 1958, em Copacabana.
De acordo com o STF, o ordenamento jurídico brasileiro não alberga "guarda-chuva" à pretensão genérica de esquecimento, mas em situações singulares o Judiciário pode proteger os direitos de personalidade eventualmente lesados em razão do abuso de comunicação publicada na Internet ou nos tradicionais veículos de mídia.
A decisão do STJ realiza a análise singularizada expressa na segunda parte do Tema 786: "Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".
Há similaridade entre os dois casos. Ambos envolvem ações indenizatórias contra a Globo e buscam reparação por danos morais provocados por reportagens do mesmo programa de TV, que se valia de imagens e nomes reais ao reconstituir crimes brutais não contemporâneos à época da exibição. Mas em um houve condenação pelo STJ, e no outro absolvição pelo STF.
Além de rechaçar objetivamente o direito ao esquecimento, o plenário do STF negou a indenização aos familiares de Aída Curi. Considerou não ter sido cometido ato ilícito pela TV Globo, que não inovou nos fatos noticiados e apenas exerceu regularmente um direito, a teor do art. 188, I, do Código Civil.
Cabe lembrar que em 2015, também examinando a relação entre liberdade de expressão e privacidade, o STF afastou a exigência de autorização prévia para publicação de biografia.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Essa tese foi retomada no voto do ministro relator Dias Toffoli no caso Aída Curi:
<blockquote class="jota-article__citation">“No  caso  dos  autos,  conquanto  não  se  trate,  propriamente,  de biografia  audiovisual,  mas  de  programa  jornalístico  com  reconstituição dos  fatos  por  encenação  de  atores,  que,  portanto,  mescla  documentação de  uma  época  com  a  apresentação  da  história  de  vida  da  vítima, compreendo  aqui  aplicável  a  mesma  ratio  do  julgado. Ademais,  todos  os  crimes  são  de  interesse  da  sociedade,  mas  há aqueles  em  que,  por  seu  contexto  de  brutalidade,  tornam-se  objeto  de documentação  social  e  jornalística,  sendo  sua  descrição  e  seus  contornos alvo  de  farto  registro.  Tais  registros  (em  fotos,  livros,  reportagens  da época  e  testemunhos)  não  são,  em  princípio,  violadores  da  honra  ou  da imagem  dos  envolvidos,  mesmo  no  que  toca  à  vítima”.</blockquote>
Para o STF, a configuração de excesso ou abuso no exercício da liberdade de expressão e de informação depende de dois requisitos. Primeiro, a forma da comunicação deve envolver afirmações de informações inverídicas, ou o tratamento ilícito de dados pessoais. E, segundo, a ofensa a um dos direitos da personalidade – por exemplo, honra, imagem, intimidade, liberdade de ação, autoestima, sexualidade, saúde ou o nome de uma pessoa. E foi nessas bases que a 4ª Turma do STJ manteve a condenação no caso da chacina, mesmo admitida a incompatibilidade entre o direito ao esquecimento e a Constituição.
"Constatou-se exatamente a situação abusiva referida pelo Supremo, situação para a qual aquele tribunal determinou: em sendo constatado o excesso na divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais, proceda-se o julgador competente ao estancamento da violação, a partir das legítimas formas previstas pelo ordenamento", nos termos do voto do ministro Salomão.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa dualidade entre STJ e STF obviamente é apenas uma de numerosas divergências de resultados, que podem também espelhar desencontros de entendimentos tanto sobre o significado objetivo de cada direito de personalidade, quanto sobre os limites do próprio Tema 786.</blockquote>
A partir da posição do STF, cada julgamento concreto abre uma nova possibilidade de interpretação. E já podem listar algumas decisões de Tribunais de Justiça que resultaram em ordens de remoção ou supressão de informações verdadeiras, obtidas licitamente e dotadas de interesse público.
A 1º Turma Recursal do Tribunal de Justiça da Bahia, em 19 de abril de 2021,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> determinou que o Google Brasil desvincule, no resultado de buscas, o nome completo do autor de 49 URLs específicas que o relacionam a um furto de 2019, crime pelo qual ele nem sequer foi denunciado. A relatora, sem fazer menção ao Tema 786, amparou-se em acórdão do STJ de 2018, no REsp 1.660.168/RJ, destacando a tese de que devem preponderar “o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais”. O Recurso Extraordinário não foi admitido.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
No mesmo sentido, mas considerando a tese do STF, a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 25 de maio de 2021,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> manteve sentença que determinou a exclusão de uma matéria jornalística do portal Terra e a desindexação do Google de postagens de blogs. O caso envolve um fato de 2005, em que um advogado de direito desportivo trabalhista, enquanto estudante, teria sido processado por se passar por juiz durante uma blitz de trânsito, mas a punibilidade foi extinta por prescrição. A fim de preservar “a inviolabilidade da intimidade e da vida privada”, entendeu-se que “o autor não pode ser permanentemente submetido à memória desabonadora de sua imagem” por meio da “divulgação permanente dessa informação, obtida com a simples digitação do nome do autor como critério de busca”. A baixa definitiva do processo aconteceu em agosto de 2021.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Cite-se, por último, decisão da 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Mesmo fazendo menção ao Tema 786, o colegiado registrou como fundamentos que a remoção do conteúdo se justifica pela “Patente violação à dignidade, à intimidade, à honra e à imagem” e que a desindexação se justifica por “Circunstância excepcional que necessita de intervenção pontual do Poder Judiciário”. Nesse ponto, assim como na decisão do TJBA, a ementa faz referência expressa à preponderância do direito ao esquecimento, e cita como precedente o mesmo acórdão proferido pelo STJ em 2018.
Claro que também há casos decididos contra a pretensão de desindexação ou remoção de conteúdos. Somente uma pesquisa jurisprudencial ampla poderá revelar de forma detalhada o cenário real que se forma neste momento, demonstrando quais linhas de interpretação estão se consolidando no Judiciário brasileiro.
Uma possível tendência benéfica, aliás, poderia ser um amadurecimento do conteúdo dos direitos de personalidade. A previsão legal do tema carece de adequada sistematização no Código Civil, tendo sua mais atualizada lista de garantias na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), inserida, curiosamente, pela reforma trabalhista. Todavia, nota-se ainda uma superficialidade na abordagem conferida aos conceitos de privacidade, intimidade e até dados pessoais.
E no plano internacional, pode-se ainda antever alguma contraposição entre a tese do STF de incompatibilidade entre a Constituição Federal e um “direito a ser esquecido”, que encontra previsão expressa no artigo 17 do Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu. O caso do espanhol Mario Costeja González ilustra o potencial conflito de jurisdição quando se trata de multinacionais que atuam como provedores de aplicações de internet em diversos continentes.
Mesmo com uma decisão do STF em sede de repercussão geral, o complexo debate sobre o direito ao esquecimento no Brasil ainda será uma lembrança viva por um bom tempo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 1.010.606/RJ. Relator Min. Dias Toffoli. Julgado em 11 fev. 2021. Publicado no DJe em 20 mai. 2021. Disponível em: <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346473757&amp;ext=.pdf">https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346473757&amp;ext=.pdf</a>. Acesso em: 11 nov. 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815. Relatora Min. Cármen Lúcia. Julgado em 10 jun. 2015. Publicado no DJe em 26 jun. 2015. Disponível em: <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4271057">https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4271057</a>. Acesso em: 12 nov. 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BAHIA. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Primeira Turma Recursal Recurso Inominado no 0188084-06.2019.8.05.0001. Relatora Juíza Nícia Olga Andrade de Souza Dantas. Julgado em 19/04/2021. Publicado no DJe em 20/04/2021. Disponível em <a href="https://jurisprudenciaws.tjba.jus.br/inteiroTeor/e534eefb-b4ad-3b44-9f91-19f24ecd00f5">https://jurisprudenciaws.tjba.jus.br/inteiroTeor/e534eefb-b4ad- 3b44-9f91-19f24ecd00f5</a>. Acesso em: 14 nov. 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BAHIA. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Processo nº 0188084-06.2019.8.05.0001 (747 dias em tramitação). Dados do Processo. Disponível em <a href="https://projudi.tjba.jus.br/projudi/listagens/DadosProcesso?numeroProcesso=3220194097088">https://projudi.tjba.jus.br/projudi/listagens/DadosProcesso?numero Processo=3220194097088</a>. Acesso em: 14 nov. 2021, via <a href="https://projudi.tjba.jus.br">https://projudi.tjba.jus.br</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Décima Sexta Câmara Cível. Apelação Cível no 0280037-95.2018.8.19.0001. Relator Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo. Julgado em 25/05/2021. Publicado no DJe em 28/05/2021. Disponível em: <a href="http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&amp;GEDID=00045F3A7BD62E4C1BAFE2CEB8FEC59A866AC50E61156408&amp;USER=">http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&amp; GEDID=00045F3A7BD62E4C1BAFE2CEB8FEC59A866AC50E61156408&amp;USER=</a>.  Acesso em: 10 set. 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo Nº: 0280037-95.2018.8.19.0001. Consulta Processual por Número - Segunda Instância. Disponível em: <a href="https://www3.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=202000175285">https://www3.tjrj.jus.br/ejud/Consulta Processo.aspx?N=202000175285</a>. Acesso em: 14 nov. 2021, via <a href="http://www.tjrj.jus.br/web/guest/consultas/processos_jud/processos_jud">http://www.tjrj.jus.br/web/guest/consultas/ processos_jud/processos_jud</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo nº 1086490-77.2015.8.26.0100. Retificação. Apelação Cível. Relator Desembargador Edson Luiz de Queiroz. Diário da Justiça Eletrônico - Caderno Judicial - 2ª Instância, São Paulo, Ano XIV - Edição 3318, pág. 2054, Disponibilização: quarta-feira, 14 de julho de 2021. Disponível em: <a href="http://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=15&amp;nuDiario=3318&amp;cdCaderno=11&amp;nuSepagina=1">http://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/consultaSimples.do?cdVolume=15&amp;nuDiario=3318&amp;cdCaderno=11&amp;nuSepagina=1</a>.  Acesso em: 25 set. 2021.

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JOTA

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