Grupo de Pesquisa sobre Jurisprudência do TIT do NEF/FGV Direito SP

A <a href="https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2018/lei.complementar-1320-06.04.2018.html">LC 1.320/2018</a> instituiu no estado de São Paulo o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária, o Nos Conformes. Seu objetivo é o de diminuir a litigiosidade na esfera administrativa e, consequentemente na judicial, bem como o de promover o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias estaduais.
O seu artigo 1º elenca os princípios que orientam todas as medidas a serem adotadas no âmbito do aludido programa, dentre eles: 1) “simplificação do sistema tributário estadual”, 2) “boa-fé e previsibilidade de condutas”, bem como 3) “segurança jurídica pela objetividade e coerência na aplicação da legislação tributária”.
Nesse contexto, o caput do artigo 14 dispõe que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (SEFAZ-SP) incentivará o contribuinte do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/icms">ICMS</a> a se regularizar.
O parágrafo primeiro do mesmo dispositivo estabelece que o “contribuinte poderá ser notificado sobre a constatação de indício de irregularidade”, oportunidade em que ficará a salvo de multas, desde que sane a irregularidade no prazo indicado na notificação.
Conjugadas essas disposições da lei com os princípios e diretrizes balizadores do referido programa, entendemos que é obrigatório ao fisco, em momento prévio à lavratura de auto de infração e imposição de multa (AIIM), notificar o contribuinte para promover eventuais ajustes quanto ao cumprimento de suas obrigações tributárias.
Porém, na prática, temos visto muitos AIIM serem lavrados sem que previamente seja dada ao contribuinte tal oportunidade para regularizar pendências.
Quando instado a se manifestar sobre a obrigatoriedade de haver a abertura prévia de prazo para regularização, como requisito para que o AIIM seja lavrado caso as irregularidades não sejam sanadas, o Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tit">TIT-SP</a>) tem mantido as autuações. As decisões sobre a matéria foram proferidas em âmbito de recurso ordinário<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
De forma isolada ou conjunta, em síntese os argumentos para que os autos fossem mantidos foram os seguintes:
<ol>
<li>a edição da LC 1.320/2018 é posterior à lavratura do auto ou ao início da fiscalização. Assim, os balizamentos relativos ao Programa nos Conformes não podem ser aplicados;</li>
<li>a LC 1.320/2018 depende de regulamentação quanto aos critérios a serem observados para a abertura ou não de prazo para regularização;</li>
<li>eventuais retificações por parte do contribuinte apenas poderiam ser realizadas antes de iniciado o procedimento fiscal;</li>
<li>a abertura de prazo seria uma mera faculdade da autoridade fiscalizadora; e</li>
<li>o fato de ser uma faculdade não acarreta tratamento distinto entre contribuintes na mesma situação, pois a lei que veiculou o Programa nos Conformes determina a sua classificação em diferentes graus de aderência às obrigações tributárias.</li>
</ol>
O primeiro argumento do TIT-SP faz sentido em parte. De fato, contribuintes com autos já lavrados não podem reclamar a abertura de prazo para regularização prévia, pois os seus anseios têm incompatibilidades lógica e temporal com a norma. Por um outro lado, estando a fiscalização ainda em curso, sem AIIM lavrado, devem prevalecer os princípios que culminam em autorização para o fiscalizado autorregularizar as obrigações.
Sobre o segundo argumento, caso a lei dependesse de regulamentação para ser aplicada, diversos postos fiscais paulistas já não teriam iniciado o seu uso, com ações para melhorar a relação com os contribuintes e para que seja evitada a lavratura de auto, o que é fato notório.
No que diz respeito ao terceiro ponto, se fosse para o contribuinte regularizar o cumprimento de suas obrigações tributárias antes de iniciado o procedimento fiscal, ele poderia se valer de denúncia espontânea, independentemente da edição da LC 1.320/2018.
Quanto ao deferimento de prazo ser uma mera opção (quarto argumento), entendemos que esse não é o espírito da LC 1.320/2018, tampouco o que anseia a Constituição Estadual Paulista, de 5/10/1989.
Caso a abertura de oportunidade para o contribuinte se regularizar dependesse de faculdade da autoridade fiscalizadora, essa hipótese abriria a chance de que aqueles que estivessem na mesma situação recebessem tratamentos distintos.
Aqui aproveitamos, também, para afastar o quinto argumento do TIT-SP, pois mesmo que a classificação dos contribuintes em categorias estivesse sendo utilizada para os fins da abertura de prazo para autorregularização, ainda assim a lei não estabelece quem faz jus ao benefício na hipótese em que a análise de indícios de irregularidades é iniciada de ofício. Com efeito, nesse caso, a possibilidade de se autorregularizar deve ser aberta a todos.
Assim, devemos ter em mente o que dispõem, respectivamente, os artigos 4º e 163, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, segundo os quais nos “procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados” e que é vedado ao Estado “instituir tratamento desigual entre contribuintes”.
Também nessa linha, o artigo 111 do mesmo diploma traz a necessidade de observância ao princípio da impessoalidade. Isso significa que todos os administrados devem ter tratamento uniforme, ou seja, sem discriminações de qualquer natureza.
Como consequência disso, quando, em uma leitura rápida, disposições diminutas e/ou isoladas da LC 1.320/2018 porventura levem a crer que a abertura de prazo para o contribuinte se regularizar é uma mera faculdade da fiscalização - como no trecho “o contribuinte ‘poderá’ ser notificado sobre a constatação de indício de irregularidade” - elas não devem ser consideradas de forma isolada. Necessitam ser examinadas no contexto em que se encontram.
Celso Antônio Bandeira de Mello corrobora o que defendemos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">O que explica, justifica e confere sentido a uma norma é precisamente a finalidade que a anima. A partir dela é que se compreende a racionalidade que lhe presidiu a edição. Logo, é na finalidade da lei que reside o critério norteador de sua correta aplicação, pois é em nome de um dado objetivo que se confere competência aos agentes da Administração.</blockquote>
Em sintonia com a impossibilidade de consideração isolada de trechos da lei, Carlos Maximiliano examina especificamente o uso dos vocábulos “pode” e “deve” por diplomas e assim esclarece<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">Propende o Direito moderno para atender mais ao conjunto do que às minucias, interpretar as normas com complexo ao invés de as examinar isoladas, preferir o sistema à particularidade. Se isto se diz da regra escrita em relação ao todo, por mais forte razão se repetirá acerca da palavra em relação à regra. Ater-se aos vocábulos é processo casuístico, retrógrado. Por isso mesmo se não opõe, sem maior exame, pode a deve, não pode a não deve [...]</blockquote>
Para arrematar, trazemos a seguir ementa de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o qual garantiu a um contribuinte a possibilidade de regularizar suas obrigações tributárias após o início da fiscalização, nos termos da Lei n° 1.320/2018:
<blockquote class="jota-article__citation">"AGRAVO DE INSTRUMENTO - Mandado de Segurança - Decisão que indeferiu a liminar pretendida para determinar que a agravada não dê continuidade à fiscalização - Possibilidade, diante do disposto no §2º, do artigo 14, da Lei Complementar n° 1.320/2018 – Notificação fiscal que não retira, em tese, a espontaneidade do contribuinte - Presentes os pressupostos legais para a concessão da liminar pretendida em sede de mandado de segurança - Recurso provido".</blockquote>
Ao lermos o inteiro teor do acórdão, destacamos o seguinte trecho:
"Assim, considerar que a notificação recebida pela agravante tem o cunho de tirar sua espontaneidade, é negar os objetivos pretendidos pela Lei Complementar nº 1320/18, qual seja, o de estimular os contribuintes de se autorregularizarem, o que não parece uma interpretação razoável".
Portanto, com os balizamentos trazidos explicitamente pela LC 1.320/2018, bem como pela Constituição paulista, o fisco é obrigado a abrir a oportunidade para o contribuinte regularizar as suas obrigações tributárias. Apenas na hipótese em que os ajustes não forem feitos no prazo concedido, o auditor estará autorizado a lavrar o auto de infração e imposição de multa.
Autor:
Harone Prates Vilas Bôas - Sócio do escritório H. Vilas Bôas Advogados, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduando em Ciências Contábeis pela Universidade de São Paulo
Coordenação:
Eurico Marcos Diniz de Santi 
Eduardo Perez Salusse 
Lina Santin 
Kalinka Bravo
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os acórdãos encontrados constam das discussões relacionadas aos seguintes autos de infração e imposição de multa: AIIM n° 4.093.452-4, Décima Sexta Câmara Julgadora, relator Argos Magno de Paula Gregório, julgado em 5/12/2018; AIIM n° 4.107.889-5, Décima Câmara Julgadora, relator, Raphael Zulli Neto, julgado em 16/1/2019; AIIM n° 4.107.873-1, Décima Câmara Julgadora, relatora Fabiane de Souza Araujo Botechia, julgado em 27/2/2019; AIIM n° 4.110.928-4, Décima Terceira Câmara Julgadora, relator Inácio Kazuo Yokoyama, julgado em 29/3/2019; AIIM n° 4.113.648-2, Quinta Câmara Julgadora, relator Silvio Ryokity Onaga, julgado em 9/5/2019; AIIM n° 4.121.812-7, Décima Quita Câmara Julgadora, relator Alexandre dos Santos Dias, julgado em 22/11/2019; AIIM n° 4.123.932-5, Oitava Câmara Julgadora, relator Raphael Zulli Neto, julgado em 25/11/2020; AIIM n° 4.127.550-0, Terceira Câmara Julgadora, relatora Luciana Cristina da Silva Vendramini, julgado em 23/2/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Curso de Direito Administrativo. 26 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 106.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 220.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> 6ª Câmara de Direito Público, Agravo de Instrumento n° 2185949-39.2018.8.26.0000, relatora: Silvia Meirelles, julgado em 13/11/2018.

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JOTA

O contribuinte paulista deve ser intimado para regularizar pendências tributárias antes de ser autuado?

Observatório do TIT: Programa Nos Conformes e os autos lavrados pelo fisco

Programa Nos Conformes: Contribuinte paulista deve ser intimado para regularizar pendências tributárias antes de ser autuado?