Renato Toledo

No início de fevereiro, o Distrito Federal editou a Lei nº 6.112/2018, que dispõe sobre a obrigatoriedade da implantação de programas de integridade pelas empresas interessadas em contratar com os órgãos e entidades daquele ente da Federação. Com isso, o Distrito Federal segue o exemplo do Rio de Janeiro que, em outubro do ano passado, já havia sido pioneiro no tema ao editar a Lei nº 7.753/2017, com conteúdo similar.
A medida é digna de aplausos. Em um cenário pernicioso de práticas patrimonialistas e antirrepublicanas, o uso do poder de compras do Estado pode ser uma ferramenta importante para alavancar uma cultura empresarial de integridade. Ocorre que, embora imbuídas de propósitos legítimos, as legislações fluminense e distrital merecem algumas ressalvas quanto às suas disposições.
O primeiro problema está em tratar os programas de integridade como uma obrigação contratual [<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>]. Para além das questões relacionadas à constitucionalidade dessa medida [<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>], a estratégia adotada pelas casas legislativas é distinta daquela que se cogitava no âmbito federal: <a href="https://www.jota.info/justica/compliance-pode-beneficiar-empresas-em-licitacoes-federais-22022016" target="_blank" rel="noopener">as propostas até então aventadas</a> envolviam a criação de margens de preferência em certames públicos para os licitantes que possuíssem programas de integridade. E as leis regionais, até onde se tem notícia, não foram precedidas de pesquisa sobre a capacidade de absorção do mercado quanto à nova demanda. Assim, do ponto de vista experimental, tratar subitamente os programas de compliance como uma obrigação e não como uma sanção premial pode ter reflexos indesejados na competitividade dos certames [<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>], ao menos em curto prazo. Ou pior: impulsionar a criação de programas de fachada.
O segundo problema envolve a forma de avaliação. Isso porque ambos os diplomas reproduziram acriticamente os critérios abertos do Decreto Federal nº 8.420/2015 para a análise do programa de integridade, mas o prazo para sua avaliação (que se limita à vigência do contrato) pode vir a ser insuficiente para a aferição do seu cumprimento. Um programa de integridade não é um mero papel com boas normas internas de boas condutas. Mais do que isso, um programa efetivo requer uma análise concreta e contínua, que pode ultrapassar em muitos casos o prazo contratual. Como saber, por exemplo, se um canal de denúncias é efetivo no primeiro dia de sua implementação, para os casos de empresas que criam seus programas no decorrer da execução contratual? Uma forma bem vinda para solucionar a questão é criar órgãos responsáveis pela certificação do programa de integridade de forma externa por meio de procedimentos auxiliares, sem que sua atuação seja limitada ao prazo do contrato administrativo.
Daí também decorre o terceiro problema. É que, em ambos os diplomas, a fiscalização do cumprimento dessa obrigação é feita pelo gestor de cada contrato. Disso decorrem alguns desconfortos. (i) É difícil cogitar que haja um número suficiente de servidores capacitados para avaliar um programa de integridade, ainda mais de forma concomitante às demais obrigações contratuais. No mais, (ii) é provável que esse tipo de previsão propicie uma atuação assistemática e descoordenada do Poder Público, sem segurança para o parceiro privado. E dessa insegurança podem surgir novos até novos focos de corrupção. Estar-se-ia, assim, diante de um verdadeiro paradoxo regulatório: na tentativa de estimular a integridade, abre-se um novo mercado de ilegalidades, seguindo o velho brocado de que “dificuldades são criadas para se vender facilitações”. Nesse ponto, a centralização da atividade fiscalizatória em um órgão institucionalmente desenhado para tanto pode ser a melhor forma de corrigir essa falha de regulação [<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>]. Propicia-se um espaço que facilita a especialização e a capacidade de aprendizado dos gestores públicos; e garante-se maior transparência e controle da atividade.
Em suma, o combate à corrupção é um desejo coletivo, mas as respostas para enfrentá-la nem sempre são fáceis de encontrar. Mais do que boas intenções, é preciso pensar em arranjos normativos e institucionais que criem os incentivos certos para nossos gestores públicos. Trata-se de um desafio central para o direito público contemporâneo.

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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a>[] Veja-se que a própria Lei Anticorrupção utilizou a metodologia do soft law para incentivar o uso dos programas de integridade (ao prever a possibilidade de diminuição da pena aplicada no âmbito da Lei nº 12.846/2013), sem obrigar as empresas a implementá-los. Sobre a discussão quanto às vantagens do soft law em programas anticorrupção, v. CORDEIRO, Alexandre; VIANNA, Marcelo. “Programas de compliance – Um bom negócio” in Jota, &lt;<a href="http://jota.uol.com.br/programas-de-compliance-um-bom-negocio">http://jota.uol.com.br/programas-de-compliance-um-bom-negocio</a>&gt;, acesso em 07/12/2017; e IVANOV, Eduard. “How much ‘hard law’ is good for anticorruption compliance?” in The FCPA Blog, &lt;<a href="http://www.fcpablog.com/blog/2017/6/5/eduard-ivanov-how-much-hard-law-is-good-for-anti-corruption.html">http://www.fcpablog.com/blog/2017/6/5/eduard-ivanov-how-much-hard-law-is-good-for-anti-corruption.html</a>&gt;, acesso em 07/12/2017.
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<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a>[] O art. 22, XXVII da Constituição Federal define a competência privativa da União Federal para editar normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reiterou que a invalidade de requisitos de habilitação criados por leis locais, como no caso da exigência da Certidão de Violação aos Direitos do Consumidor criada pela Lei 3.041/2005, do Estado do Mato Grosso do Sul (ADI 3.735, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJE 01/08/2017). No caso da criação de preferências abstratas para aquisição de softwares livres, no entanto, o STF declarou constitucional a Lei nº 11.871/2002, do Estado do Rio Grande do Sul (ADI 3059, Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, DJe 08/05/2015).
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<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a>[] Por se tratar de uma obrigação contratual, a exigência encarecerá os custos dos contratos e afastará potenciais licitantes, sobretudo empresas menores com orçamentos apertados (o que se agrava em tempos de crise). De fato, um programa de integridade é custoso – envolve uma avaliação criteriosa de riscos; e requer, muitas vezes, o apoio de consultores externos especializados. Neste ponto, o art. 5º, §2º da Lei fluminense e o art. 5º, parágrafo único da lei distrital preveem que para efetiva implantação do programa de integridade, as despesas resultantes correrão à conta da empresa contratada, não cabendo ao órgão contratante o seu ressarcimento.
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<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a>[] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do Estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 417.
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Contratações públicas e programas de integridade

Contrapontos às novas legislações