Jurandi Ferreira

<blockquote>When I came home; on the abyss of the five senses, where a flat sided steep frowns over the present world. I saw a mighty Devil folded in black clouds, hovering on the sides of the rock, with corroding fires he wrote the following sentence now perceived by the minds of men, &amp; read by them on earth.
“How do you know but ev'ry Bird that cuts the airy way,
Is an immense world of delight, clos'd by your senses five?”
<footer class="jota-article__quote-cite">William Blake, “The marriage of heaven and hell”</footer>
</blockquote>
William Blake (1757-1827) foi um poeta e pintor inglês que deixou um legado inestimável para a literatura e as artes visuais. Ele é reconhecido como um dos maiores artistas da era romântica, e suas obras são marcadas pela intensidade, pela religiosidade e pelo caráter visionário. A obra The Marriage of Heaven and Hell não é diferente, perpassada por visões apocalípticas, críticas linguísticas e provérbios desenhados em linguagem bíblica. Foram 27 gravuras impressas em chapas de cobre, coloridas à mão por Blake e sua esposa.
Em sua narrativa, Blake fala sobre o “abismo dos cinco sentidos” e relata um encontro sobrenatural em que uma mensagem é escrita nos céus: “Como você sabe se cada pássaro que sobrevoa os ares não é um mundo imenso de deleite escondido para os seus cinco sentidos?”.
Esta mesma ideia geral fundamenta a Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft), do prussiano Immanuel Kant (1724-1804), contemporâneo de Blake.
Segundo Kant, o conhecimento humano é construído a partir da experiência sensorial, e a razão é responsável por organizar e interpretar essa experiência. Contudo, para ele, a razão não pode ir além dos limites da experiência, e por isso não é capaz de conhecer o que está além dos limites do mundo fenomênico. Isso significa que a razão não pode conhecer a realidade em si mesma, mas apenas as aparências que são percebidas pelos nossos sentidos. Em outras palavras, somos limitados ao abismo dos cinco sentidos.
Esta nova maneira de pensar o conhecimento humano influenciou significativamente o pensamento filosófico e científico subsequente, de Hegel a Jürgen Habermas, para quem a experiência humana é compartilhada através da linguagem (v. sua teoria do agir comunicativo).
Esta constatação, contudo, é incômoda para uma tradição jurídica que trabalha com conceitos como “verdade real” ou mesmo de “justiça”. Em sua clássica lição sobre a dinâmica do Direito, Hans Kelsen argumenta que a moral é um conceito cambiante, e que a decisão política tomada pelo Parlamento é nada além da escolha suprema sobre qual moral deverá prevalecer dentro de determinada comunidade, para fins de coação estatal. Logo, conclui-se que o que se tem por “justo” está inequivocamente limitado ao “abismo dos cinco sentidos” de quem julga. Por isso “os juízes aplicam o Direito, não fazem justiça”.[1]
Este embate, contudo, não é recente.
A Lei das Doze Tábuas é um marco incontestável na história do direito romano, em especial para a plebe. Em um tempo em que os patrícios dominavam a política e a justiça, esta lei tornou-se um instrumento essencial para a proteção dos direitos e garantias da plebe e de outros setores marginalizados. Pela primeira vez na história de Roma, o Direito passou a ser escrito e acessível a todos. Isso significava uma mitigação na forma arbitrária com que por vezes a aristocracia interpretava a lei, que agora seria aplicada, em tese, com base em princípios claros e objetivos.
Em que pese a lei escrita por si não ser sinônimo de Direito positivo – e já ter sido criada na Suméria a primeira codificação legal escrita, pelo Código de Ur-Nammu –, chama-se atenção neste ponto para a necessidade de que qualquer jogo tenha regras claras. Não há democracia se os juízes atuam guiados pelo seu próprio senso de moral e não pelo Direito[2].
A metodologia jurídica, de seu turno, é nada além de uma construção – há quem diga, científica – em torno da melhor forma de se investigar esta decisão política. É o método que permite ao jurista seguir um fluxo claro e objetivo de interpretação e reduzir sobremaneira o risco de estar substituindo a moral eleita pelo Parlamento. Discursos belos e instagramáveis sobre a felicidade geral, a moralidade, o amor e a justiça não substituem o método.
O professor americano Robert Dahl demonstrava clara preocupação com este processo, como atenta Ian Shapiro em prefácio à 2ª edição de “On Democracy”[3]:
<blockquote class="jota-article__citation">O papel da Suprema Corte deve se limitar a proteger “os direitos fundamentais necessários à existência do sistema político democrático”. Quanto mais a Corte se afasta deste mandato de reforçar a democracia, (...) mais ela se torna um legislativo não eleito que introduz no ordenamento leis e políticas públicas “sob o pretexto de interpretar a Constituição” – ou, ainda mais questionável, mergulhando nas obscuras e frequentemente desconhecidas intenções dos julgadores.</blockquote>
Noberto Bobbio, em suas lições sobre política, resume bem este fenômeno, fazendo um paralelo entre a ciência e atuação do jurista[4]:
<blockquote class="jota-article__citation">Pertenço à geração que presenciou a destruição, nos anos de sua formação, de toda forma de saber livre e independente e a pretensão que contra ele se ergueu de que as exigências da investigação científica deveriam ceder às razões do poder. Aprendemos uma lição da qual nunca mais nos esquecemos. Se a houvéssemos esquecido, a devastação produzida na mente dos jovens pela insensata polêmica desses últimos anos contra a ciência não-valorativa teria feito com que dela nos lembrássemos outra vez (...). Uma vez mais aprendemos como é cômodo desembaraçar-se dos vínculos que nos impõe o respeito aos fatos e às ideias de outrem, e como é fácil, uma vez abandonado o aporte de regras do bom método científico, tomar a estrada que conduz à mais descarada tendenciosidade. Bem sei que é difícil despir-se das próprias preferências; mas é precisamente nisto que consiste a nobreza do cientista. A não valoração é a virtude do cientista, assim como a imparcialidade é a virtude do juiz: não passaria pela cabeça de ninguém sugerir a um juiz que, sendo difícil ser imparcial, tanto vale não o ser.</blockquote>
O perigo em que incorremos ao nos distanciar da metodologia jurídica é, no mínimo, um: o de ver o sistema jurídico ser engolido pelo sistema da política (ou da economia etc.), como há muito alerta o professor Marcelo Neves. O desaparecimento de uma teoria geral do Direito nos devolve ao “abismo dos cinco sentidos”, de Blake. A dita “abertura moral do Direito” faz entrar em campo nada além da moral do próprio julgador.
Esta lição, gize-se é voltada para todo jurista. O advogado, em sua atuação contenciosa ou consultiva – e aqui enfatizo a relevância da lição para a Advocacia Pública, que orienta juridicamente o Estado –, tem o dever de atuar juridicamente[5].Conhecimentos de outras áreas são necessários para compreensão da norma, mas o fim da análise deve resultar em aplicar o Direito, com toda a metodologia e previsibilidade necessária a uma democracia.
<hr />
[1] “Em nosso tempo — hoje, aqui, agora —, o legal e o justo (Direito e justiça) não se superpõem. Fazer e aplicar as leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem” (Grau, Eros. "Juízes aplicam o Direito, não fazem justiça". Conjur. 14 de maio de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-14/eros-grau-juizes-aplicam-direito-nao-fazem-justica. Acesso em 6 de maio de 2023).
[2] Neste ponto, não se olvide que muito da interpretação jurídica é, de fato, a organização racional do próprio juiz, levando em conta sua própria experiência, sobre a norma positiva.
[3] DAHL, Robert A.. On Democracy. 2nd edition, with a new preface and two new chapters by Ian Shapiro. Yale University, 2015, p. x.
[4] BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bovero; tradução por Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 76.
[5] A propósito, o Enunciado de Boa Prática Consultiva CGU/AGU nº 07, orienta que "o Órgão Consultivo não deve emitir manifestações conclusivas sobre temas não jurídicos, tais como os técnicos, administrativos ou de conveniência ou oportunidade".

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JOTA

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