Dalide Barbosa Alves Correa

Oberdan Costa

No último dia 28 de fevereiro, o vereador Sandro Fantinel (ex-Patriota<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>), na tribuna da Câmara Municipal de Caxias do Sul (RS)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, discursou sobre o resgate dos 200 trabalhadores reduzidos a condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves (RS)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Indignou-se com as críticas ao empresariado vitivinícola e os aconselhou a contratarem “não mais aquela gente lá de cima", se referindo a trabalhadores da Bahia, porque sua cultura resumir-se-ia a “viver na praia tocando tambor”. Deveriam, isso sim, recrutar os argentinos, que seriam, ao revés, "limpos, trabalhadores e corretos".
Fossem outros o contexto e o orador, discutir-se-ia a indenização pecuniária devida, além da tipicidade da conduta. As falas possivelmente se subsomem ao art. 20 da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm">Lei 7.716/89</a>, que proíbe a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, cominando-lhe pena de reclusão de um a três anos. Discutir-se-ia se há encaixe entre a ação e o crime, vez que, segundo a máxima de que não há palavras inúteis na norma penal, o que se pune é a discriminação por “procedência nacional” (v.g., insultar alguém por ser venezuelano), e não pelas demais procedências (discriminação por procedência estadual, como é o caso).
Por outro lado, quem quisesse ver o tribuno réu argumentaria que, em homenagem à preponderância da lei nova sobre a lei velha acerca da mesma matéria, em 2023, a Lei 7.716 (datada de 1989) ganhou o art. 20-C, que alarga a interpretação de todos os crimes do diploma a fim de abranger toda discriminação em razão da proveniência, da planetária à municipal (“Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários, [...] em razão da [...] procedência”).
Acontece que não é nítido se o comportamento imoral do parlamentar é punível penalmente. A controvérsia reside no fato de o estado de vereança conferir inviolabilidade parlamentar constitucional “por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”, por força do art. 29, VIII, da CF/88. Cabe lembrar que o instituto, antes de ser um direito da pessoa do parlamentar, é faculdade do próprio Parlamento e, portanto, irrenunciável<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. A imunidade parlamentar existe por razão democrática defensável: na dicção do ministro Marco Aurélio, a parte mais sensível de quem se arvora às catilinárias “é o bolso e, se não se concluir dessa forma, pela abrangência da inviolabilidade, a ponto de apanhar não só a matéria criminal como também a cível, teremos, com a abertura dessa via, a inibição do parlamentar quanto à atividade desenvolvida, deixando, assim, de preservar a espontaneidade que se aguarda quando do exercício do mandato”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Vulnerabilizar os representantes eleitos frustraria o vigor que o eleitor anseia ver no debate ideológico.
O Supremo Tribunal Federal (STF), a quem compete interpretar definitivamente a Constituição, já encampou entendimentos diferentes sobre a extensão da imunidade material dos vereadores. De início, como perceptível no acórdão do RE 140.86 – de 1996, sob a relatoria do ministro Maurício Corrêa –, os pronunciamentos emitidos dentro da respectiva Casa Legislativa gozavam de imunidade material absoluta. Não havia perquirir o conteúdo das afrontas quando ocorridas no exercício do mandato eletivo e na circunscrição municipal. O acórdão só ressalvava que eventuais disputas seriam “questão a ser submetida à Casa Legislativa, nos termos das disposições regimentais”.
Já em momento posterior, passou-se a exigir a pertinência temática entre as manifestações e a atividade parlamentar. A imunidade material dos vereadores, antes vigente enquanto vigesse o mandato, ficou delimitada somente às palavras relacionadas aos interesses do município, nele ditas. Faz exemplo desse estágio da compreensão do instituto o AgRg RE 583.559, de relatoria do ministro Eros Grau, em 2008.
Hoje o STF entende, acerca da amplitude da imunidade, a tese insculpida no Tema 469: “nos limites da circunscrição do município e havendo pertinência com o exercício do mandato, garante-se a imunidade ao vereador”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Entretanto, o leading case originário da tese, cujo acórdão foi exarado em 2015, não guarda similitude absoluta com o panorama da tosca tentativa de defesa das vinícolas de Bento Gonçalves.
Nele, um vereador de Tremembé (SP) censurou a apresentação de ofício específico com palavras duras (“apoiou a corrupção [...], a ladroeira, [...] a sem-vergonhice”); mas, como estaria “participando [...] de uma discussão de cunho eminentemente político, relacionada à probidade do chefe do Executivo do Município que representa”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, restou indene juridicamente. Aqui, por outro lado, não é evidente que o escudo político defenda tudo o que falou o edil caxiense. No discurso completo na Câmara, vê-se que o pano de fundo seria a preocupação de Sandro com possível inviabilização da economia agrícola da região. Há registros de que, entre suas propostas de campanha eleitoral, estaria a busca de soluções para o problema do agronegócio local com as geadas<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Se o ataque xenofóbico poderia ser genuinamente confundido como infeliz conselho ao setor econômico é questão que judicialização do caso teria que, inarredavelmente, enfrentar.
A indagação é tão primordial ao enquadramento do episódio que, a depender da interpretação dada à legislação, ou o vereador seria de todo inatacável pela previsão constitucional ou, ao revés, estaria incidindo não só no caput de um crime simplesmente, mas também em causa de aumento de pena, justamente pelo especial desvalor de maquiar ardilosamente sua discriminação como exercício do múnus público (art. 20-B da Lei 7.716: “terão as penas aumentadas [...] quando praticados por funcionário público [...] no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las”).
A necessidade de declarar, nesse caso, onde residiria a divisória entre direito e excesso, atravessará inúmeros debates no futuro democrático de um país polarizado e inflamado politicamente.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://siepr.stanford.edu/publications/policy-brief/hybrid-future-work">https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/01/vereador-do-rs-que-discursou-contra-baianos-e-alvo-de-pedidos-de-cassacao-mpt-apura-apologia-ao-trabalho-escravo.ghtml</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.youtube.com/watch?v=Tckjf8dJFBw">https://www.youtube.com/watch?v=Tckjf8dJFBw</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.prt4.mpt.mp.br/procuradorias/ptm-caxias-do-sul/11808-forca-tarefa-avalia-condicoes-de-trabalhadores-em-bento-goncalves">https://www.prt4.mpt.mp.br/procuradorias/ptm-caxias-do-sul/11808-forca-tarefa-avalia-condicoes-de-trabalhadores-em-bento-goncalves</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BITENCOURT, Cezar Roberto. Parte geral – Coleção Tratado de direito penal volume 1 - 26. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> RE 600063, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno DJe-090  DIVULG 14-05-2015  PUBLIC 15-05-2015
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6] </a>https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2678561&amp;numeroProcesso=600063&amp;classeProcesso=RE&amp;numeroTema=469
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> RE 600063, voto do min. Luís Roberto Barroso.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="https://radiocaxias.com.br/portal/noticias/sandro-fantinel-tem-como-foco-de-atuacao-trazer-verbas-do-governo-federal-para-caxias-120922">https://radiocaxias.com.br/portal/noticias/sandro-fantinel-tem-como-foco-de-atuacao-trazer-verbas-do-governo-federal-para-caxias-120922</a>

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JOTA

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