Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">"Assim como Deus não pode ser propriamente definido, nem pode ser entendido por meio de palavras, da mesma forma esta nossa proporção nunca pode ser designada por números inteligíveis, nem pode ser expressa por qualquer quantidade racional, mas permanece sempre oculta e secreta, e é chamada de irracional pelos matemáticos."
<footer class="jota-article__quote-cite">FraLuca Pacioli</footer>
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Na semana passada, abordamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/fibonacci-e-o-direito-internacional-02042023">nesta coluna</a> as relações entre a ordem do cosmos, a estrutura da realidade e o Direito Internacional. Vimos como a realidade pode ser descrita matematicamente e como a Série de Fibonacci descortina uma estrutura estável, representada por uma sequência numérica que se verifica em todos os aspectos do cosmos, desde a configuração das galáxias até a disposição do DNA. “A boa ordem é o fundamento de todas as boas coisas”, já dizia Burke.
Mas a Série de Fibonacci não revela apenas das relações entre a ordem matemática e a ordem jurídica, ambos aspetos de uma realidade una, eterna e imutável, que se consubstancia no Ser em sua presença total, como a descrevia Louis Lavelle. Ela releva, também, a razão de proporção perfeita, conhecida desde a Antiguidade como “proporção divina” ou “proporção áurea”, que consubstancia o elo entre o bom, o belo e o justo. Entre a ordem matemática, a estética e o direito.
A proporção áurea pode ser obtida ao se dividir qualquer número da sequência de Fibonacci pelo número anterior. Por exemplo, 8 dividido por 5 é igual a 1,6 e 13 dividido por 8 é igual a 1,625. À medida que a sequência avança, essa razão se aproxima cada vez mais do número irracional 1,6180339887..., representado desde a Antiguidade pela letra grega phi (φ).
<footer>Essa proporção é a conhecida como a “medida da beleza”, porque é encontrada de maneira generalizada em obras de arte e de arquitetura, além de objetos e formas da natureza, como as espirais das conchas e das galáxias, as pétalas das flores, as ramificações das árvores e até mesmo na conformação do corpo humano. Os gregos acreditavam que a proporção áurea era a chave para a harmonia e a beleza na arte e na natureza, tendo utilizado conscientemente a proporção na construção das mais belas obras arquitetônicas da história humana, como no Parthenon de Atenas, por exemplo.Euclides de Alexandria (séc. 3º a.C.), o pai da geometria, descreveu a proporção áurea no Livro VI da sua obra “Os Elementos”. O famoso matemático grego definiu a proporção como sendo a divisão de uma linha em dois segmentos de forma que a razão entre o segmento menor e o maior seja igual à razão entre o maior e toda a linha. Ele também demonstrou que essa proporção é irracional, ou seja, não pode ser expressa como uma fração simples de números inteiros.Euclides mostrou que a proporção áurea tem várias propriedades interessantes e a usou para construir o famoso retângulo de ouro, um retângulo cuja razão entre a largura e a altura é justamente a proporção áurea, ou seja, aproximadamente 1,618. O retângulo de ouro é considerado a representação mais perfeita da harmonia estética e pode ser encontrado frequentemente em obras de arte e em monumentos de arquitetura.Mas essa não é a descoberta mais interessante da história. O mais instigante é o fato de que as dimensões do retângulo de ouro de Euclides coincidem com as da cruz cristã, o que levou inúmeros pensadores ao longo da história a se debruçarem sobre as relações entre as ambas as formas.Um dos gênios mais influentes a analisarem essa relação foi Luca Bartolomeo de Pacioli (c. 1447 d.C. – 1517 d.C.), um matemático e frade italiano, considerado o pai da contabilidade, por ter sido o pioneiro na introdução do método das partidas dobradas no Ocidente. Pacioli escreveu um livro sobra a proporção áurea, intitulado "Divina Proportione" e publicado em 1509, no qual ele explora a matemática da proporção áurea e seu uso na arte e na arquitetura, sem, contudo, inovar além das descobertas já registradas anteriormente por Euclides e Fibonacci.No que diz respeito às relações entre o retângulo de ouro e a cruz, mais especificamente, Pacioli acreditava que a proporção áurea era uma representação matemática da harmonia divina e que, portanto, deveria ser utilizada em todas as formas de arte. Ele via a cruz, por sua vez, como um símbolo fundamental dessa harmonia, e argumentava que o retângulo de ouro era uma forma ideal para representar a cruz.
Pacioli acreditava que a cruz simbolizava a terra e o retângulo de ouro simbolizava o céu. Pacioli experimentou com diversas formas de se produzir retângulos de ouro a partir de um quadrado, criando uma série de figuras geométricas complexas, incluindo um pentágono e um dodecaedro, que ele acreditava terem um profundo significado espiritual.
Pacioli tinha como colaborador ninguém menos do que Leonardo da Vinci (1452-1519), que fez as ilustrações de uma série de livros do seu amigo matemático, incluindo o "Divina Proportione". Dentre as imagens que Da Vinci desenhou para o livro de Pacioli está o famoso Homem Vitruviano, que representa um homem nu em duas posições diferentes, inscritas em um círculo e em um quadrado. A imagem é uma ilustração das proporções humanas ideais, conforme descritas pelo famoso arquiteto romano Vitrúvio (c. 80 a.C. – c. 15 a.C.), em sua obra "De Architectura".
A relação entre o Homem Vitruviano e o retângulo de ouro está na proporção das medidas do corpo humano, que podem ser relacionadas à proporção áurea. A figura humana do desenho de Leonardo da Vinci está inserida em um quadrado e em um círculo, que estão proporcionalmente relacionados. Quando se traça uma diagonal do quadrado, esta se intersecta com a circunferência do círculo em dois pontos, criando uma proporção áurea entre a altura do homem e a altura do quadrado. Essa imagem é uma das mais conhecidas do Renascimento e é considerada uma síntese da proporção e harmonia da forma humana com a geometria.
A figura do Homem Vitruviano é cercada de simbolismos e interpretações, incluindo a relação com o retângulo de ouro e a cruz cristã. A imagem do homem inscrito na figura de Da Vinci simboliza a união entre o divino e o humano, uma ideia central na teologia cristã e na celebração da Páscoa. A disposição do homem com os braços abertos sugere a posição de Cristo na cruz, enquanto as pernas abertas sugerem a forma de um compasso, um símbolo da criação divina.
Há, além disso, um aspecto jurídico nas relações entre a proporção áurea, o retângulo de ouro e a cruz que escapou à maioria dos analistas históricos. Para Carl Jung (1875-1971) a cruz é um símbolo arquetípico de equilíbrio e integração entre opostos, como a união entre o divino e o humano, o masculino e o feminino, a luz e a sombra. A cruz, assim, representa a união do transcendente com o mundano, do espiritual com o material, e descortina a capacidade humana de transcender a dualidade e encontrar a totalidade, a unidade do Ser.
A cruz representa o centro do universo e, ao mesmo tempo, o ponto de máximo sofrimento humano, que somente pode ser transcendido por uma operação que é, essencialmente, jurídica. É somente pela obediência à Lei, à Lei Divina, que reina acima da Lei Natural que ordena o cosmos, que se abre ao indivíduo humano a única possibilidade de redenção, que passa, contudo, pela sua entrega à morte, ao sofrimento máximo, ao sacrifício do que é mais precioso no altar do ponto central do universo.
O sacrifício do bem mais precioso e a aceitação da descida ao inferno abrem a possibilidade de se vencer a morte e a imperfeição, materializada na Ressurreição de Jesus Cristo na Páscoa. A própria palavra Páscoa deriva do hebraico "Pesach" (פסח), "passagem", e é assim empregada para evocar o episódio bíblico da libertação do povo judeu da escravidão no Egito, quando o anjo da morte "passou por cima" das casas dos israelitas que haviam marcado suas portas com o sangue do cordeiro pascal.
Note a leitora que, como já havia registrado Pacioli, a proporção áurea tem de ser necessariamente um número imperfeito. A justa medida, a proporção realmente divina e perfeita somente pode ser obtida no outro mundo, após o Juízo Final e a justificação de nossos erros e ofensas. Após a passagem permitida pelo derramamento do sangue mais precioso e inocente que jamais passara por este mundo. O ponto perfeito da harmonia entre o bom, o belo e o justo não pode ser atingido neste mundo decaído, mas apenas após a salvação da alma individual e a sua ascensão para o “reino de outro mundo”. “For us there is only the trying, the rest is not our business”, dizia T. S. Eliot.
Aí podemos divisar, não diretamente, face a face, mas, como dizia Santo Agostinho, per speculum in enigmate, a relação entre a ordem do cosmos - representada pela matemática e pela geometria -, a estética e o direito. Tudo é uno, eterno e imutável, na inabarcável presença do Ser. E o sacrifício perfeito, o sangue inocente derramado no centro da proporção áurea, no alto da cruz, materializado pelo abandono consciente das glórias transitórias de um mundo condenado à morte, em favor da obediência humilde e sincera à mais alta e verdadeira Lei, revela o segredo da passagem para um outro mundo sem lágrimas. Matemática, arte e direito se unem na Páscoa. Ex hoc momento pendet aeternitas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A eternidade depende deste momento.
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homem vitruviano

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JOTA

As relações entre a matemática, a estética e o direito

A Páscoa e a proporção áurea

As relações entre a matemática, a estética e o direito