José Jácomo Gimenes

A Constituição Federal completou 30 anos. Foi elogiada, saudada e comemorada por seus positivos avanços em direitos sociais e organização do Estado. Encerrados os festejos, é hora de debater, com responsabilidade e boa-fé, disfuncionalidades que a Constituição tem causado, buscando aprimoramento. Nesse texto, vamos focar duas disfuncionalidades causadas pela Constituição no Judiciário.
A primeira decorre da estruturação do Judiciário em quatro instâncias (juízos locais, tribunais regionais, tribunais nacionais e Supremo - cinco, na estrutura dos Juizados Especiais ), gerando repetição de julgamentos e "processos sem fim". A segunda decorre da amplíssima competência processual concedida ao Supremo Tribunal Federal, gerando uma corte empanturrada de processos e muita lentidão judicial.
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O ministro Gilmar Mendes tem apontado o problema. Em recente palestra explicou que "Nos tornamos, e isto é um problema, um país judiciário-dependente". Voltou a defender "desjudicialização" e que os integrantes do Judiciário se tornem "menos decisórios, menos impositivos, mais humildes"<a href="#sdendnote1sym" name="sdendnote1anc">i</a>. O ministro Roberto Barroso também tem reiteradamente criticado a estrutura do Judiciário e a exagerada competência do Supremo<a href="#sdendnote2sym" name="sdendnote2anc">ii</a>.
O Presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, reconhecendo a necessidade de mudanças no Judiciário, anunciou projeto de lei para reduzir o número de feriados judiciais, recessos e férias dos magistrados. Pode-se afirmar, com segurança, que este não é o problema central do Judiciário, mas confirma que está em crescimento o reconhecimento da necessidade de urgentes mudanças no Judiciário.
A trava central do Poder Judiciário é a sua estrutura exagerada, extremamente repetitiva, construída pela Constituição de 1988 em quatro instâncias de julgamento, permitindo dezenas de recursos processuais, insustáveis protelações e insegurança jurídica, modelo incompatível com as exigências da modernidade, gerando acúmulo de absurdo estoque de 80 milhões de processos, lentidão e muita injustiça.
Nessa estrutura desmedida, destaca-se a disparatada competência processual do Supremo Tribunal Federal, funcionando como corte constitucional, corte de instrução de processos especiais e quarta instância de milhares de recursos subjetivos, provocando uma dependência desastrosa para as três instâncias inferiores, apresentando-se como outra mítica jabuticaba a coroar a deficiência do sistema judicial.
Para enfrentar um risível estoque de quase 80 mil processos, a Suprema Corte foi divida em duas Turmas e alargado o poder de decisões monocráticas dos ministros. A estratégia, descurando a importância de decisões Plenárias, ampliou as divergências entre Turmas e milhares de decisões monocráticas dos ministros, gerando mais insegurança, desconfiança, ilegitimidades e perplexidade nacional.
O STJ, o importante tribunal nacional da justiça comum, participa da lentidão geral do sistema. A disfuncionalidade, nesse ponto, é que o STJ, em terceiro julgamento, não resolve definitivamente os processos que passam pelos seus computadores, pois só julga questões com relação as leis ordinárias. Os casos subjetivos que envolvem questões constitucionais podem ser levados para um quarto julgamento no Supremo.
O mundo judicial que nos cerca indica com clareza que estamos no caminho errado, que é necessário uma simplificação do Judiciário. Na jurisdição criminal, por exemplo, a comparação com outras democracias mostra o descompasso<a href="#sdendnote3sym" name="sdendnote3anc">iii</a>. Portugal, nossa inspiração constitucional, adota expressamente o princípio da inocência, mas só tem três instâncias de julgamentos e só crimes muitos graves chegam ao Tribunal Constitucional.
Na Alemanha, que também adota o princípio da inocência, é comum o cumprimento da pena após o segundo julgamento, mesmo porque os crimes graves começam a ser julgados na segunda instância, cabendo apenas um recurso para a corte superior<a href="#sdendnote4sym" name="sdendnote4anc">iv</a>. Na França, que também tem três instâncias, recursos para a Suprema Corte não têm efeito suspensivo, permitindo cumprimento de pena a partir do segundo julgamento.
Na Holanda, também com três instâncias, a Suprema Corte julga somente a legislação e é minimamente acionada, permitindo prisão após o segundo julgamento. Nos EUA, com sistema judicial diferenciado, a regra é acordos a partir da primeira instância e imediato início da execução da pena. Como se vê, o padrão é Judiciário mais reduzido, conclusão mais rápida dos processos e cumprimento da pena a partir do segundo julgamento.
No Brasil, com a Constituição de 1988, instaurou-se o sonho das quatro instâncias e dezenas de recursos intermediários. Na área criminal, além dos recursos dentro do próprio processo, permite-se um questionamento contínuo das decisões através de ilimitadas ações autônomas de Habeas Corpus e Mandados de Segurança, gerando um lento caos de decisões, parecendo um processo kafkiano, que nunca acaba.
A estrutura repetitiva e exagerada gera problema financeiro. O sistema judicial brasileiro tem custado elevado percentual do PIB (1,3%), muito superior ao gasto por democracias desenvolvidas (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Portugal, entre 0,2% a 0,37%), sem entretanto resolver o mal da lentidão e acúmulo de processos, indicando também que o aparelho judicial precisa ser racionalizado e redimensionado.
Não bastasse, ressurge forte pressão para retorno do famigerado princípio da inocência absoluto, que vigorou entre 2009 e 2016, que impede o cumprimento da pena antes de trânsito em julgado do processo, permitindo que o condenado leve seu processo até o Supremo, quarta instância recursal, livre da prisão, demorando décadas para ser julgado, permitindo protelações, prescrição, impunidade e muita injustiça.
A combinação do princípio da inocência absoluto com as quatro instâncias de julgamento, se implementado, vai gerar um paraíso recursal, espaço para protelações, lentidão, impunidade e perigosa descrença no sistema judicial. Nesse regime de dominação burocrática, onde o protocolo de mais um recurso livra condenado confesso da prisão por anos, ganham os delinquentes, mas o Brasil perde.
É necessário uma revolução no Judiciário, como muito bem explicou o ministro Luis Roberto Barroso na entrevista "Precisamos fazer uma revolução no modo como o Judiciário funciona", ao jornal O Estado de S. Paulo (4/9/2016). Destacou: "É preciso criar uma cultura de que o devido processo legal se realiza em dois graus de jurisdição, o primeiro e o segundo"<a href="#sdendnote5sym" name="sdendnote5anc">v</a>.
Esse é o quadro que permite clamar por uma reforma estrutural do Judiciário, começando pela drástica redução da competência do Supremo e conclusão dos processos subjetivos na terceira instância. O sistema judicial atual, burocrático e lento, é uma zona de conforto e poder para uns poucos, mas o Brasil é muito mais e não pode ser prisioneiro de uma doentia dependência do Judiciário.
O Supremo precisa ser libertado dessa descomunal carga de processos, competências e poder. O Supremo precisa cumprir a sua fundamental função de corte constitucional com tranquilidade e com muito mais rapidez. O Supremo precisa concentrar sua atuação nas questões nacionais objetivas, decidindo pelo Plenário sobre a constitucionalidade de leis e jurisprudências, pacificando a nação para o progresso.
O histórico estado de insuficiência do Judiciário, sufocado de processos e ritos repetitivos, pede atitude dos operadores do direito. O momento especial que estamos passando, pleno de consciência sobre a necessidade de mudanças estruturais, é apropriado para debate desse grave problema nacional. Esse processo de mudança precisa de protagonismo do Supremo e apoio da academia jurídica. Com a palavra os juristas.
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<a href="#sdendnote1anc" name="sdendnote1sym">i</a> https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,nos-tornamos-um-pais-judiciario-dependente-diz-gilmar-mendes,70002582065
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<div id="sdendnote2">
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<a href="#sdendnote3anc" name="sdendnote3sym">iii</a> https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43480154
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JOTA

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