![democracia e segurança pública](https://images.jota.info/wp-content/uploads/2023/06/tsvetoslav-hristov-sczjky3vaq-unsplash-1024x576.jpg)
Na coluna de hoje, convidamos Ludmila Ribeiro, professora de sociologia da UFMG, para debater a relação entre o Estado democrático de Direito e a segurança pública. Além de pesquisar políticas de segurança pública, ela tem como foco criminalidade, o funcionamento do sistema de justiça criminal e policiamento comunitário. Propomos que é necessário compreender melhor o desenvolvimento e a execução de políticas de segurança pública para a efetivação do Estado democrático de Direito no Brasil. A forma como tais políticas são desenvolvidas, executadas e até mesmo debatidas no país é incompatível tanto com pressupostos básicos do Estado de Direito quanto com o regime político democrático.
A separação entre segurança pública e democracia
Diversas análises problematizam como a cidadania institucionalizada após a Constituição Federal de 1988 possui uma série de limitações. Embora a Constituição contenha diversas garantias que teoricamente proporcionariam uma vida digna aos cidadãos, há uma grande discrepância na prática em relação ao que está prescrito. Em particular, populações historicamente marginalizadas, especialmente negros e destituídos, são comumente privados de seus direitos. Esse abismo, especialmente na área da segurança pública, não surgiu com o processo de redemocratização iniciado em 1985, mas faz parte da nossa história.
De acordo com José Murilo de Carvalho, quando se trata de substância da cidadania (e, por conseguinte, qualidade da democracia) temos um continuum que nunca foi alterado. Uma dinâmica que remonta às nossas raízes coloniais e imperiais, quando uma série de indivíduos eram tratados como bens móveis e, consequentemente, propriedade de senhores que utilizavam o braço armado do Estado como um mecanismo de controle. Em diversas ocasiões, utilizando-o para a aniquilação de “mercadorias” indesejadas.
Após a abolição da escravidão, não houve nenhuma política voltada para a integração dos negros na sociedade de classes, de forma intencional, garantindo a exclusão — inicialmente de forma legal e, depois, substantiva dos negros dos direitos civis, políticos e sociais. Nesse sentido, Wanderley Guilherme dos Santos destaca como a preocupação estatal em garantir direitos básicos a toda a população se fez presente em distintas leis e justificativas para a mudança legislativa desde a abolição da escravidão em 1888 até 1931.
Ir além da letra (morta) da lei e efetivamente garantir certos direitos de maneira substantiva é algo mais recente, ainda que centrado em determinados segmentos da população. A partir da década de 1930, tal compreensão se restringiu àqueles que possuíam carteira de trabalho. Novamente, segundo o autor, essa é a cidadania regulada, uma vez que é limitada a certas classes e restrita à influência de certas ocupações junto ao Congresso Nacional. Mais uma vez, é importante destacar que cidadãos negros e destituídos não foram incluídos nesse escopo de normas que garantiam direitos básicos, como o direito à vida. Os negros, se não eram mais tratados como uma mercadoria — como nos tempos de colônia e império — tampouco mereciam a atenção qualificada dos burocratas estatais, responsáveis por transformar a lei em realidade.
A Constituição de 1988, por sua vez, tenta aproximar a prescrição em lei da substância dos agentes estatais garantindo uma série de serviços para as populações vulneráveis. Esquece-se, contudo, a influência da cor da pele ou da classe social no acesso a uma série de direitos, como saúde, educação e assistência. De tal forma, apenas a “justiça” do sistema de segurança pública resta à grande parte da população brasileira. Um sistema que, em última instância, decide qual será a punição aplicada a esses indivíduos: a vida precária, a prisão ou a morte violenta. Teresa Caldeira nomeia essa realidade brasileira como “cidadania disjuntiva“, devido ao fato de os direitos previstos na Constituição não se refletirem em práticas sociais, especialmente no campo da segurança pública, que sejam capazes de garantir direitos básicos, principalmente os direitos civis.
Nesse sentido, o artigo 144 da Constituição define que a segurança pública, embora seja um direito e dever de todos, deve ser especialmente garantida pelas forças policiais. Entretanto, na prática, as forças polícias — frequentemente tidas como o “protetoras das classes dominantes” — continuam a desempenhar papéis historicamente atribuídos a ela. Se, durante a colônia e o Império, essas forças se incumbiam da repressão e controle da população escravizada; atualmente, observamos agentes do Estado praticarem extorsão e justiça pelas próprias mãos e, muitas das vezes, com amplo apoio da população.
As múltiplas intensidades da justiça na segurança pública
De acordo com os dados anualmente reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), embora existam sete polícias, a polícia militar dos 26 estados e do Distrito Federal é significativamente maior em termos de presença e número de efetivo do que as outras seis combinadas. Sua função cotidiana é preservar a ordem pública e a tão falada “paz social”. No entanto, historicamente, essa preservação da ordem pública tem sido alcançada através da exclusão de uma parte da população das promessas de cidadania estabelecidas pela Constituição, com destaque para a restrição da liberdade de ir e vir ou até mesmo a perda da própria vida. De tal forma, como defendido por Jacqueline Sinhoretto, é possível observar uma justiça de múltiplas intensidades no âmbito criminal.
Segundo a autora, as camadas de maior intensidade são reservadas para indivíduos que só podem ser investigados pela Polícia Federal, reconhecida por sua abordagem não violenta, recentemente ilustrada, de forma extrema, durante a prisão de Roberto Jefferson. Essa forma de justiça proporciona todos os rituais jurídicos possíveis para os “inocentes até que se prove o contrário”. No próximo nível, encontramos a justiça para as classes médias, que têm a capacidade de contratar advogados e, potencialmente, cumprir suas penas longe das prisões, conhecidas por seu estado de coisas inconstitucional, reconhecida por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
As terceira e quarta camadas são reservadas para jovens, negros e residentes de periferia, que representam o foco das ações das polícias militares no cotidiano das mais de cinco mil cidades brasileiras. Esses indivíduos, embora tenham sua cidadania prescrita por lei, raramente encontram ações estatais que a efetivem, especialmente, no campo da segurança pública, que efetiva esses tipos de “justiça”. A diferença entre essas camadas é que a terceira leva o indivíduo à prisão, e a quarta o condena imediatamente à pena de morte.
Mais recentemente, essas duas justiças de baixa intensidade foram consolidadas pela lei de drogas (Lei 11.343/2006). Em primeiro lugar, porque a quantidade de drogas não é um critério para diferenciar um usuário (que não vai para a prisão) de um traficante (que acaba preso). Em vez disso, são considerados elementos como o local da abordagem e as circunstâncias sociais do suspeito. A situação é agravada pela possibilidade de condenação com base apenas no depoimento do policial que efetuou a prisão em flagrante, mesmo que nada tenha sido apreendido com a pessoa detida. Segundo Gorete de Jesus, ocorre a transformação da verdade policial em verdade judicial, exemplificada pela súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.
A explosão do encarceramento de homens e mulheres negros e residentes em áreas periféricas, pela imputação de delitos previstos na lei de drogas (mesmo na ausência de qualquer evidência e com a alegação de inocência), é resultante da justiça de terceira intensidade. Como exposto no livro “O “Feijão com Arroz” do Sistema de Justiça Criminal”, é possível observar um processo de justiça em série, que começa com a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva durante a audiência de custódia. Esse processo continua durante a instrução e o julgamento, baseado no depoimento do policial que efetuou a prisão e no argumento de que o tráfico de drogas é a base de todas as outras formas de violência. E termina com a condenação, que muitas vezes equipara o tráfico a crime hediondo — em oposição à precedente do STF.
Finalmente, a justiça de quarta intensidade é realizada diretamente pelas forças policiais. Não é por acaso que todos os anos, novamente segundo dados do FBSP, 10% dos homicídios registrados no Brasil são perpetrados por PMs. As vítimas são majoritariamente jovens negros e residentes em áreas de periferia, qualificados como bandidos pelos próprios agentes. Como argumenta Judith Butler, eles “podem ser mortos” porque suas vidas não são consideradas choráveis em nosso mundo; seus corpos não importam para a exploração capitalista. Por isso, como mostram várias pesquisas na área, a chance de um agente público ser responsabilizado por essas mortes se torna irrisória.
O que chama a atenção é a alta aprovação que as mortes perpetradas pela polícia têm em nossa sociedade. De acordo com uma pesquisa do Datafolha de 2015, cerca de 57% dos brasileiros concordam com a afirmação “bandido bom é bandido morto”. De certa forma, isso representa uma ampla autorização para que os policiais administrem o crime da maneira que quiserem, o que, segundo Jacqueline Sinhoretto, pode chegar a incluir desde negociações realizadas diante das viaturas policiais até acordos firmados oralmente nas delegacias, além dos mecanismos diretos de punição, como a tortura, troca de tiros e execuções sumárias.
O potencial democrático da segurança pública
Como exposto, a função primordial da polícia é garantir a segurança e a preservação da vida de todos os cidadãos — incluindo a dos criminosos e dos próprios agentes. Nesse sentido, uma abordagem eficiente e adequada envolveria a aplicação de técnicas de inteligência, estratégias de prevenção, investigação criminal e, quando necessário, o uso proporcional da força, com o objetivo de proteger a vida e os direitos dos indivíduos. Tal abordagem, além de mais eficaz e apropriada ao paradigma defendido aqui, poderia levar até à redução dos índices de mortes dos próprios agentes de segurança pública — incluindo o crescente número de suicídios nas forças policiais.
Para tanto, é fundamental que a sociedade promova um debate informado e crítico sobre as políticas de segurança, buscando soluções efetivas que garantam a segurança de todos, respeitando os direitos fundamentais. De forma mais ampla, isso inclui investir em prevenção, educação, combate à desigualdade social, capacitação e suporte ao policial, responsabilização por eventuais abusos e aprimoramento dos mecanismos de controle e transparência. É necessário, como sugerido por Luiz Eduardo Soares, refundar a própria sociedade, que legitima e demanda a existência de uma justiça de múltiplas intensidades.
A polícia, como parte do sistema de Justiça, tem a responsabilidade de garantir a segurança e a vida de todos os cidadãos, independentemente de sua condição social ou étnico-racial. O respeito aos direitos humanos, o devido processo legal e a responsabilização por abusos são princípios fundamentais que devem ser observados em qualquer sociedade democrática.
Quando a polícia assume o papel de todo o sistema de Justiça, em violação os princípios do Estado de Direito, compromete-se a garantia dos direitos fundamentais, como o direito ao devido processo legal, à defesa e à presunção de inocência. Isso resulta em uma inversão da função primordial da polícia, que é a preservação da vida. Logo, é de responsabilidade das próprias forças policiais, de promotores, defensores e juízes assegurar que os abusos sejam devidamente investigados, punidos e que haja responsabilização pelos excessos cometidos.
A refundação de uma sociedade excludente requer um esforço coletivo, que envolve não apenas as instituições, mas também a participação ativa da sociedade civil na defesa dos direitos e na busca por transformações profundas. O combate aos discursos de ódio, a conscientização sobre direitos humanos e a construção de espaços de diálogo são etapas fundamentais nesse processo de refundação. Em suma, é fundamental reconhecer os abusos, reverter a lógica de violência e impunidade, e promover uma cultura de respeito aos direitos humanos e ao Estado de Direito. Somente assim poderemos avançar em direção a uma sociedade mais justa e democrática do ponto de vista da segurança pública.
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A coluna deste mês é resultado de uma colaboração com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O Crisp é um centro de estudos interdisciplinar e multidisciplinar estabelecido no Departamento de Sociologia da UFMG em 1996 que propõe produzir conhecimento acadêmico sobre os problemas da violência e da criminalidade e auxiliar na formulação, implementação e avaliação de políticas de segurança pública em Minas Gerais e no Brasil.