Observatório Constitucional

O Sistema de Justiça da Constituição de 1988

Velhos conhecidos, novas perspectivas analíticas

fiscal
Crédito: Lucas Gomes

As causas do robustecimento da juristocracia à brasileira já foram amplamente analisadas por publicistas e cientistas sociais, inclusive por mim (Lima, 2018), inserindo-as na tradição da denominada terceira onda de transição à democracia. Além do otimismo dos processos históricos, é possível atribuir às peculiaridades de consolidação estatal e da própria cultura político-burocrática brasileira, frequentemente associadas às dinâmicas entre elites políticas, jurídicas e funcionalismo público (Carvalho, 2010, p. 95-117), a aposta nas instituições do direito.

Mas como as instituições componentes do denominado Sistema de Justiça se consolidaram nas últimas décadas? Numa abordagem inicial, partimos da sempre necessária advertência de Sadek (2010, p. 8-9), de que o sistema “envolve diferentes agentes: o advogado, pago ou dativo; o delegado de polícia; funcionários de cartório; o promotor público e, por fim, o juiz”. Contudo, prefiro estreitar a sugestão, discutindo avanços e perspectivas analíticas das Funções Essenciais à Justiça (FEJ), em conformidade com os termos previstos na Constituição (CRFB): Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública, que representam extra e judicialmente os interesses sociais, dos hipossuficientes e estatais, respectivamente (Moreira Neto, 1992).

A ideia geral é retomar a pergunta já formulada anteriormente (Lima; Machado, 2022), em que questionávamos se o “novo MP” começaria a envelhecer, como provocação à onipresente abordagem da novidade representada pela configuração da instituição na CRFB. Aqui, a pergunta é direcionada às demais instituições, em busca da avaliação de suas trajetórias pós-1988.

Para tal fim, a sugestão de abordagem é o neoinstitucionalismo, que oferece uma visão geral sobre as implicações entre ordem, continuidade e mudança política, assumindo que as transformações são um elemento presente nas instituições e que os arranjos repercutem no surgimento, na reprodução e na transformação institucional (March; Olsen, 2006, p. 11).

Assim, proponho duas sugestões para organizar os estudos sobre o sistema de justiça: (I) preliminarmente, a proposta de que a compreensão das FEJ envolve o reconhecimento das suas pluralidades institucionais, para em seguida, avançarmos nas (II) transformações formais e informais em suas trajetórias, concluídas ou em curso.

A pluralidade institucional é um fator relevante, pois salienta a existência de infraestruturas, regramentos de carreira e culturas organizacionais variadas, ainda que possam ser cogitados aspectos como a existência de perfis normativos nas legislações nacionais de regência, instâncias associativas de caráter nacional capazes de promover a coordenação e a articulação de uma agenda institucional única, além de instrumentos gerais de accountability, como o Conselho Nacional do Ministério Público, por exemplo. É necessário reforçar, portanto, que as instituições públicas do SJ espelham a forma federativa, com estruturas no plano federal e suas respectivas manifestações autônomas nos estados-membros, espelhando eventualmente a distribuição de competências jurisdicionais.

Os agentes dessas instituições estão em constante mobilização, através de suas associações ou por iniciativas individuais, em torno das suas agendas. Essas movimentações podem se dar nos parlamentos, para aprovação de emendas às constituições (federal e estaduais) e leis ordinárias, mas também perante os tribunais, com o ajuizamento de ações individuais e coletivas, e ao STF. As pautas são as mais variadas: novas funções ou regulamentação das atribuições desempenhadas, regime jurídico (autonomia administrativa e financeira), prerrogativas dos membros (e cabe destacar a ênfase conferida a denominação de membro de carreira) e, claro, regime remuneratório (alteração e criação de parcelas), além de aumentos nominais.

A depender dos standards normativos e margens de atuação individual e coletiva, tem-se maior espaço de discricionariedade para o estabelecimento de padrões de atuação e – eventualmente – de assunção de novas tarefas, a despeito de previsões legislativas específicas. Deve-se destacar, ainda, que essas trajetórias não são construídas isoladamente, mas forjadas através de relações interinstitucionais, sejam estas de cooperação ou competição, no âmbito do próprio SJ ou das interações com outros atores e instituições políticas.

Inicialmente, deve-se destacar o MP, cuja reengenharia normativo-constitucional é tida como uma das principais inovações da ANC 87-88 (v. g. Lima; Machado, 2022). Instrumentalmente, asseguradas garantias institucionais e prerrogativas funcionais na CRFB, na Lei Complementar (LC) nº 75/1993 e Lei nº 8.625/1993, que aproximariam o MP às atividades de um “quarto poder”. Essa configuração representaria, na verdade, o ponto de chegada das articulações e reivindicações dos membros e associações (Lima; Lamenha, 2021; Arantes, 2002, p. 76), numa agenda iniciada ainda nos anos 70, expressada na estrutura quase inédita do “novo MP”, se comparadas a instituições em outras democracias (Macedo Júnior; 1995, p. 38).

Esse novo arranjo não permaneceu inalterado. Em especial, já pudemos ressaltar o paulatino direcionamento das atividades dos órgãos ministeriais para a repressão penal anticorrupção, amparada em reestruturações internas, diretrizes do CNMP, além da legislação material e compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro, que permitiram articulações com outras agências de controle (Arantes, 2011), a caracterizar um giro de prioridades do MP brasileiro, não mais voltado à tutela dos direitos transindividuais, com repercussões na atuação do MPF e também nos MP´s estaduais. Verificou-se ainda que, por se tratar de uma mudança informal, nada impede que – diante da singular plasticidade do Parquet – a depender de fatores externos e internos mobilizados, sobretudo pelos seus próprios membros, a instituição possa estabelecer outros temas prioritários (Lamenha; Lima, 2024, p. 75-76).

No campo da denominada advocacia dos hipossuficientes, a cargo da Defensoria Pública, teve-se um processo incremental de fortalecimento institucional (expansão das atribuições e das prerrogativas do órgão) pós-1988, através de uma série de transformações legislativas, com a aprovação de Emendas Constitucionais (69/2012, 74/2013 e 80/2014), da Lei Complementar n. 132/2009) e da Lei n. 11.448/2007.

No que se refere às atribuições, a LC n. 80/1994 foi profundamente alterada pela LC n. 132/2009, deslocando a instituição para tutela coletiva e para a promoção de direitos humanos, em adição à promoção da defesa dos necessitados. A EC n. 80/2014 insulou no texto constitucional mudanças já consagradas na legislação acima citada, ao promover alteração do caput do art. 134 da CRFB, estabelecendo o caráter permanente da instituição e ampliando sua função institucional para contemplar “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”, além do reconhecimento da unidade, indivisibilidade e independência funcional como princípios institucionais. O incontestável êxito do lobby corporativo das Defensorias, acompanhado de um notável processo de consolidação no âmbito dos estados, torna possível afirmar uma trajetória semelhante a do MP (Lamenha; Lima, 2021), numa espécie de isomorfismo, na perspectiva de que organizações submetidas a ambientes sociais, políticos e normativos semelhantes tendem a assumir configurações, identidades e estratégias de atuação similares (Scott, 2014)

A advocacia pública, na esteira da sua complexa composição, possui uma trajetória mais heterogênea pós-1988. O art. 131 da CRFB delega à lei complementar a regulamentação da AGU, em suas funções de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, além de fixar requisitos para livre nomeação do Advogado-Geral da União e a necessidade de concurso público para ingresso em seus quadros. A LC n.º 73/1993 traz as diretrizes gerais do órgão e sua composição interna.

Previsão semelhante é dirigida às procuradorias estaduais no art. 132 da CRFB, sem prejuízo da regulamentação destas instituições nas respectivas constituições estaduais. Interessante notar que o STF firmou entendimento de que as Procuradorias Estaduais não possuem autonomia funcional, administrativa e financeira, por ausência de previsão na CRFB, tampouco podem as constituições estaduais estabelecerem critérios para a nomeação dos cargos de chefia, pois implicaria em limitação das prerrogativas dos Governadores (ADI´s n° 217, 291 e 470). Considerada a ausência de referência constitucional à advocacia pública municipal, o STF também entende não ser possível o estabelecimento da obrigatoriedade da criação de procuradorias nas constituições estaduais, por ferir a prerrogativa de auto-organização inerente à autonomia dos entes municipais, conforme recentíssima decisão proferida na ADI n° 6.331 (julgamento finalizado em 8/4/2024). Interessa notar que o Tribunal reitera a necessidade de que, em sendo estruturadas procuradorias, o provimento dos cargos ocorra mediante concurso público, em observância à regra do art. 37 da CRFB.

Em vista deste quadro, em atenção à sugestão deste texto, de espelhamento de trajetórias institucionais, não é surpresa que as diversas carreiras da advocacia pública estejam mobilizando seus esforços para assegurar um regime jurídico assemelhado ao MP e à DP.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) EC 82/2007, de autoria do então Deputado Flávio Dino (PCdoB/MA), propõe a autonomia funcional e prerrogativas aos membros da Advocacia da União, Procuradoria da Fazenda Nacional, Procuradoria-Geral Federal, Procuradoria das autarquias e às Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios[1]. Por sua vez, a PEC 28/2023, de autoria de ampla frente de senadores, propõe a alteração do art. 132 da CRFB, para inclusão dos Procuradores Municipais na AP, estabelecendo a obrigatoriedade de criação de procuradorias permanentes nos municípios com mais de 60 mil habitantes[2].

As referidas PEC´s, caso aprovadas, configurariam um movimento de aproximação entre as centenas de instituições componentes da Advocacia Pública. Provavelmente, a pluralidade institucional defendida como proposta de abordagem para compreensão do sistema de justiça encontra nos órgãos de defesa estatal seu melhor campo de análise, considerando os variados modelos normativos e organizacionais inerentes à autonomia dos entes federados e às dinâmicas internas e interações estabelecidas por cada uma destas instituições.

É por isso que, do exposto, é possível afirmar que o velho sistema de justiça da CRFB, do ponto de vista institucional, está em constante transformação, permeável à influência de fatores exógenos, mas também com meios e possibilidades de mobilização para moldar suas estruturas, através de reformas constitucionais e legislativas, mas também por suas normas regulamentares. É por isso que, embora as mudanças, em instituições públicas, sejam geralmente graduais e formais, como decorrência do seu regime, são elas que permitem o complexo equilíbrio entre trajetórias consolidadas e novidades desejadas. Compreender e acompanhar esses processos é ponto de partida necessário para avaliar se as instituições que moldam a atuação dos “guardiões das promessas” estão adequadas ao exercício dos seus papéis constitucionais, na consecução das elevadas expectativas criadas e consolidadas pela Constituição Cidadã.

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ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: Educ: Sumaré, 2002.

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CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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LAMENHA, Bruno; LIMA, Flávia Danielle Santiago. Quem defenderá a sociedade? Trajetórias e competição institucional em torno da tutela coletiva entre Ministério Público e Defensoria no pós-1988. Espaço Jurídico Journal of Law, v. 22, n. 1, p. 73-104, jun/2021.

LIMA, Flávia Danielle Santiago. Revisitando os pressupostos da juristocracia à brasileira: mobilização judicial na Assembleia Constituinte e o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 63, n. 2, p. 145-167, ago. 2018.

LIMA, Flávia Danielle Santiago; LAMENHA, Bruno. Mobilizando a agenda dos direitos coletivos, assegurando espaço institucional: Ministério Público e Defensoria Pública na transição democrática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 87-108, jul./set. 2021.

LIMA, Flávia Santiago; MACHADO, Igor. Carta da Editora e do Editor – Dossiê “Ministério Público: Atuações, Interações, Perspectivas”. Direito Público, v. 19, n. 101, p. 5-19, 2022.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. A evolução institucional do ministério público brasileiro. In: SADEK, Maria Tereza (org.) Uma introdução ao estudo da Justiça. São Paulo: Sumaré, 1995.

MARCH, James G.; OLSEN, Johan P. Elaborating the “new institutionalism”. In: RHODES, R. A. W.; BINDER, Sarah A.; ROCKMAN, Bert A. (ed.). The Oxford Handbook of Political Institutions. Oxford, UK: Oxford University Press, 2006. p. 3-20.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as procuraturas constitucionais. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 45, p. 41-57, 1992.

SADEK, Maria Tereza. Cidadania e Ministério Público. In: SADEK, Maria Tereza (org.). Justiça e cidadania no Brasil. São Paulo: Idesp: Sumaré, 2000.

SADEK, Maria Tereza. O sistema de justiça. In: SADEK, Maria Tereza (org.). O sistema de justiça [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

SCOTT, W. Richard. Institutions and organizations: ideas, interests, and identities. Fourth Edition. Thousand Oaks: SAGE, 2014.

[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=354302.

[2] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157895