Ministro aulas de Teoria da Constituição para o terceiro período da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ou seja, cabe a mim apresentar aos jovens alunos os conceitos elementares da disciplina, como “democracia liberal”, “separação de poderes”, “sistema de freios e contrapesos”, “presidencialismo”, “federalismo”, “direitos fundamentais”, “jurisdição constitucional”, etc.
Confesso que não está fácil fazê-lo sob a atual administração Bolsonaro. É que quase tudo o que ensino em aula é desdito pelo chefe do Poder Executivo, por palavras e atos. Como consequência, preciso responder algumas perguntas embaraçosas em sala de aula: “Professor, mas se é assim na teoria, por que o Presidente da República está fazendo o contrário? Tem certeza que é assim, professor?” “Sim, tenho certeza”. “Mas, então, professor, por que não acontece nada com ele?”
Minha explicação imediata aos alunos é a de que temos um presidente que não estudou muito, não gosta de ler, não aprecia o conselho de auxiliares mais sábios e, para ser sincero, não tem grande apreço pela Constituição. Pelo menos por essa Constituição vigente, já que ele gosta mesmo é da anterior. Por este motivo, recomendei cautela quanto à aplicação do princípio da presunção de constitucionalidade de atos normativos oriundos da presidência, pois a prudência aconselha ao inverso. E, bem ou mal, pelo menos até agora, os atos inconstitucionais do presidente estão sendo desmanchados pelos demais poderes.
Refletindo melhor nessa linha, cheguei à conclusão que Bolsonaro pode ser um excelente professor de Direito Inconstitucional, já que acompanhar os atos, declarações e decisões do ocupante do Palácio do Planalto nos propicia uma rara oportunidade de aprender direito constitucional pelo avesso.
Ao invés de ensinar apenas o que está na Constituição, instiguei os alunos a encontrar as inconstitucionalidades corriqueiras nas práticas da presidência da República.
Lembrei-me, por isso, daquele famoso “jogo dos sete erros”, que eu adorava fazer quando criança e, assim, elaborei um exercício destes baseado nas incongruências das condutas presidenciais, de modo que os alunos podem se divertir aprendendo. Ofereço ao leitor o exercício aqui abaixo, alertando aos profissionais tarimbados do direito que os “sete erros” poderão parecer muito primários, mas lembrem que dou aula a alunos que estão dando os primeiros passos no mundo jurídico.
Jogo dos sete erros constitucionais do presidente Jair Bolsonaro:
1) “O Decreto é superior à lei”. Errado. No dia 28 de maio do ano passado, ao encontrar com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, o Presidente Jair Bolsonaro declarou-lhe o seguinte: “Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis. Eu tenho o poder de fazer decretos.” Decretos têm como finalidade principal regulamentar as leis, de modo a estabelecer a forma de sua execução, servindo, também, para emanar certos atos normativos inerentes à administração, mas que estão sempre sujeitos ao princípio da legalidade. Quando o Decreto desborda dos limites da lei, a Câmara dos Deputados, no exercício de sua função de freio e contrapeso, pode suspendê-lo (Constituição, art. 49, V), como ocorreu no caso do Decreto do governo Bolsonaro que permitia a servidores impor sigilo secreto e utrassecreto a dados públicos. O STF também pode declarar um decreto inconstitucional quando viola o princípio da legalidade, o que também já ocorreu diversas vezes nesta presidência, como no caso daqueles que alteravam regras da lei do desarmamento.
2) “Há Dois Poderes na República, Executivo e Legislativo”. Errado. No último sábado (28/08), o presidente Jair Bolsonaro, em discurso proferido no Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, declarou: “Não somos três poderes, somos dois. Executivo e Legislativo, trabalhando em harmonia”. Na verdade, são três os poderes da República. De acordo com o art. 2º da Constituição, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
3) “O Presidente pode desobedecer decisão do STF”. Errado. Neste mesmo fim de semana, como visto, Bolsonaro estava bastante ativo em suas lições de Direito Inconstitucional. No mesmo conclave evangélico, o presidente declarou que se o STF decidir pelo afastamento do “marco temporal” como critério para demarcação de terras indígenas, o executivo teria “outras opções” para descumprir a decisão. No sistema de jurisdição constitucional adotado no Brasil, o STF tem a prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido das normas da Constituição. A Constituição pode ser emendada para contornar decisões do STF (como ocorreu no “caso da vaquejada”), em matérias que não cuidem de cláusulas pétreas, mas isso depende do Congresso e não do presidente. Se o presidente desobedece uma decisão do Poder Judiciário, ele incorre em crime de responsabilidade (art. 85, VII da Constituição), passível de impeachment.
4) “O presidente pode adotar o credo religioso como critério de escolha de Ministro do STF”. Errado. Jair Bolsonaro anunciou aos seus eleitores que indicaria para uma das vagas ao Supremo Tribunal um jurista “terrivelmente evangélico”. Para preencher a cadeira vazia do ex-Ministro Marco Aurélio, o presidente indicou o ex-chefe da AGU, André Mendonça, ressaltando que a escolha se deu para atender aquele compromisso. O princípio republicano subjaz a todas as normas da Constituição e de acordo com ele o Estado é laico, de modo que o governo não pode estabelecer preferências religiosas para acesso a cargos e funções públicas. Ademais, o art. 3º. IV, estabelece que é vedado aos representantes do Estado exercer “qualquer forma de discriminação”. Os requisitos para indicação de Ministro do STF são exaustivos e se encontram no art. 101 da Constituição: idade mínima de 35 e máxima de 65 anos de idade, notável saber jurídico e reputação ilibada.
5) “O art. 142 da CR atribui às Forças Armadas o papel de poder moderador”. Errado. O presidente Bolsonaro por diversas vezes fez alusão ao art. 142 da CLT, como uma norma que supostamente poderia autorizar a intervenção das Forças Armadas em eventual “crise entre os poderes”. Nessa leitura, portanto, as Forças Armadas teriam a “palavra final” para resolver conflitos entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Nada há no dispositivo constitucional que autorize essa interpretação, que já foi rechaçada pelo STF na medida cautelar na ADI 6457. Também não é possível ao Presidente da República empregar as Forças Armadas para “assegurar” direitos constitucionais eventualmente mitigados por conta da pandemia (como ameaçou Bolsonaro no dia 23 de abril deste ano), com fundamento no art. 142, o que foi igualmente repelido na ADPF 672.
6) “O presidente pode requerer impeachment de ministro do STF por não concordar com suas decisões”. Errado. Na semana retrasada, Jair Bolsonaro protocolou junto à mesa do Senado Federal pedido de impeachment do Ministro Alexandre de Moraes, ao argumento de que suas decisões no Inquérito 4781 seriam ilegais ou inconstitucionais. Fundamentalmente, sustentou que o referido Ministro “impulsiona os feitos inquisitoriais com parcialidade, direcionamento, viés antidemocrático e partidário, sendo ao mesmo tempo investigador, acusador e julgador.” A Constituição, para proteger a independência e autonomia do Poder Judiciário, não permite que juízes sejam responsabilizados politicamente pelo conteúdo de suas decisões. Embora passíveis de impeachment (Constituição, art. 52, inc. II), os crimes de responsabilidade de membros da corte constitucional estão definidos no art. 39 da lei 1079 e dentre eles não se enquadra nenhuma das hipóteses formuladas na petição, já arquivada pelo presidente do Senado.
7) “O presidente pode suprimir direitos trabalhistas previstos na Constituição por Medida Provisória”. Errado. Recentemente o Presidente Bolsonaro apresentou ao Congresso a Medida Provisória 1045, que cria regime trabalhista “sem direitos”, no qual os empregados recebem apenas o salário e nada mais. Os direitos sociais dos trabalhadores estão assegurados pelo art. 7º da Constituição e não podem ser suprimidos por Medida Provisória ou pela sua conversão em lei. Para boa parcela da doutrina, sua supressão não poderia ocorrer nem mesmo por Emenda Constitucional, já que integram o rol de direitos fundamentais, os quais não estão restritos ao art. 5º.
Bem, essa foi apenas uma amostra que espero possa servir a outros professores de direito constitucional, interessados em ensinar a disciplina por “metodologia didática antinômica”. Caso tenham sugestões de outros erros constitucionais do Presidente Bolsonaro, por favor encaminhem para meu email. Quem sabe eu possa transformar esse exercício em jogo dos setenta erros ou, talvez até o fim do mandato, em jogo dos setecentos erros.