Marjorie Marona
Doutora em ciência política. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Pesquisa mostra que confiança no STF caminha lado a lado com a percepção de sua imparcialidade
No último dia 18 de julho, o presidente Jair Bolsonaro reuniu dezenas de embaixadores no Palácio do Planalto, manufaturando audiência para mais um ato de sua obstinada investida contra a democracia brasileira. Enfileirando inverdades acerca da lisura do processo eleitoral no Brasil — horas depois desmentidas em nota oficial pelo Tribunal Superior Eleitoral —, o ainda presidente consolidou sua desfaçatez antidemocrática diante de uma plateia desconcertada, embora não de todo surpresa.
Repetiu a dose uma semana depois, desta vez pregando para convertidos. Durante a convenção nacional do PL realizada no Maracanãzinho para homologar a sua candidatura à reeleição, Bolsonaro, agora mirando o Supremo Tribunal Federal (STF), conclamou os presentes para um ato no feriado de 7 de setembro, nos mesmos moldes golpistas do que havia dirigido no ano passado, quando a turba alucinada, aos brados, clamou pelo fechamento da corte.
Bolsonaro vem seguindo o roteiro das novas lideranças autocráticas desde o primeiro dia de seu governo. E se o processo de erosão democrática que afeta o Brasil antecede sua chegada ao poder, é certo que desde então vem se intensificando justamente a partir do Executivo. Pessoalmente, o capitão performa ataques sistemáticos ao STF e seus ministros com vistas a afrouxar todo e qualquer controle que possa recair sobre sua agenda iliberal. Carente de meios institucionais para avançar concretamente sobre a independência judicial, Bolsonaro tem apostado em uma retórica violenta que atenta contra a legitimidade da corte, na expectativa de que a opinião pública, insuflada por sua verborragia autoritária, possa realizar a tarefa de que ele próprio não consegue se desincumbir.
Não se quer dizer com isso que Bolsonaro espera que a população enraivecida, vestindo camisas da CBF, tome de assalto o STF e expulse os ministros dos seus gabinetes. A independência judicial, como a democracia, morre aos poucos. Jogando a opinião pública contra a corte, o que o presidente visa é o desgaste da legitimidade e da confiança na instituição, o que diminui os custos políticos de uma eventual investida institucional contra o Judiciário, seja no formato de impeachment, aposentadoria ou o clássico “empacotamento”.
A legitimidade judicial não é inesgotável — aliás, é volátil. Isso torna as cortes constitucionais dependentes, em certa medida, da percepção pública acerca de seu desempenho. Funciona assim: os tribunais acumulam confiança pública gradativamente a partir da percepção de que os magistrados detêm autoridade para decidir de forma vinculante, o que, em parte, deriva da crença de que sejam imparciais. Não é por outra razão que na última rodada da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT-IDDC), observou-se que a confiança no STF caminha de mãos dadas com a percepção de sua imparcialidade. Entre aqueles para quem o STF sempre é absolutamente imparcial, 51% confiam muito ou mais ou menos na corte, contra apenas 36% daqueles que acreditam que o STF sempre atua no interesse dos políticos e/ou dos mais ricos e poderosos.
De outra parte, contudo, a legitimidade judicial provém de uma avaliação sistêmica, assente em um paradoxo constitutivo da própria democracia constitucional: a existência e operação regular de uma rede institucional de controle sobre o exercício do poder político — destacando-se as cortes constitucionais — suscita confiança institucional; mas a ativação frequente desse complexo tende a gerar desconfiança. E a desconfiança pública generalizada implica risco à legitimidade democrática. Quer dizer, democracias com melhores índices de confiança nos atores e nas instituições judiciais estão supostamente mais consolidadas do que outras.
De fato, os resultados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil” indicam que as atitudes mais favoráveis ao Judiciário por parte do público estão associadas ao apoio à democracia. Entre os que preferem a democracia a qualquer outro regime, 67,8% acreditam que o STF é muito importante para o seu funcionamento. Essa proporção cai para 55,6% e 54,7%, respectivamente, entre os subgrupos de entrevistados que são indiferentes em relação aos regimes ou que, em algumas circunstâncias, preferem uma ditadura. Na mesma direção, quando se considera o grupo que é contrário à possibilidade de ruptura institucional, 72,8% enxergam o STF como muito importante para o funcionamento da democracia, contra 56,3% daqueles que acreditam que um golpe militar seria justificável em alguma circunstância.
Entretanto, embora muitos (60,8%) reconheçam a importância do STF para o funcionamento da democracia, é bem menor o grupo que classifica como imparcial o seu desempenho (48,9%). O descompasso entre os dois indicadores parece evidenciar a percepção crítica do público em relação à atuação mais recente da corte — e de seus ministros — sem comprometer, até aqui, a percepção acerca da importância da instituição para o funcionamento da democracia.
A impressão negativa do desempenho da corte não pode ser inteiramente creditada aos apoiadores do presidente, contudo. É bem verdade que aqueles que avaliam como ótimo ou bom o governo Bolsonaro são os mais descrentes em relação à imparcialidade do STF. No entanto, aqueles que avaliam o governo como ruim ou péssimo também rejeitam em larga escala a visão do Supremo como uma instituição imparcial. São justamente os que acham regular a atuação do governo os que possuem a maior percepção de imparcialidade do Judiciário. Nos dois extremos — dentre os que aprovam e, também, dentre os que reprovam o governo —, o STF sofre mais com as críticas à sua atuação marcadamente conjuntural.
Um padrão bastante similar emerge da análise da associação entre a satisfação com a democracia e a percepção de imparcialidade do STF. Aqui também os que se declaram moderadamente satisfeitos/insatisfeitos com a democracia são os que têm a maior percepção de imparcialidade do Judiciário. Novamente, nos extremos, o STF enfrenta os maiores desafios em face das críticas ao seu desempenho.
Esse conjunto de dados parece indicar a politização do debate sobre a imparcialidade do Supremo Tribunal Federal. A memória da atuação do STF na Lava Jato, de seu envolvimento direto com os episódios mais dramáticos da história política recente do país, tais como o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, ainda ecoa na cabeça dos brasileiros e fragiliza a corte em face das investidas de um presidente que, favorecido pela atuação conjuntural da corte, agora tenta impedi-la.
De modo não muito ortodoxo, o STF resiste, seja por investidas individuais de seus ministros, seja por meio de ações mais concertadas que buscam a um só tempo impor limites aos arroubos autoritários de Bolsonaro e defender a institucionalidade constitucional democrática. Como parte deste movimento, recentemente, a corte passou a dividir mais do que ministros com o Tribunal Superior Eleitoral; iniciou uma série de movimentos de profilaxia das eleições, antevendo manobras fraudulentas de algumas campanhas eleitorais já detectadas em 2018, voltadas à disseminação de fake news e à generalização de um contexto de desinformação, que beneficiaram Bolsonaro. Formou-se uma coalizão entre os ministros do Supremo com assento no TSE visando a atuação mais incisiva da Justiça Eleitoral em resposta à estratégia que, aliás, é compartilhada pelos novos autocratas mundo afora com o objetivo de garantir sua permanência no poder, consolidando sua agenda iliberal.
Bolsonaro reagiu tornando o Tribunal Superior Eleitoral seu alvo preferencial. Mas enquanto os ataques ao STF desvelam pretensões de insulamento do governo em face dos controles institucionais, os ataques ao TSE visam a imunização em face da competição política eleitoral. Bolsonaro sinaliza, portanto, a sua intenção de permanecer no poder independentemente do apoio das urnas. Para tanto, necessariamente, deve desacreditar a Justiça Eleitoral, pois as eleições no Brasil são concentradas na autoridade judicial; quer dizer, a Justiça Eleitoral, em cujo ápice encontra-se o TSE, acumula funções de governança eleitoral que a posiciona como relevante ator na disputa eleitoral.
Não por acaso, a maior confiança no resultado das eleições está associada a atitudes mais favoráveis ao Judiciário. Entre os entrevistados que “confiam muito ou mais ou menos” que a contagem de votos nas eleições do Brasil é feita de maneira honesta, 56,8% também “confiam muito ou mais ou menos” no STF. Por outro lado, entre os que não confiam na contagem de votos, apenas 24,2% “confiam muito ou mais ou menos” no STF. Ainda, a Justiça Eleitoral conta com maior apoio público do que o Supremo. Enquanto 60% dos entrevistados percebem o STF como muito importante para a democracia e 48,9% o julgam como imparcial, 66% avaliam a Justiça Eleitoral como uma instituição fundamental para democracia e 58,2% a julgam como imparcial.
Isso não implica dizer que retomaremos o quadro de absoluta calmaria que envolveu os trabalhos de governança eleitoral da Justiça entre 1988 e 2014 — quando Aécio Neves questionou o resultado das eleições presidenciais, sem qualquer indício de fraude, abrindo a caixa de pandora. Ao contrário, é possível que os ataques retóricos se tornem físicos e disseminados, especialmente entre outubro e dezembro, da votação à diplomação do vitorioso.
Para tanto o TSE tem, também, se organizado. Com a experiência de gestão de crise que agregaram pela realização de eleições em meio à pandemia da Covid-19 em 2020, os ministros e técnicos do Tribunal Superior Eleitoral seguem um minucioso planejamento que os guia até a proclamação do resultado das eleições. Resultado que deve expressar a vontade popular — e nada mais.
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Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br