Tramita perante o Tribunal de Contas da União (TCU) uma auditoria operacional que tem como objetivo avaliar a legalidade e a legitimidade dos procedimentos utilizados pela Petrobras para a aferição do Grau de Risco de Integridade (GRI) de empresas e da utilização desse parâmetro como critério de qualificação para participação em licitações, bem como os riscos dessa aferição e o seu tratamento.[1]
A decisão da Corte de Contas impactará, inicialmente, os setores de óleo e gás e energia elétrica, em que se tem utilizado o GRI para afastar agentes econômicos de licitações públicas. O resultado dessa auditoria, contudo, será relevante para todos os mercados, pois pautará o debate sobre a legalidade da utilização do GRI para a exclusão de fornecedores em procedimentos licitatórios.
O GRI consiste em uma nota atribuída a um fornecedor que se submete forçosamente a um procedimento de Due Diligence de Integridade (DDI), previsto no Programa de Integridade do ente contratante, sempre que quiser participar de suas licitações. Tal procedimento avalia a reputação, a idoneidade e as práticas de combate à corrupção dos fornecedores.
Na análise, são considerados o perfil da empresa, o relacionamento com o poder público, o histórico e a sua reputação, além dos mecanismos de prevenção, detecção e correção de atos de corrupção.
Há uma problemática inicial na aplicação do GRI para a exclusão de licitante. Superada essa questão, o Tribunal de Contas deverá avaliar se o procedimento de DDI é adequado aos preceitos legais, em especial, se é capaz de oportunizar aos interessados o contraditório, de forma isonômica, e o devido processo a viabilizar a efetiva demonstração da adoção de medidas de self-cleaning, suficientes à revisão do seu GRI.
Por um lado, há quem defenda a ausência de ilegalidade no uso do GRI para o afastamento de licitantes. Alega-se que se trataria de mero critério de seleção de empresas, cuja nota foi fixada por meio da análise de fatores de risco de integridade, o que estaria de acordo com as políticas contra a corrupção, estabelecidas em programa de integridade, previsto no Decreto (nº 8.420/2015, art. 41) que regulamentou a Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013).
O critério de seleção também estaria justificado a partir da redação da Lei das Estatais (nº 13.303/2016), que dispõe que – nas licitações e contratos das sociedades de economia mista e das empresas públicas e suas subsidiárias – deverá ser observada a política de integridade nas transações com partes interessadas (art. 32, inc. V).
No caso da Petrobras, empresa auditada pelo Tribunal de Contas da União, o §3º do art. 4º do seu Regulamento de Licitações e Contratos autorizaria a medida ao fixar que “as Partes Interessadas às quais seja atribuído grau de risco de integridade alto não poderão participar de procedimentos de contratação com a PETROBRAS, salvo exceções previstas em normas internas da Companhia”.
As mencionadas exceções recaem nas hipóteses de inaplicabilidade e dispensa de licitação, entre outras, em que não há competição entre fornecedores. Ou seja, hipóteses de livre escolha do fornecedor, que são os casos mais sensíveis em regra.
Inclusive, a 8ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região proferiu acórdão no sentido de que o procedimento adotado pela Petrobras teria fundamento nos dispositivos da Lei das Estatais que regulamentam o procedimento de “pré-qualificação permanente” de fornecedores (Lei nº 13.303/2016, arts. 63 a 65).[2]
Segundo o órgão colegiado, as regras que regem os procedimentos licitatórios não poderiam prevalecer “sobre as normas mais recentes que dispõem, ainda que genericamente, sobre a questão da corrupção e medidas destinadas a combatê-la”.
Por outro lado, há quem defenda a impossibilidade do uso do GRI para a exclusão sumária de fornecedores em licitações públicas, diante da inexistência de previsão legal na Lei de Licitações e na Lei das Estatais. Mais do que isso, o procedimento seria inconstitucional na medida em que violaria o art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal de 1988, que estabelece que somente serão permitidas exigências de qualificação indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações objeto do contrato.
Tais posicionamentos merecem meditação.
As leis que versam sobre licitações e contratações públicas, inclusive a Lei das Estatais, estabelecem uma série de condições para a participação de licitantes nos certames públicos. Os agentes econômicos que não preencham essas condições podem ser regularmente excluídos das competições.
Portanto, não há nada de extraordinário na exclusão de licitante que não está em condições de contratar com a Administração, mas isso somente é admitido se houver expressa disposição legal.
Tome-se como exemplo as vedações existentes na Lei das Estatais. Estará impedida de participar de licitações e de ser contratada por empresa pública ou sociedade de economia mista a licitante suspensa ou declarada inidônea, enquanto durarem os efeitos da sanção (Lei 13.303/2016, art. 38, inc. III). O mesmo impedimento se aplica ao administrador ou sócio detentor de mais de 5% do capital social da empresa pública ou sociedade de economia mista (Lei 13.303/2016, art. 38, inc. I).
O que a Petrobras e outras empresas pretendem é criar uma condição de participação de licitante por meio da aplicação do GRI, atribuído de forma aparentemente discricionária. Ocorre que o decreto que regulamenta a Lei Anticorrupção dita tão somente o conceito de programa de integridade. E a Lei das Estatais trata da necessidade de observância da política de integridade no relacionamento com fornecedores, porém o faz para disciplinar o seu controle interno e os atos de seus administradores.
Não há nenhuma regra que condicione a participação de empresas com GRI alto. Pelo contrário, isso não consta do rol exaustivo dos impedimentos listados na Lei 13.303/2016 (art. 38). A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) erigiu a gestão do risco nas contratações como um dos pilares a ser observado pelos gestores públicos não apenas durante a fase preparatória da licitação, mas durante todo o procedimento de contratação. Entretanto, critérios reputacionais também não se encontram em seu rol de impedimentos legais (art. 14).
É preciso distinguir condição de participação em licitação de requisito de habilitação nas licitações públicas. Estes se referem à aptidão do licitante de executar satisfatoriamente o objeto a ser contratado. As leis apontam objetivamente os requisitos máximos de habilitação, observado o critério constitucional da indispensabilidade para a fixação no edital dos requisitos mínimos necessários à execução do objeto do contrato.
Ainda, a condição de participação se relaciona com as condições subjetivas de cada licitante. Trata-se de análise personalista em que se verifica a titularidade de condições e a idoneidade da empresa. É exatamente essa análise que é realizada para a atribuição do GRI.
Nesse contexto, não se pode afirmar que o procedimento de DDI adotado pela Petrobras seria uma espécie de pré-qualificação permanente, pois tal categoria se destina à “análise das condições de habilitação, total ou parcial, dos interessados ou do objeto” da licitação (Lei nº 14.133/2021, art. 6º, inc. XLIV). Em outras palavras, a pré-qualificação não se propõe a analisar as condições subjetivas de licitantes.
E mais: a existência de operações policiais e os grandes escândalos de corrupção que envolveram a Petrobras, além de notícias jornalísticas, não podem ser utilizados para fundamentar regra ilegal contida no Regulamento de Licitações e Contratos da Petrobras para a exclusão de licitantes com base em GRI.
O princípio constitucional da legalidade não pode sucumbir, nem mesmo em nome de ações tão importantes para a sociedade como a prevenção e o combate à corrupção. Tal princípio exige a presença de regra legal a determinar expressamente que um licitante pode ser impedido de participar de um certame público, por qualquer critério, incluindo o reputacional.
Afinal, a exclusão de agente econômico de um certame é fato gravíssimo que só pode ser amparado em lei, com balizas bastante claras, sob pena de esses impedimentos serem utilizados como subterfúgios para direcionamentos e fraudes em licitações.
Não se afasta a importância dos programas de integridade no âmbito das licitações.[3] Também não se propõe desqualificar a análise de risco dos fornecedores. Isso tudo é desejado, mas tão somente na medida em que pautar exigências de integridade a serem cumpridas durante a execução do contrato.
[1] Relatório de Auditoria nº 037.015/2020-6.
[2] Apelação Cível nº 0035486-47.2018.4.02.5101, relator desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, julgamento em 15 de abril de 2019.
[3] A nova Lei de Licitações reconhece a importância dos programas de integridade, tanto é assim que estabelece a obrigatoriedade na sua implantação pelo licitante vencedor, nas contratações de grande vulto (Lei nº 14.133/2021, art. 25, §4º). Antes disso, o Rio de Janeiro e o Distrito Federal já tinham leis com exigências semelhantes, a serem cumpridas pelo licitante contratado e não como condição para participação nas licitações.