O tema da responsabilidade civil é considerado um alicerce do direito privado, e a admissão de novos danos a serem indenizados (v.g. dano sexual, dano informativo, dano temporal, etc.)[1] tornou-se um fenômeno corriqueiro na era da modernidade líquida[2]. Novas situações passíveis de indenização, antes inimagináveis como tal, são trazidas à tona a todo momento.
Não por outro motivo, além das clássicas modalidades de dano material e moral, previstas expressamente em diversos diplomas legais, a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros reconhece outras espécies autônomas de danos, mesmo em casos de ausência de previsão legal, tais como os danos sociais[3], o dano decorrente da perda de uma chance[4] e o dano pela perda do tempo útil[5]. Em matéria de responsabilidade civil, vigora no Brasil o paradigma da atipicidade das modalidades de dano.
É neste atual estado de coisas que está inserido o chamado “dano ao projeto de vida”, modalidade de dano cuja existência e reparação estão – na grande maioria das vezes – intimamente ligadas a uma vítima vulnerável (v.g. crianças, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, etc.). Segundo Carlos Giovani Pinto Portugal, o dano ao projeto de vida pode ser compreendido como: “Um grave dano que impede o ser humano de tornar em ato e realizar o que se decidiu fazer de sua própria vida, impondo ao vitimado uma despersonalização a operar a própria coisificação do ente, isto, pois, lhe restam negadas as escolhas vitais que faziam parte do seu próprio ser-liberdade. Em um caso limite, o dano ao projeto de vida frustra a própria realização da pessoa, impedindo-a completamente de viver de forma digna[6]”.
No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), a Corte IDH conceitua-o como aquele que “implica a perda ou o grave prejuízo de oportunidades de desenvolvimento pessoal, de forma irreparável ou muito dificilmente reparável[7]” E ainda adverte que: “Este dano se deriva das limitações sofridas por uma pessoa para se relacionar e gozar de seu ambiente pessoal, familiar ou social, por lesões graves de tipo físico, mental, psicológico ou emocional[8]” Trata-se, portanto, de uma modalidade de dano desenvolvida substancialmente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e bastante debatida na literatura jurídica latino-americana[9].
No Brasil, o tema é praticamente ignorado pela doutrina e abordado ainda de maneira tímida na jurisprudência, razão pela qual tentar-se-á desenvolver como tese central deste artigo a incorporação do dano ao projeto de vida e sua respectiva reparação no ordenamento jurídico brasileiro como instrumento de proteção geral de pessoas e grupos vulneráveis, a partir da parametrização realizada pela Corte IDH.
Todavia, antes de analisarmos os aspectos jurídicos do dano ao projeto de vida, indago aos qualificados leitores do JOTA: o que pode ser compreendido por “projeto de vida”? Para a Corte IDH, “o projeto de vida se associa ao conceito de realização pessoal, que por sua vez se sustenta nas opções que o sujeito tem para conduzir sua vida e alcançar o destino que se propõe[10]”. E ainda é categórica ao afirmar que: “O projeto de vida se expressa nas expectativas de desenvolvimento pessoal, profissional e familiar possíveis em condições normais[11]”.
Na opinião deste articulista, o ethos da expressão “projeto de vida” se aproxima – e muito – do ideal de igualdade formulado por Ronald Dworkin em sua clássica obra A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade: todos possuem o direito de realizar suas próprias escolhas e viver de acordo com elas, e o Estado deve respeitá-las, tratando todos de forma indiscriminada, com o mesmo respeito e a mesma consideração[12].
À vista disso, parece-nos evidente que, em decorrência da discriminação sofrida em múltiplas formas pelos grupos vulneráveis, os seus projetos de vida são mais suscetíveis à violação em comparação com os membros do mainstream. São os integrantes de grupos vulneráveis os destinatários por excelência da reparação por violação ao projeto de vida. Não por acaso, a Corte IDH já reconheceu a violação do projeto de vida de: pessoas em situação de rua[13], mulheres em situação de violência[14], crianças e adolescentes[15], pessoas com deficiência[16] e povos originários.[17]
Pois bem. Feitas estas breves considerações conceituais, passemos à análise dos aspectos jurídicos (natureza jurídica, possibilidades de reconhecimento, formas de reparação, etc.) do dano ao projeto de vida.
Inicialmente, destaco que o dano ao projeto de vida possui a natureza jurídica de espécie autônoma de dano, não devendo ser confundido com danos materiais, morais ou lucros cessantes[18]. É possível, portanto, a cumulação por violação ao projeto de vida com outras espécies de dano. Além disso, cuida-se de uma espécie de dano intuitu personae, cuja pretensão reparatória se extingue com o falecimento da pessoa lesada[19].
Assim, não há que se falar em indenização a ser pleiteada por familiares de uma eventual vítima vulnerável. O dano ao projeto de vida é personalíssimo e apenas a própria vítima possui a faculdade de pleiteá-lo em juízo.
Prosseguindo, a literatura jurídica estrangeira elenca ao menos três possibilidades de reconhecimento do dano ao projeto de vida[20]: a) interrupção total do projeto de vida; b) interrupção parcial do projeto de vida e; c) retardamento do projeto de vida. Comentarei cada uma dessas possibilidades de forma sintética e por meio de exemplos para tornar a leitura deste texto mais prática e de fácil compreensão.
A primeira hipótese ocorre quando o projeto de vida de determinada pessoa vulnerável estava em andamento, mas é interrompido de forma total, sem qualquer possibilidade de retomada. O dano causado é irreversível. Exemplo número um: mulher gestante que tem complicações durante o período gestacional e, ao procurar o SUS, perde o bebê e ainda é esterilizada compulsoriamente. No exemplo citado – e que infelizmente ocorre com alguma frequência em território brasileiro – o projeto de vida de determinada pessoa vulnerável (mulher em período gestacional) estava em andamento (ser mãe biológica), mas foi interrompido de forma total e irreversível por ato médico.
Exemplo número dois: indivíduo maior de dezoito anos, pertencente à religião testemunha de Jeová, é encaminhado ao hospital após uma intercorrência de saúde e, mesmo com alternativas eficazes de tratamento à disposição, lhe é realizado o procedimento de transfusão de sangue sem o seu consentimento. Neste segundo exemplo, o projeto de vida de determinada pessoa vulnerável (indivíduo pertencente a uma minoria religiosa) estava em andamento (viver de acordo com os dogmas de sua religião), mas foi interrompido de forma total e irreversível por um ato médico (transfusão de sangue).
A segunda hipótese de incidência da reparação por violação ao projeto de vida é no caso de sua interrupção parcial. Neste caso, o projeto de vida original da pessoa lesada passa por uma reconfiguração (diminuição de sua extensão) após o dano causado. As escolhas existenciais anteriormente realizadas são redimensionadas para um grau de possibilidades inferior. Exemplo: determinado indivíduo é privado de liberdade por duas décadas em virtude de um caso de erro judiciário (v.g. homônimo e prisão da pessoa errada). Uma pessoa vulnerável (pessoa privada de liberdade) terá seu projeto de vida anteriormente idealizado diminuído em sua extensão em virtude do dano causado (privação de liberdade por duas décadas). É verdade que, ao se reparar o dano causado, um novo projeto de vida poderá ser feito, mas muito provavelmente o será com aspirações diminuídas.
Na terceira e última hipótese, não há uma interrupção do projeto de vida per se, mas o seu retardamento. Exemplo: uma criança é “devolvida” após ser adotada. Neste exemplo, o projeto de vida de determinada pessoa vulnerável (criança) é retardado (ser adotada e ter definitivamente uma família) de forma reversível pela família adotante. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a situação narrada enseja o pagamento de danos morais às crianças/adolescentes envolvidas neste tipo de situação[21] que, infelizmente, também não é incomum em território brasileiro. Na opinião deste articulista, trata-se de uma típica situação em que a indenização por dano moral pode – e deve – ser cumulada com a reparação por violação ao projeto de vida.
A condenação por violação ao projeto de vida de determinada pessoa nem sempre importa em uma reparação financeira isolada, sendo possível – e recomendável – também a imposição de obrigações de fazer (v.g. medidas de reabilitação da pessoa afetada), não fazer (não repetição) e dar (v.g. concessão de bolsas de estudo, concretização do direito à moradia adequada, etc.)[22]. A verificação da extensão do dano causado ao projeto de vida é medida a partir de parâmetros como a idade do indivíduo no momento em que teve seu projeto de vida interrompido ou retardado e a sua capacidade de projetar novas escolhas após o dano sofrido[23].
No âmbito dos tribunais superiores brasileiros, o dano ao projeto de vida já foi mencionado em ao menos duas oportunidades, ambas envolvendo a população LGBTQIA+: no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal das ações que reconheceram as uniões homoafetivas como entidades familiares[24] e no julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça da possibilidade de se converterem as uniões homoafetivas em casamento[25]. Novamente, os grupos vulneráveis aparecem como os destinatários por excelência da reparação por violação ao projeto de vida.
Concluído este esboço geral sobre a arquitetura normativa do dano ao projeto de vida, algumas premissas hão de ser fixadas: a) o dano ao projeto de vida tem como principais alvos pessoas e grupos vulneráveis; b) a sua reparação funciona como instrumento de proteção geral de grupos vulneráveis; c) urge a necessidade do seu reconhecimento – com mais entusiasmo – no direito brasileiro.
Para finalizar este texto, evoco as palavras de Augusto Cury em sua clássica obra O vendedor de sonhos: “Sonhos não são desejos, desejos são intenções superficiais, enquanto sonhos são projetos de vida”. Que todos em território brasileiro possam sonhar, e que aqueles que porventura tenham seus sonhos lesados por outrem recebam a justa reparação.
Espero que tenham gostado. Até a próxima!
[1] Sobre o tema, ver: MAIA, Maurilio Casas; BORGES, Gustavo (org.). Novos danos na pós-modernidade. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021.
[2] Expressão utilizada em: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Zahar, 2001.
[3] STJ, Rcl 12.062/GO, Relator: Min. Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 12/11/2014, DJe 20/11/2014.
[4] STJ, REsp 1291247/RJ, Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 19/08/2014, DJe 01/10/2014.
[5] STJ, REsp 1737412/SE, Relatora: Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 05/02/2019.
[6] PORTUGAL, Carlos Giovani Pinto. Responsabilidade civil por dano ao projeto de vida. Curitiba: Juruá, 2016, pp. 97–98.
[7] Corte IDH, Caso Furlan e familiares vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2012, § 285.
[8] Id.
[9] Para um maior aprofundamento, ver: BURGOS, Osvaldo R. Daños al proyecto de vida. Buenos Aires: Astrea, 2012; CÁCEDA, Joel Díaz. El daño a la persona y el daño al proyecto de vida. Lima: Legales, 2008.
[10] Corte IDH, Caso Loayza Tamayo vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 27 de novembro de 1998, § 148.
[11] Corte IDH, Caso Tibi vs. Equador. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 7 de setembro de 2004. § 245.
[12] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[13] Corte IDH, Caso das “Crianças de Rua” (Villagrán Morales e outros) vs. Guatemala. Mérito. Sentença de 19 de novembro de 1999.
[14] Corte IDH, Caso Loayza Tamayo vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 27 de novembro de 1998.
[15] Corte IDH, Caso Mendoza e outros vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito e Reparações. Sentença de 14 de maio de 2013.
[16] Corte IDH, Caso Furlan e familiares vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2012.
[17] Corte IDH, Caso Comunidade Moiwana vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de junho de 2005.
[18] Corte IDH, Caso Loayza Tamayo vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 27 de novembro de 1998. A doutrina também reconhece o caráter autônomo do dano ao projeto de vida. Ver: SESSAREGO, Carlos Fernández. El daño al proyecto de vida. Revista de la Facultad de Derecho de la Pontificia Universidad Católica, n. 50, Lima, 1996.
[19] Corte IDH, Caso González e outros (“Campo Algodoeiro”) vs. México. Sentença de 19 de novembro de 2009.
[20] SESSAREGO, Carlos Fernández. El “proyecto de vida” merece protección jurídica? Disponível em: <http:// www.personaedanno.it/danni-non-patrimoniali-disciplina/el-proyecto-de-vida-merece-proteccion-juridica-carlos-fernandez-sessarego>.
[21] STJ, número não divulgado em razão do segredo de justiça, decisão de 19 de maio de 2021. Maiores informações podem ser encontradas neste link: https://www.migalhas.com.br/quentes/345839/stj-condena-em-r-5-mil-casal-que-desistiu-de-adocao-apos-5-anos.
[22] Corte IDH, Caso Furlan e familiares vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2012, § 285.
[23] Corte IDH, Caso Furlan e familiares vs. Argentina. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2012.
[24] STF, ADPF 132, Relator: Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011.
[25] STJ, REsp 1183378/RS, Relator: Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2011.