Ana Frazão
Advogada. Professora associada de Direito Civil, Comercial e Econômico da UnB. Ex-Conselheira do CADE.
Um dos assuntos mais comentados do momento diz respeito à necessidade da regulação das plataformas digitais e da sua responsabilização por conteúdos de terceiros. A proximidade de julgamentos importantes sobre o tema, tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) como na Suprema Corte dos EUA, tem tornado o debate ainda mais acalorado.
Argumento comumente explorado nessas discussões é o de que qualquer tentativa de regulação do fluxo informacional na internet ou de responsabilização legislativa ou judicial das plataformas por conteúdos de terceiros apresentaria sérios riscos de restrições indevidas à liberdade de expressão e mesmo de censura.
É contra esse argumento que o presente artigo pretende trazer quatro ponderações que apontam para a conclusão de que o real risco para a liberdade de expressão decorre precisamente da ausência de regulação ou de responsabilização das plataformas.
A primeira ponderação é a de que não se pode mais aceitar a ideia de que as plataformas são neutras em relação aos conteúdos que nela trafegam ou que seriam meras provedoras de hospedagem, simplesmente criando um espaço virtual a ser preenchido por terceiros, estes sim os verdadeiros e únicos responsáveis pelos conteúdos inseridos.
Como já procurei mostrar em diversos trabalhos[1], essa visão é muito distante da realidade. As plataformas são e sempre foram grandes gerenciadoras de conteúdo, identificando, filtrando, classificando, ranqueando e priorizando as informações que devem ser difundidas para cada usuário.
Logo, já existe uma curadoria personalizada da informação, que permite às plataformas não apenas decidir que tipo de conteúdo chegará a cada usuário, mas também quando e como. A questão é que essa curadoria é realizada normalmente sem transparência e accountability, de acordo com os interesses exclusivos das plataformas e gerando grandes externalidades negativas.
Além disso, as plataformas adotam diversos modelos de propaganda, impulsionamento e monetização de negócios que são ou a causa ou a consequência da produção e da divulgação de diversos conteúdos. Nessas hipóteses, fica ainda mais difícil sustentar qualquer neutralidade, uma vez que a ingerência da plataforma sobre conteúdos é direta e remunerada.
No campo dos conteúdos pagos, está-se diante de verdadeiro negócio, movimentado por interesses econômicos. Exatamente por isso, o fluxo informacional daí decorrente não pode se pautar apenas pela liberdade de expressão, pois deve ser também compatibilizado com as diversas regras de publicidade e informação já constantes de vários outros diplomas normativos, tais como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tal ponderação mostra que, para efeitos da responsabilização das plataformas digitais, deveria haver ao menos uma primeira diferenciação entre os casos de conteúdos pagos e não pagos, pois, sendo muito maior a ingerência das plataformas sobre os primeiros, é de se esperar igualmente uma maior responsabilidade.
A segunda ponderação diz respeito ao próprio sentido da liberdade de expressão que, embora tenha as suas origens relacionadas às garantias das pessoas naturais de se manifestarem espontaneamente no espaço público, tem sido utilizada em diversas outras situações de forma inapropriada.
É preciso lembrar que, no contexto das plataformas digitais, o fluxo informacional é dominado por pessoas jurídicas que agem por razões econômicas. Daí a necessária pergunta: é realmente de liberdade de expressão que se trata? Se for, ela teria a mesma extensão da liberdade de expressão das pessoas naturais?
Vale ressaltar que tal discussão não é nova e não se restringe ao mundo digital. Na crise financeira de 2008, muito se discutiu sobre as agências de rating que, ao classificarem determinados títulos podres como seguros, foram uma das responsáveis pelo colapso. No entanto, ao serem cobradas por suas avaliações, elas alegaram a liberdade de expressão, ensejando uma pergunta fundamental: esse tipo de opinião pode gozar da mesma proteção que os discursos de cidadãos no âmbito democrático? É realmente de liberdade de expressão que estamos falando nesses casos?
O problema se agrava quando se verifica que, no mundo virtual, vários agentes empresariais têm se utilizado de diversas estratégias não apenas para divulgar conteúdos enganosos e falsos, como também para manipular as pessoas, inclusive comprometendo o seu próprio livre-arbítrio. Há tempos que se fala dos mercados de consciências e de como a indústria da desinformação e do ódio se utiliza de estratagemas sub-reptícios para subverter os processos decisórios racionais dos usuários[2].
Outro fator preocupante é que parte expressiva do fluxo informacional da internet decorre da atuação de bots e contas inautênticas, o que faz com que as redes sociais se tornem progressivamente “praças públicas” artificiais. Em razão da falta de transparência e do desrespeito à regra constitucional que veda o anonimato, tem-se um fluxo informacional cada vez mais corrompido e disfuncional, que propaga desproporcionalmente conteúdos de minorias raivosas ou de quem tem mais dinheiro ou está disposto a utilizar de mais manobras para atingir seus objetivos[3].
Em todos esses casos, obviamente não se está a falar de liberdade de expressão, até porque bots não são nem mesmo titulares de direitos. Daí por que, em muitos casos, a liberdade de expressão tem sido utilizada como mero disfarce para a prática de toda sorte de ilicitudes e manipulações.
A terceira ponderação diz respeito ao próprio sentido e ao alcance da liberdade de expressão na internet, no âmbito da qual, em diversas situações, é cada vez mais difícil separar a palavra da ação. Se, no mundo real, quem grita “fogo” em um teatro lotado não está protegido pela liberdade de expressão[4], o mundo virtual tem oferecido vários exemplos de riscos similares ou muito mais graves.
Ao neutralizar tempo, geografia e as limitações do mundo concreto, bem como ao possibilitar uma ampla e rápida divulgação de conteúdos, determinados discursos, a depender do contexto, cada vez mais se tornam incitações ou mesmo formas de ação. No mundo virtual, as palavras podem ser verdadeiras armas, inclusive armas letais, o que exige maior atenção para diferenciar o exercício regular da liberdade de expressão do seu abuso, assim como para reconfigurar as responsabilidades de todos os envolvidos na produção e na divulgação de conteúdos, tais como os usuários e as plataformas digitais.
Uma quarta ponderação diz respeito a uma questão estrutural, que dialoga com as três ponderações já realizadas. De acordo com vários estudiosos[5], é a estrutura ou arquitetura das plataformas digitais que possibilita as disfuncionalidades descritas, uma vez que, por diversas razões, incluindo os modelos de monetização, as plataformas acabam priorizando discursos que valorizam o ódio, a mentira e a polarização[6]. Com isso, há uma verdadeira inversão de hierarquias, o que faz com que conteúdos extremistas e periféricos assumam o centro do debate público, inviabilizando a própria democracia[7].
Outra consequência problemática da atual estrutura das plataformas é a possibilidade de silenciamento e discriminações em relação a conteúdos que, embora lícitos, não sejam considerados desejáveis pelas plataformas. Não é sem razão que o professor Eugênio Bucci, dando um recado para os que temem a regulação das plataformas digitais sob o argumento do risco de censura, afirma que a censura privada já existe na prática e que uma boa regulação poderá exatamente assegurar a qualidade desse fluxo informacional[8].
Para além disso, há o problema dos vieses não intencionais, o que foi constatado igualmente em importantes plataformas que privilegiavam conteúdos de extrema direita sem que sequer soubessem[9]. Isso mostra não apenas as implicações políticas do fluxo informacional virtual, como também o fato de que não se tem espaços para a diversidade e o equilíbrio indispensáveis para o debate democrático.
Diante das ponderações realizadas, observa-se que a liberdade de expressão tem sido, em muitos casos, um argumento retórico para encobrir os riscos reais do atual fluxo informacional. Não se pode ignorar que as plataformas digitais tornaram-se os maiores agentes econômicos e políticos da nossa época e que as disfunções do fluxo informacional podem comprometer não apenas nossos valores individuais mais importantes, como a liberdade, a igualdade e o livre desenvolvimento da personalidade, como também a democracia.
Obviamente que a regulação do fluxo informacional não é um tema simples e banal. Não se nega que há sérias implicações para a liberdade de expressão. Entretanto, tal preocupação deve ser colocada na correta perspectiva, já que não é disso que se trata quando se está diante de um fluxo informacional artificial, obscuro e remunerado, fruto muitas vezes de uma grande indústria da desinformação e da manipulação, que se acopla convenientemente às estruturas deficitárias e aos modelos de monetização das plataformas.
Logo, se quisermos realmente enfrentar o problema, precisamos reconhecer que a preocupação com a liberdade de expressão não se justifica em relação à parte considerável do fluxo informacional nas grandes plataformas, especialmente no tocante às interações que envolvem bots, contas inautênticas, propagandas, conteúdos impulsionados ou pagos, negócios escusos e manipulações.
Em tais situações, mais grave do que invocar a liberdade de expressão em vão é ignorar os riscos reais que a falta de regulação apropriada pode representar para a liberdade de expressão dos cidadãos reais, para o acesso à informação e para a própria democracia.
[1] Ver FRAZÃO, Ana, “Responsabilidade civil de provedores de aplicações por conteúdos de terceiros: O artigo 19 do Marco Civil não é nem pode ser a única referência normativa para o assunto”, Jota; “Plataformas digitais e a questão da responsabilidade por conteúdos ofensivos de terceiros”, Jota.
[2] Ver FRAZÃO, Ana. “Mercados de reputação: O marketing 4.0 e o “vale tudo” para construir artificialmente reputações”, Jota; “Mercados de manipulação de consciências: O que temos a aprender com a Psicologia da (Des)informação”, Jota; 'Neurocapitalismo' e o negócio de dados cerebrais: Os nossos pensamentos e a nossa identidade pessoal estão em risco?”, Jota.
[3] Ver FRAZÃO, Ana. A delicada questão da monetização dos negócios de divulgação de conteúdos, Jota.
[4] Para a contextualização do assunto, ver o seguinte artigo da The Atlantic: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/01/shouting-fire-crowded-theater-speech-regulation/621151/
[5] Ver, por todos, CESARINO, Letícia. O Mundo do avesso. Verdade e Política na Era Digital. São Paulo: Ubu, 2022. Há um episódio do Podcast Direito e Economia dedicado à professora Letícia Cesarino: https://open.spotify.com/episode/4nT1vRAek0yaNbrj1ZXswN?si=ReoEA1jtSkiBotW9m3Cr7w&nd=1
[6] Ver FRAZÃO, Ana, “Novo Marco Civil da Internet: A inadequação e os riscos de se impedir que plataformas digitais cumpram o seu papel de fazer uma eficiente curadoria de conteúdos”, Jota.
[7] Ver FRAZÃO, Ana, “A democracia corre perigo: Os algoritmos como armas de propaganda política”, Jota; “PL das fake news: A importância da transparência e da responsabilidade para assegurar um fluxo informacional adequado para o mercado, o debate público e a própria democracia”, Jota; “O mercado da desinformação e suas repercussões sobre a democracia: Algumas das importantes conclusões que decorrem da recente decisão do TSE sobre a chapa Bolsonaro-Mourão”, Jota; “Democracia à venda: A relação entre determinados modelos de negócios e a erosão da democracia e da própria esfera pública”, Jota; “O negócio das fake news e suas repercussões: Uma leitura do problema à luz do livro 'As Origens do Totalitarismo' de Hannah Arendt”, Jota.
[8] Ver podcast Direito e Economia sobre a obra do professor Eugenio Bucci (A Superindústria do Imaginário), cuja estreia será no dia 30.03.2023.
[9] Ver, como exemplo, o caso do Twitter: https://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/227437-algoritmos-twitter-favorecem-conteudos-politicos-direita.htm