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Constituição, Empresa e Mercado

Por que o mercado anda nervoso com as recentes declarações de Lula?

A Economia das Narrativas pode ajudar a entender o fenômeno

Ana Frazão
30/11/2022|05:05
lula cop 27
Lula discursa na COP 27, no Egito. Crédito: Ricardo Stuckert

Um dos assuntos recorrentes da atualidade tem sido as reações do mercado às declarações de Lula sobre a necessidade de se flexibilizar o teto de gastos para se assegurar o pagamento do Bolsa Família[1]. A partir daí, muito se tem escrito sobre o que é ou quem é o mercado, as razões pelas quais ele é sensível a esse tipo de declaração e os motivos pelos quais as reações às declarações de Lula foram muito diferentes daquelas ocorridas diante de declarações equivalentes do ministro Paulo Guedes ou mesmo diante de violações sistemáticas ao teto de gastos ocorridas nos últimos anos.

O que motiva, portanto, esse tipo de comportamento do mercado? São fatos, dados, estatísticas e indicadores econômicos? São reações racionais às falas de Lula, embasadas em evidências científicas? Ou podem ser reações muito mais emocionais, intuitivas e não racionais?

Uma das explicações para as reações do mercado diante desse tipo de declaração, incluindo as diferenças de respostas em virtude de quem fala – se é alguém mais identificado com os interesses do mercado, como é o caso de Guedes, ou alguém que pode contrariar tais interesses, como é o caso de Lula – nos é oferecida pelo economista e ganhador do Prêmio Nobel de Economia Robert Shiller em seu interessante livro "Narrative Economics: How Stories Go Viral and Drive Major Economics Events". [2]

Vale ressaltar que, muito antes desta obra, Shiller já era um grande crítico do mainstream econômico e do que considera a “religião” do homo economicus. O autor também já havia tratado de vários aspectos irracionais do comportamento dos mercados financeiros no anterior livro "Irrational Exuberance"[3]. No "Narrative Economics", o raciocínio é ampliado a fim de entender o comportamento econômico em uma perspectiva macro, que transcende os mercados financeiros, embora também tenha neles um dos seus focos principais de atenção.

O próprio Shiller demonstra estranhamento diante da indiferença da economia às narrativas, cuja importância é reconhecida por tantas áreas do conhecimento, como as humanidades, a filosofia, a comunicação social, o jornalismo, a propaganda e o marketing. Sob essa perspectiva, Sartre já nos advertia que o homem é um contador de histórias e vê tudo o que acontece com ele a partir das suas histórias. Dessa maneira, não faz muito sentido que os economistas, com algumas poucas exceções, como é o caso de Keynes, normalmente negligenciem esses pontos.

Para Shiller, comportamentos, decisões e reações dos agentes econômicos não decorrem apenas de incentivos ou respostas racionais a determinados fatos ou estímulos, mas também das narrativas ou histórias populares por meio das quais tais agentes interpretam a economia e os indicadores econômicos e, a partir daí, estabilizam suas expectativas de comportamento. Consequentemente, as narrativas podem ser a chave para a compreensão até mesmo de grandes fenômenos econômicos, como crashes de Bolsas de Valores.

Com efeito, as narrativas, que não são necessariamente lastreadas em evidências científicas, podendo inclusive ser anticientíficas ou bastante reducionistas, podem se alastrar como um vírus, contagiando o tecido social ou grupos importantes de atores econômicos, que passarão a se comportar a partir das explicações que lhes são oferecidas por tais histórias. Daí as comparações que o autor faz entre a disseminação das narrativas e a disseminação de doenças contagiosas e epidemias.

Ao assim alertar, Shiller não pretende substituir a economia tradicional, mas tão somente agregar outros aspectos que, a depender do caso, podem ser mais esclarecedores para a compreensão do comportamento econômico, o que vem sendo comprovado por vários experimentos controlados. Aliás, mesmo os modelos econômicos podem ser compreendidos como narrativas.

Para entender melhor o papel da narrativa, é importante lembrar que há algo no cérebro humano que nos conecta à necessidade de histórias para criar padrões, causalidades e regularidades, a fim de encontrar explicações coerentes e não muito complexas para o mundo e os fenômenos que nos cercam, mesmo quando isso não é possível, pelo menos a partir de um ponto de vista estritamente racional e baseado em evidências.

Isso porque o mundo social é extremamente complexo e sujeito a inúmeras variáveis. Daí por que as narrativas não deixam de ser explicações facilitadas para reduzir complexidade, ainda que isso possa ocorrer às custas do descolamento das evidências científicas.

Além do seu potencial explicativo, para que uma narrativa seja suficientemente forte para determinar o comportamento humano, em uma perspectiva macro, ela precisa ser socialmente compartilhada. Em que pese cada um de nós possa ter suas próprias narrativas para entender o mundo, somente aquelas que se espraiam socialmente, de forma semelhante a um contágio, podem alterar o comportamento do mercado como um todo ou de segmentos importantes.

De fato, se o comportamento dos agentes econômicos depende das suas expectativas, é importante destacar que estas não são decorrentes apenas por cálculos ou por procedimentos lógicos e racionais. Aspectos como a confiança ou desconfiança – inclusive no seu extremo, que seria o pânico – também dependem de emoções, além de serem socialmente construídos. Daí por que a cultura corporativa e a forma como os demais agentes econômicos compreendem os fenômenos econômicos e reagem a eles são também essenciais para se compreender as reações a diversos estímulos, como é o caso do efeito manada.

A cultura corporativa foi aqui mencionada porque é, ao mesmo tempo, causa e consequência de diversas narrativas econômicas, diante das claras relações entre estas e os valores e ideologias compartilhados por uma mesma comunidade ou mesmo pela sociedade como um todo. Não é sem razão que há vários pontos de contato entre a teoria de Shiller e diversos dos aportes da sociologia econômica, dentre os quais o de ressaltar a importância da cognição e dos networks para a compreensão do comportamento econômico[4].

Embora não seja possível delimitar com precisão o que determina o sucesso ou não de uma narrativa, a obra de Shiller e seus desdobramentos supervenientes permite-nos chegar à conclusão de que o processo de disseminação e/ou contágio das narrativas não é necessariamente racional e pode inclusive se distanciar da racionalidade ou das evidências. Em outras palavras, assim como as narrativas podem ser um passo importante para construção do conhecimento científico ou ser dele decorrentes, também podem se mostrar contrárias à ciência, substituindo-se a ela.

Na verdade, há boas razões para concluir que as narrativas terão maior ou menor poder de persuasão em decorrência de outros fatores que não propriamente o convencimento racional. Como o próprio Shiller afirma, não se trata apenas de uma história ter começo, meio e fim e fazer sentido. A questão é o seu poder de contágio, o que pode decorrer de diversos fatores, como alusão a imagens ou a detalhes vívidos ou até mesmo da sua capacidade de dar uma resposta simples e verossímil, ainda que equivocada, para um problema complexo.

De toda sorte, um dos principais indicadores do potencial de sucesso de uma narrativa é precisamente a sua capacidade de se adequar de maneira eficiente às paixões, vieses, ideologias, valores e sistemas de crenças dos indivíduos. Alguns tipos de emoção, como os medos e ressentimentos, parecem ser terreno especialmente fértil para o florescimento de narrativas que se conectem a eles, especialmente quando confirmam nossos medos – o viés de confirmação.

Uma coisa é certa: como histórias coletivas que são, as narrativas podem determinar o comportamento coletivo ou até mesmo transformá-lo. É por essa razão que, para compreender por que o mercado anda nervoso, é insuficiente se voltar apenas para o conteúdo das declarações de Lula ou se perquirir se e em que medida haveria fatores racionais para levar a tais reações; será fundamental igualmente compreender qual(is) (é)são a(s) narrativa(s) em razão da(s) qual(is) tais declarações são recebidas pelos agentes econômicos em uma escala macro, o que será aprofundado no próximo artigo.


[1] https://exame.com/invest/mercados/entenda-por-que-o-mercado-financeiro-ficou-nervoso-apos-lula-questionar-estabilidade-fiscal/

[2] SHILLER, Robert. Narrative Economics. How Stories go viral and drive major economic events. Princeton University Press, 2019.

[3] SHILLER, Robert. Irrational exuberance. Princeton University Press; 2016.

[4] Ver DOBBIN, Frank. The new economic sociology. A reader. Princeton: Princeton University Press, 2004.logo-jota

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