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Constituição, Empresa e Mercado

Futuros incertos

A importância das narrativas para a compreensão da economia e dos processos decisórios dos agentes econômicos

Ana Frazão
20/07/2022|13:10
Atualizado em 20/07/2022 às 14:16
economia
Crédito: Unsplash

Para os que se interessam pelo funcionamento real da economia e pela compreensão dos processos decisórios dos agentes econômicos, leitura bastante informativa e instigante é a do livro coletivo "Uncertain Futures. Imaginaries, narratives and calculation in the economy", organizado por Jens Beckert e Richard Bronx[1].

Na contramão da ideia de que o futuro pode ser enfrentado a partir de cálculos de risco e análises de custo-benefício, as diversas contribuições reunidas na obra procuram mostrar, com base em estudos empíricos, que os atores econômicos visualizam o futuro e decidem como agir em condições de incertezas radicais que, exatamente por isso, não podem ser reduzidas a riscos mensuráveis. Consequentemente, o futuro é indeterminado porque está para ser criado pelas inovações e pelas escolhas complexas e interdependentes que os diversos atores ainda irão fazer.

Beckert e Bronx reconhecem que a questão das incertezas já está no cenário do pensamento econômico há pelo menos um século, tendo sido tratada por importantes economistas, tais como Knight, Keynes e Hayek. Entretanto, afirmam que nem sempre houve tentativas de se conectar o problema à questão da inovação e da novidade, assim como a outros fatores de instabilidade da economia, como a própria política. Da mesma forma, advertem para o fato de que, não obstante a existência de interesse renovado pela questão das incertezas radicais na atualidade, a standard economics e a teoria das finanças ainda se baseiam em microfundações que ignoram o problema:

“But the central assumption has remained that economic actors face measurable risk rather than radically indeterminate futures, and that this risk can be estimated in form of objective probability functions. It is becoming increasingly clear that the current microfoundation of standard economic models cannot handle genuinely uncertain futures. To understand decision-making in such conditions requires an entirely new model of economic reasoning”.

Todavia, o reconhecimento das limitações e falibilidades da teoria das expectativas racionais gera grande preocupação para formuladores de políticas públicas. Afinal, diante de um futuro indeterminado e da impossibilidade de, em muitas circunstâncias, fazer predições probabilísticas ou conhecer ex ante que modelo explanatório será adequado para antever determinados cenários, deixa de haver qualquer âncora auto-evidente no conhecimento ou nas probabilidades objetivas para direcionar o processo decisório. Da mesma forma, o acúmulo de dados passados não necessariamente assegura uma boa decisão: “The past is not necessarily a good guide to uncertain futures”.

Diante das dificuldades apontadas, como agir? Se a expectativa dos que operam em mercados inovadores e inovativos não pode ser baseada no cálculo racional de probabilidades baseado em dados passados, como se formam as expectativas e as crenças das quais dependem as decisões econômicas? Quais são os riscos das tentativas contingentes de narrar ou calcular o futuro como representações aparentemente objetivas do que acontecerá?

Em primeiro lugar, Beckert e Bronx mostram a necessidade de se superar a “monocultura analítica” que reduz a diversidade de inputs cognitivos para o processo decisório, enfatizando a importância da multidisciplinaridade – e especialmente de algumas áreas, como sociologia, antropologia e psicologia – para compreender como as pessoas efetivamente agem.

Os autores também consideram que parte importante da resposta é entender o papel da imaginação e das narrativas no processo decisório, em conjunto com tecnologias calculatórias, reconhecendo que o poder das narrativas depende prioritariamente do seu apelo emocional:

“Rational analysis still has an important role to play, of course, in stress-testing stories and expectations for long-term plausibility and feasibility; but in short-run at least, the market or political success of any narrative may depend more on its emotional appeal, the credibility of its author, and the rhetorical techniques it employs than on its ability to capture available information about persistent constraints and emerging patterns”.

Ponto particularmente interessante do livro é a ideia de que a estabilização de expectativas é fundamental para o bom funcionamento da economia e para a atração de investimentos. Entretanto, quando o futuro não é dado e não pode existir como uma mera sombra do passado, os atores econômicos recorrem a expectativas que compartilham muitos dos atributos das ficções literárias, pois:

  • as expectativas que os agentes econômicos usam delineiam visões do futuro que vão além das verdades observáveis;
  • os atores econômicos podem, antes das decisões, testar diferentes cursos possíveis de ação com diferentes imagens contrafactuais da realidade;
  • as expectativas normalmente adotam a forma de narrativa que confere relações causais confiáveis entre o presente conhecido e o futuro imaginado, ao mesmo tempo em que atribuem papeis e significados para os diferentes protagonistas do enredo; e
  • as expectativas confiam muito do seu impacto no poder retórico da linguagem e das metáforas utilizadas.

Entender as expectativas formadas em condições de incerteza como ficcionais e confiar na imaginação e nas estruturas narrativas para construir visões de futuro a partir dos pontos disponíveis mostra o quanto tal processo é contingente e o quanto os preços de mercado podem ser incapazes de refletir o futuro valor verdadeiro dos bens: ao contrário dos preços refletindo o conhecimento descentralizado, como propôs Hayek, os preços podem refletir, na verdade, o caminho contingente de diversos atores tentando imaginar o futuro em um cenário de incertezas.

A superação da teoria das expectativas racionais não quer dizer que não possa haver algum espaço para ela ou que se tenha que aceitar que a estabilização das expectativas no mercado seja absolutamente randômica e totalmente imprevisível. Com base na obra de diversos economistas importantes, incluindo Douglas North, Beckert e Bronx afastam tais conclusões por três razões principais:

  • as expectativas estão ancoradas em estruturas sociais herdadas, molduras culturais, convenções, regras e ajustes institucionais que potencialmente limitam a dispersão de expectativas,
  • as expectativas são formadas em grupos sociais e
  • as expectativas, especialmente as de longo prazo, são normalmente sensíveis ao conhecimento estabelecido sobre restrições persistentes de ordem física e institucional, mecanismos estáveis de causalidade, regularidades comportamentais e a relativa escassez de recursos financeiros.

Não obstante, é fundamental compreender que, para fazer frente as complexidades, os agentes da economia procuram estabilizar suas expectativas a partir de uma combinação de imaginários, narrativas compartilhadas e recursos calculatórios. Não é sem razão que existe uma verdadeira disputa por narrativas, o que propicia um verdadeiro mercado de batalha política para estabelecer a supremacia de umas sobre outras.

Considerando que o apelo emocional é o elemento mais decisivo para a aceitação de uma narrativa, Beckert e Bronx mostram o quanto os decisores precisam estar atentos a determinados fatores, como o poder político e o poder de mercado, o contágio emocional e a retórica. Mais do que isso, os autores fazem um convite para a imaginação, considerando que esta, ao mesmo tempo em que é uma das causas dos futuros incertos, é também um dos principais mecanismos para se ter algum tipo de acesso a eles. Entretanto, alertam para o fato de que somente quando os imaginários estão embutidos em narrativas e modelos é que se tornam determinados o bastante para estruturar a ação no nível social e se tornar objeto de estudos empíricos.

Consequentemente, as narrativas não apenas são instrumentos de coordenação e de poder, como são um dos mais importantes recursos humanos para conferir significado às suas atividades e criar compromissos para a ação. Sob este ângulo, uma das principais funções das análises econômicas preditivas e das narrativas nelas embutidas é precisamente a de ajudar a resolver problemas de coordenação por meio da criação de expectativas compartilhadas sobre o futuro.

Exatamente por isso os autores mostram as implicações políticas das narrativas, citando duas passagens interessantes sobre o assunto. A primeira delas é de Keynes, ao mostrar que o sucesso das ideias de David Ricardo se deveu ao fato de serem úteis aos que estavam no poder: poderiam explicar muito da injustiça social e da aparente crueldade do sistema econômico como um incidente inevitável da marcha do progresso, de forma que qualquer tentativa de mudar as coisas provavelmente faria mais mal do que bem. A segunda delas é de Foucault, ao mostrar que a melhor definição para o papel de uma teoria não é a de ser um par de óculos, mas sim um par de revólveres: ela possibilita não propriamente que se veja melhor, mas sim que se lute melhor.

Em suma, a obra de Beckert e Bronx é uma consistente provocação para que possamos reconhecer o papel das narrativas para a compreensão da economia e para as tentativas de visualização de cenários futuros. Mais do que isso, é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre a batalha política que existe em torno das narrativas econômicas – inclusive a que procura ocultar a dimensão ideológica do mainstream – e identificar a que interesses servem cada uma delas.


[1] Oxford University Press, 2018.logo-jota

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Economia
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