Ana Frazão
Advogada. Professora associada de Direito Civil, Comercial e Econômico da UnB. Ex-Conselheira do CADE.
Não é novidade que as democracias estão em crise no mundo e no Brasil[1]. O que surpreende é que tal situação decorre progressivamente de processos cada vez mais sutis e complexos do que aqueles que caracterizaram as rupturas do passado. Nos tempos atuais, as democracias podem ser minadas sem necessidade de armas, de mobilização de exércitos ou de utilização de violência física.
Em muitos casos, não há nem mesmo necessidade de mudanças drásticas ou facilmente perceptíveis. O enterro das democracias pode ocorrer pela erosão paulatina e continuada das instituições democráticas, a partir de diversificado arsenal de estratégias, muitas das quais sub-reptícias e cujo potencial nefasto só pode ser visualizado a partir da noção de conjunto e quando os seus efeitos já são irreversíveis ou de difícil reversão.
Esse processo de dissolução das democracias já foi mapeado por extensa e rica literatura, de que são exemplos, dentre inúmeros outros, os excelentes livros "How Democracies Die"[2] e "Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism"[3]. Entretanto, mais recentemente, o livro "Spin Dictators: The Changing Face of Tyranny in the 21st Century"[4] traz algumas provocações interessantes sobre o tema.
Para os autores Guriev e Treisman, os ditadores clássicos do século 20 tinham em comum o perfil violento, já que matavam e prendiam um número considerável de pessoas, controlavam a mídia e procuravam impor a ideologia oficial. O elemento determinante dessa forma de atuação era o uso deliberado e público da violência física, a fim de manter os cidadãos assustados.
Já os spin dictators do século 21 partem da premissa de que o poder persuasivo pode ser tão ou até mais eficiente do que o poder coercitivo. Daí porque abrem mão da violência explícita, ganham eleições, ainda que estas sejam organizadas tão somente para assegurar a sua vitória, e ainda adotam discursos de defesa da democracia mesmo quando tentam miná-la de todas as formas. Em vez de buscarem manter as pessoas assustadas, adotam como estratégia principal a manipulação da mídia e da opinião pública, a fim de projetar sua imagem como líderes bons, eficientes e democráticos.
Como todos sabemos, o talento “persuasivo” do ditador, embora seja um componente importante da estratégia, dificilmente poderá ser o único pilar de sustentação desse novo tipo de autoritarismo. Certamente haverá necessidade de múltiplos arranjos, dentre os quais os entabulados com as elites econômicas e instituições formais ao menos para garantir delas a tolerância conivente.
Entretanto, há boas razões para entender que a chave mais importante para compreender essa nova forma de autoritarismo é o poder sobre o fluxo informacional ou o poder que pode ser exercido por meio desse fluxo. Afinal, para atingir seus objetivos, os spin dictators do século 21 – e os aspirantes a tal — não hesitam em deturpar e corromper os espaços públicos e a opinião pública, mesmo que por meio de artifícios como mentiras e manipulações.
Ocorre que, para que tais efeitos sejam alcançados pelo menos sobre parcela relevante da população, é fundamental o engajamento de agentes econômicos que estejam dispostos a criar e estruturar a indústria da desinformação, auxiliando diretamente os ditadores contemporâneos, assim como dos agentes econômicos que se tornaram os grandes gatekeepers informacionais dos nossos tempos – as plataformas digitais.
Considerando o papel central que as plataformas hoje ocupam no controle do fluxo informacional, a propagação de ideias extremistas e antidemocráticas requer no mínimo a conivência desses grandes gatekeepers com tais estratégias de desinformação. Entretanto, em muitos casos, mais do que tolerância, as plataformas têm sido grandes fomentadoras da desinformação, já que a mentira, o ódio e o divisionismo geram mais engajamento e consequentemente mais lucros.
Daí porque, ainda que não tenha sido o seu propósito inicial, os modelos de monetização adotados pelas plataformas acabaram tornando-as ferramentas estratégicas nas mãos dos ditadores do século 21 ou dos aspirantes a tal, pois são canais não apenas de veiculação — mas sobretudo de amplificação — de suas mentiras e de suas técnicas manipulatórias.
Mais do que isso, as plataformas são os canais que possibilitam o microtargeting ou a abordagem individualizada de cada eleitor, viabilizando a propaganda política sob medida, que pode explorar as fraquezas, vulnerabilidades e mesmo o subconsciente do eleitor, manipulando ou mesmo subvertendo seus processos decisórios e a formação de suas preferências e convicções.
O saldo final desse ecossistema é a erosão de pilar fundamental para a democracia: a possibilidade da comunicação civilizada, baseada no diálogo e no dissenso respeitoso e informado e na diversidade de opiniões a respeito dos mesmos fatos. De forma contrária, o fluxo informacional atual, como bem sintetiza Jonathan Haidt[5], transformou-se em uma torre de Babel, em que cada qual se sente no direito de ter seus próprios fatos e sua própria história:
“The story of Babel is the best metaphor I have found for what happened to America in the 2010s, and for the fractured country we now inhabit. Something went terribly wrong, very suddenly. We are disoriented, unable to speak the same language or recognize the same truth. We are cut off from one another and from the past. It’s been clear for quite a while now that red America and blue America are becoming like two different countries claiming the same territory, with two different versions of the Constitution, economics, and American history. But Babel is not a story about tribalism; it’s a story about the fragmentation of everything. It’s about the shattering of all that had seemed solid, the scattering of people who had been a community”.
Prossegue o autor mostrando que as mídias sociais têm destruído as três maiores forças de uma democracia: o capital social, que depende da confiança recíproca entre os cidadãos, as instituições fortes e as histórias compartilhadas. Mais do que isso, o novo ambiente informacional encoraja a desonestidade, a frivolidade e dinâmicas de massa que não privilegiam a veracidade das informações ou a qualidade dos conteúdos. Afinal, os usuários não são guiados apenas pelas suas reais preferências, mas sim pelas suas experiências de recompensas e punições, assim como por suas predições sobre como os outros irão reagir diante de suas novas ações.
Não é sem razão que Jonathan Haidt cita estudos acadêmicos recentes mostrando o quanto as mídias sociais são corrosivas para a confiança não só em relação a governos, mas também em relação à mídia tradicional, às instituições e às próprias pessoas. Além de tudo, as mídias sociais criam inúmeras disfuncionalidades, dando mais poder e voz a perfis falsos, provocadores e extremistas políticos do que aos cidadãos comuns e à maioria moderada.
A consequência disso é a degradação da política, que vai se tornando cada vez mais ridícula e disfuncional, e a dissolução gradativa da democracia, que afunda em um mar de estupidez e de teorias conspiratórias.
O diagnóstico de Jonathan Haidt converge com o de Maria Ressa, Prêmio Nobel da Paz de 2021. Em recente entrevista concedida à Folha, cujo título é “Plataformas da internet estão destruindo a democracia”, afirma a jornalista que “a sociedade brasileira vai ter que se engajar para evitar que Bolsonaro desacredite o processo eleitoral”, uma vez que as mídias sociais são “como uma bomba atômica que explodiu em nosso ecossistema de informação” e que “precisa ser contida”, pois “está roubando o livre arbítrio”.
Como se pode observar, as possibilidades de controle e de manipulação informacional oferecidas pelas plataformas são, na verdade, as verdadeiras armas de muitos dos spin dictators contemporâneos. A partir do momento em que o exercício do poder de tais autocratas depende, em boa medida, da existência de uma série de modelos de negócios, é fundamental pensar nas enormes externalidades negativas e nos riscos para as democracias que tais modelos geram.
O problema é que, a curto prazo, mesmo soluções como a regulação não se mostram exequíveis. O diagnóstico é realmente dramático, como aponta Maria Ressa:
“Neste exato momento, estamos impotentes. No longo prazo, é preciso educação. No médio prazo, é legislação. E, no curto prazo, é preciso ação coletiva. Precisa ser uma abordagem de toda a sociedade para tentar redefinir o que significa engajamento cívico hoje. Foi o que tentamos fazer para nossas eleições em maio. É o que o Brasil vai precisar fazer para as eleições de vocês. É preciso perguntar se as pessoas realmente querem viver num mundo onde se pode manipular todas as pessoas ou onde a democracia é destruída e não vivemos numa realidade compartilhada”.
Daí porque, sem prejuízo de refletirmos sobre como vamos educar nossos cidadãos e como vamos regular os diversos modelos de negócio que hoje colocam a democracia em risco, precisamos pensar com urgência em como vamos assegurar de forma imediata a subsistência da tão combalida democracia brasileira.
[1] Sobre o tema, vale consultar o interessante relatório do IDEA publicado em 2021 https://www.idea.int/data-tools/tools/global-state-democracy-indices. Amplamente repercutido pela mídia brasileira, o estudo demonstrou que o nosso país é a democracia com mais aspectos em declínio no mundo. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2021/11/22/brasil-e-a-democracia-com-mais-aspectos-em-declinio-do-mundo.htm.
[2] LEVITSKY, Steven; ZIBLAT, Daniel. How Democracies Die. Crown Publishers, 2018.
[3] APPLEBAUM, Anne. Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism, Anchor, 2020.
[4] GURIEV, Sergei; TREISMAN, Daniel. Spin Dictators: The Changing Face of Tyranny in the 21st Century, Princeton University Press, 2022.
[5] HAIDT, Jonathan. Why the past 10 years of American Life have been uniquely stupid. It’s not just a phase. The Atlantic. https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/05/social-media-democracy-trust-babel/629369/