Thales M. Stucky
Sócio do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados. Graduado pela PUC-RS e LLM em Tributação Internacional pela New York University. Ex presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET)
A CIDE-Royalties e a sua referibilidade
Figura bastante controversa, a Contribuição para Intervenção no Domínio Econômico - CIDE, encontra suporte constitucional no art. 149 da Constituição Federal, é notoriamente reconhecido que a análise de validade de qualquer CIDE instituída pela União Federal deverá estar atenta a três requisitos principais: (a) o alcance da finalidade para o qual a CIDE foi instituída; a (ii) a necessidade de sua instituição para intervenção no setor econômico definido; e (iii) a referibilidade, esta última verificada a partir da constatação de vínculo entre a finalidade da CIDE e o grupo de contribuintes destinatários da CIDE.
Pois bem. A coluna de hoje discorre sobre acórdão de turma ordinária do CARF que ao reconhecer a ausência do requisito da referibilidade decidiu, por maioria de votos, que "não incide a contribuição nas remessas de royalties decorrentes de direitos autorais de caráter cultural" (Acórdão nº 3401-003.833).
O caso objeto da decisão acima citada decorreu de lançamento fiscal para cobrança da CIDE-Royalties, prevista na Lei nº 10.168/2000, sobre a remessa ao exterior de valores em contrapartida à cessão de direitos autorais para exploração de composições musicais. Conforme esclarecido no julgado, tais pagamentos eram realizados em favor de editoras localizadas no exterior, mas não diretamente aos artistas titulares das obras.
Na construção elaborada pelo Fisco Federal, a Lei nº 10.168/2000, em seu artigo 2º, §2º, com redação dada pela Lei nº 10.332/2001, teria autorizado a incidência da CIDE-Royalties sobre toda e qualquer remessa ao exterior a título de royalties. Em seu turno, em sede de impugnação o Contribuinte autuado refutou tal posicionamento sob a alegação de que a incidência da CIDE-Royalties deveria estar condicionada apenas em relação àquele grupo ou setor econômico relacionado à finalidade que deu origem à CIDE-Royalties em questão.
A corroborar com seu entendimento e comprovar a ausência de referibilidade entre a CIDE-Royalties e as remessas para remuneração do direito a explorar composições musicais no Brasil, o Contribuinte destacou que a longa lista de contratos sujeitos à CIDE-Royalties no decreto regulamentador(Decreto nº 4.195/2002) não fazia qualquer referência às atividades desenvolvidas pelo Contribuinte cujo exercício dependia do pagamento a beneficiários no exterior, de modo que a expressão "royalties a qualquer título" contida na Lei nº 10.168/01 não poderia ser interpretada de maneira ampla, mas sim de acordo com os limites impostos pelo decreto regulamentador, assim como a partir das regras constitucionais que estabelecem os parâmetros para instituição e cobrança de tal espécie tributária.
A decisão de piso, entretanto, considerou válida a exigência sob o argumento de que a CIDE-Royalties seria devida em função da Lei nº 10.168/2000 não exigir a transferência de tecnologia para a incidência de tal tributo. Ainda, foi destacado pelo acórdão da DRJ que "o Decreto não pode restringir a aplicação da lei que a regulamenta", de modo a concluir que a se Lei nº 10.168/2000 previu que a CIDE em questão incidiria sobre a remessa de royalties "a qualquer título", qualquer limitação imposta pelo decreto regulamentador seria indevida. Assim, a DRJ desconsiderou por completo o fato de o Decreto nº 4.195/2002 não listar os contratos relativos a cessão de direitos autorais dentre aqueles sujeitos à CIDE-Royalties e manteve a exigência lançada.
Em sede de recurso voluntário, o Contribuinte trouxe à tona argumentação no sentido ver afastada a caracterização dos pagamentos como royalties, pois os pagamentos questionados seriam classificáveis como despesas para obter autorização de publicação e inclusão de obra em fonograma em favor do produtor fonográfico, mas não em favor dos autores da obra. De tal modo, restaria afastada a natureza jurídica de royalties dos pagamentos em análise e, assim, inviabilizada a incidência da CIDE-Royalties.
Não obstante as razões adicionais levantadas em recurso voluntário, o Conselheiro-Relator apresentou voto extremamente técnico a fim de embasar seu posicionamento contrário à exigência fiscal, merecendo aqui alguns destaques importantes, especialmente pela análise de fundo constitucional promovida.
Inicialmente, de se louvar a argumentação trazida à tona acerca da aplicação do método de interpretação conforme a Constituição para deslinde do caso. Com efeito, enquanto em muitos julgados se verifica uma aplicação indiscriminada da Súmula nº 2 do CARF[1] para o fim de afastar qualquer alegação centrada em fundamentos constitucionais, o voto condutor faz uma correta leitura dos contornos de tal súmula ao estabelecer que a interpretação conforme a Constituição em nenhuma hipótese se confunde com controle de constitucionalidade, mas sim apenas como um ”método de interpretação passível de adoção na atividade jurisdicional em que a premissa é atender aos requisitos constitucionais de validade da regra ali a ser interpretada".
Longe de se exercer um controle de constitucionalidade, o CARF ao aplicar o método de interpretação conforme a Constituição estaria apenas verificando se a regra questionada atende aos parâmetros constitucionais a partir de um prisma de interpretação. Ora, toda interpretação acerca da aplicabilidade das normas deve partir do plano constitucional, não sendo vedado aos tribunais administrativos que pautem a análise de casos colocados a seu crivo a partir de uma intepretação que melhor coadune eventuais atos infraconstitucionais aos parâmetros estabelecidos pela Constituição. Em verdade, seria um verdadeiro contrassenso os tribunais administrativos, entre eles o CARF, darem acolhida a normas infraconstitucionais a partir de uma interpretação que, notadamente, esteja em desacordo com o plano constitucional.
Ao seguir com tal argumentação, o voto condutor tratou dos fundamentos de validade da espécie tributária CIDE elencados na Constituição, em especial aqueles já destacados ao início deste artigo, quais sejam, a finalidade, a necessidade e a referibilidade que devem ser verificados quando da instituição de uma CIDE.
Nota-se aqui que ao destacar os fundamentos de validade constitucionais da CIDE, o relator apenas tratou de fixar os parâmetros para aplicação da interpretação que melhor se ajusta aqueles fundamentos, mas em nenhum momento tratou de exercer um controle de constitucionalidade das normas questionadas, no caso, da Lei nº 10.168/2001 e Decreto nº 4.195/2002. Em outras palavras, a partir de uma análise conforme a Constituição o relator construiu o raciocínio a fim de verificar se a taxatividade dos contratos sujeitos à CIDE-Royalties, conforme colocado no decreto regulamentador, estaria de acordo com os fundamentos de validade da CIDE-Royalties.
E nesta toada, fez questão o relator de destacar que o fato de o Decreto nº 4.195/2002 não listar os pagamentos em contrapartida aos contratos para o exercício do direito de exploração de obras musicais em nenhum momento encontra-se em desacordo com o texto da Lei nº 10.168/2000 ou mesmo da Constituição. Ao contrário, tal limitação dos tipos de contratos autorizativos da incidência da CIDE-Royalties estaria justamente valorizando o requisito constitucional da referibilidade de toda e qualquer CIDE, pois direcionando a exigência ao grupo de contribuintes que, efetivamente, está relacionada com as finalidades para as quais a CIDE-Royalties foi criada.
Citando passagem de Andrei Velloso e Leandro Paulsen, extraída da excelente obra "Contribuições - Teoria Geral, Contribuições em Espécie"[2], o relator realçou que a referibilidade deve ser examinada a partir do vínculo entre a finalidade pela qual a CIDE foi instituída e as atividades/ interesses de determinado grupo, para concluir que a cobrança de toda e qualquer CIDE somente será legítima se destinada a impactar os "contribuintes que serão afetados pela sua imposição". Ou seja, não há como se considerar legítima a cobrança de uma CIDE caso a finalidade(s) para a(s) qual(is) foi criada não esteja(m) de forma mediata ou imediatamente relacionada(s) com as atividades desenvolvidas pelo sujeito passivo destinatário de tal contribuição especial.
Em assim sendo, ao constatar que a CIDE-Royalties teve como finalidade precípua "estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnologia cooperativa entre universidades, centro de pesquisas e o setor produtivo" (art. 1º da Lei nº 10.168/2000), nada mais coerente que o decreto regulamentador da Lei nº 10.168/2000 estabelecer que a CIDE-Royalties deveria apenas incidir em relação a contratos de fornecimento de tecnologia, prestação de serviços de assistência técnica (serviços técnicos e serviços técnicos especializados), serviços técnicos e de assistência administrativa, cessão e licença de uso de marcas e, ainda, cessão e licença para exploração de patentes. Ao limitar os tipos de contratos sujeitos à incidência da CIDE-Royalties e deixar de fora os contratos de cessão para exploração de direitos autorais, o decreto regulamentador nada mais fez que explicitar os requisitos de finalidade e referibilidade tal contribuição, nada mais que isso.
Destarte, corretamente o voto vencedor realçou que o fato de a Lei nº 10.168/2000 utilizar a expressão "royalties a qualquer título" não deve ser interpretado como uma autorização geral e irrestrita para incidência da CIDE-Royalties sobre remessa ao exterior. Ao contrário, tal expressão deve ser considerada sempre a partir dos fundamentos de validade constitucionais da CIDE, de modo que a restrição dos tipos de contratos sujeitos à CIDE-Royalties mostra-se plenamente ajustada ao ordenamento jurídico-tributário em que inserida tal espécie tributária.
Conforme resumido com extrema clareza no voto vencedor "não foi à toa que o Decreto regulamentar não incluiu a remuneração por mera cessão de direitos autorais - diferentes, portanto dos royalties por cessão de marca e patente - das hipóteses elencadas no art. 10. Nesse aspecto, o Decreto estabeleceu regularmente os fatos geradores previstos na Lei, vindo a sedimentar a interpretação mais adequada considerando a natureza da contribuição".
Isso posto, feliz com sensação que o acórdão hoje destacado tratou de valorizar a nossa Constituição, por vezes tão mal tratada sob a sombra do mantra de que "não cabe ao órgão administrativo exercer o controle de constitucionalidade", encerramos na expectativa de nos depararmos com mais e mais decisões de igual jaez à presente, torcendo para que julgadores não se furtem, sempre que necessário, a buscar no plano constitucional a melhor interpretação para os casos lhe confiados.
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[1] Súmula CARF nº 2: O CARF não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária.
[2] VELLOSO, Andrei Pitten e PAULSEN, Leandro, "Contribuições - Teoria Geral, Contribuições em Espécie", Ed. Livraria do Advogado.