Gustavo Brigagão
Presidente do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA) e presidente-honorário da ABDF.
Pacote apresentado por Guedes gera resultados opostos àqueles de um governo que se diz liberal e avesso ao populismo
Pelos severos danos que promove à economia, o pacote de normas desencontradas e desconexas recentemente apresentado pelo ministro Paulo Guedes gera resultados diametralmente opostos àqueles que se esperam de um governo que se diz liberal e avesso ao populismo.
De fato, essa proposta é absolutamente desalinhada e contrária às prometidas políticas de: (a) desoneração tributária das atividades produtivas e da classe média brasileira; (b) implementação de justiça fiscal, (c) diminuição da complexidade das regras tributárias, (c) atração e incentivo ao investimento nacional e estrangeiro, (d) formalização da economia; e (e) desincentivo à evasão e à elisão fiscal, só para mencionar algumas.
Busca-se, com essa proposta, dar a falsa impressão de que o governo promove uma reforma tributária “RobinHoodiana” da renda, em que os assalariados serão desonerados e aqueles que recebem dividendos passarão a ser tributados, como única forma de propiciar a desoneração daqueles primeiros.
Há nessa postura duas premissas equivocadas.
A primeira delas é a de que esse pacote de arrocho fiscal tem a natureza de um projeto de “reforma tributária”. Ele não chega nem perto disso!
A proposta apresentada não passa de um conjunto de regras assistemáticas, sem fundamentação, que promovem óbvios efeitos deletérios na economia, não previstos nem sequer projetados pelos seus proponentes.
A segunda premissa equivocada é a de que esse pacote estaria promovendo a oneração dos mais ricos em contraposição ao benefício tributário concedido, por meio de ajustes das faixas da tabela do Imposto de Renda (IR), aos do “andar de baixo” - referência inadequada e inoportuna que vem sendo feita aos assalariados.
Quanto a essa segunda premissa, esclareça-se, em primeiro lugar, que nenhum benefício está sendo concedido aos assalariados. O que há é mera atualização monetária – insuficiente e intempestiva, diga-se de passagem - das faixas da tabela do IR. Portanto, não há ganho para os contribuintes assalariados e autônomos, mas mera interrupção da indevida superoneração que decorria da falta dessa atualização ao longo de todos esses anos. Note-se, ainda, nesse particular, que a atualização proposta é bem inferior àquela prometida na campanha eleitoral do atual governo. De fato, para que fossem mantidos os parâmetros de 1996, salários de até, aproximadamente, R$ 4 mil, e não de apenas R$ 2.500, como proposto pelo governo, deveriam ter sido amparados pela faixa de isenção proposta.
E, mesmo que fosse real o fato de que a principal motivação da oneração dos dividendos seria a viabilização do alívio na tributação dos assalariados, as medidas propostas foram tão mal dimensionadas, que, se aprovadas, acabarão por promover o colapso do “andar de cima” e o seu consequente desabamento sobre o “andar de baixo”, para adotar a mesma figura de linguagem antes referida.
De fato, como decorrência lógica da desconstrução da tributação do lucro proposta no pacote do governo e da excessiva oneração dos agentes econômicos, o resultado será que aqueles que devem ser alvo de maior proteção – os assalariados – serão os que acabarão por sofrer as pesadas consequências de uma economia decadente: o desemprego, o aumento de preços e a redução de oportunidades de trabalho que advirão do novo cenário.
A revogação da isenção do IR na distribuição de dividendos, a eliminação da dedutibilidade dos juros sobre capital próprio (JCP), as injustificáveis alterações das regras da tributação do lucro presumido, a eliminação dos descontos simplificados do IR, a escorchante e confiscatória sobrecarga tributária das atividades produtivas - principalmente se comparada com a utilizada para tributar o mercado financeiro (a tributação dos resultados daquelas podem alcançar 49%, enquanto aplicações especulativas são tributadas a 15%) -, o desrespeito a princípios constitucionais de tributação (como o da irretroatividade, entre tantas outras) demonstram o enorme retrocesso que esse projeto proporcionará, caso aprovado.
Mas vamos nos concentrar na pior das alterações promovidas por esse pacote, que é a primeira das acima citadas: a revogação da isenção do IR na distribuição de dividendos.
Quando se fala em tributação do lucro e dos dividendos, não podemos nos abstrair do fato de que, economicamente, trata-se da circulação de valor da mesma natureza, que tem a origem da sua formação na empresa e o seu término, quando os respectivos dividendos chegam às mãos dos sócios ou acionistas.
É um mesmo valor que circula em um mesmo ciclo, só que dividido em de duas etapas: a primeira nas mãos da pessoa jurídica (empresa) e a segunda nas mãos dos sócios.
Tanto assim que há no mundo países que simplesmente deixam de tributar a renda na pessoa jurídica, fazendo-o apenas nas mãos dos acionistas; há os que tributam o lucro somente na pessoa jurídica, isentando os dividendos; e há outros, ainda, que tributam a renda na pessoa jurídica e na pessoa do sócio, mas com a adoção de mecanismos que propiciam melhor e efetiva equalização de ambas as incidências e uma carga tributária não extorsiva.
No Brasil, adotou-se sabiamente o segundo dos métodos acima, pelo qual tributa-se o lucro na pessoa jurídica, com absoluta desoneração da distribuição de dividendos.
Esse é o regime que prevalece no Brasil desde 1996 – há quase três décadas, portanto – quando editada a Lei 9.249/95, cuja exposição de motivos foi muito clara quanto aos objetivos da referida desoneração: “além de simplificar os controles e inibir a evasão, estimular o investimento nas atividades produtivas”, inclusive, e principalmente, o proveniente do exterior.
Jamais se pretendeu, com a isenção que se quer revogar, estabelecer qualquer incentivo que buscasse privilegiar quem quer que fosse. É falacioso esse argumento.
De fato, o sistema jurídico vigente estabelece normas que sujeitam os rendimentos provenientes do trabalho e do capital a cargas tributárias bastante semelhantes, senão mais gravosas para o capital. O lucro distribuído ao sócio ou ao acionista é antecipada e pesadamente tributado na pessoa jurídica que o aufere e, diversamente do que ocorre com a remuneração paga a empregados, não gera qualquer valor a ser deduzido na apuração dos resultados tributáveis da empresa.
Em relação às sociedades profissionais, compostas por médicos, dentistas, advogados, engenheiros etc., a tributação dos dividendos distribuídos causa efeitos ainda mais drásticos, tendo em vista que toda a renda por elas produzida deriva do trabalho pessoal de cada um dos sócios.
Logo, tributar o resultado da sociedade profissional e depois tributar os valores distribuídos aos sócios significa, na prática, tributar duplamente a mesma renda, promovendo-se, aí sim, profunda injustiça fiscal.
Como bem aponta Everardo Maciel, em artigos escritos sobre a matéria, dizer que a isenção na distribuição de dividendos configura vantagem indevida aos sócios investidores equivale a afirmar que, ao receber a restituição do IR, o trabalhador está recebendo subsídios indevidos, quando, na verdade, o que ocorre é que ele foi tributado em excesso na fonte.
Na distribuição dos lucros ao acionista, os valores pagos já terão, da mesma forma, sofrido forte tributação quando da sua formação na pessoa jurídica, conforme demonstrado.
O que se pretendeu, em 1995, com a criação da regra de isenção foi, além de evitar a bitributação de valores que pertencem a um mesmo ciclo, simplificar a complexa e burocrática rotina com que conviviam os contribuintes brasileiros (de forma a trazer à formalidade aqueles que se mantinham à margem dela), evitar planejamentos fiscais abusivos promovidos com o objetivo de escapar da tributação dos dividendos, evitar as infindáveis discussões de DDL (distribuição disfarçada de lucros) e, principalmente, estimular novos investimentos por meio da desobstrução de lucros que, em decorrência da tributação que a sua distribuição sofria, eram retidos pelas empresas.
De fato, a tributação intensa do lucro na sua formação (34%, bem acima dos 21,5%, que é a alíquota média adotada pelos países mais desenvolvidos da OCDE), bem como a isenção na distribuição, além de assegurarem a arrecadação nos níveis desejados pelo governo, torna injustificável e desnecessário que pessoas jurídicas retenham ou posterguem o pagamento de dividendos (lock-in effect).
Consequentemente, os acionistas passam a ter maior discricionariedade e disponibilidade de recursos para fazerem reinvestimentos na mesma empresa ou investimentos em novos negócios. Com essa desoneração e consequente desobstrução da distribuição de lucros por parte das empresas, há maior circulação de riquezas na econômica, com todas as vantagens daí decorrentes.
Buscou-se, assim, com a isenção do IR na distribuição de dividendos, contornar as principais distorções econômicas então existentes, relacionadas à forma como ela (a distribuição) era tributada. A dupla oneração do lucro, na pessoa jurídica e na pessoa dos seus sócios, era, de fato, um grave empecilho ao alcance daqueles objetivos e propiciava iniciativas que iam em direção oposta a todos aqueles valores cuja proteção era mandatória.
Um argumento muito comumente utilizado por quem defende o oposto é o de que, em razão da isenção que se pretende extinguir, a arrecadação acaba por ser prejudicada pela má utilização de pessoas jurídicas por contribuintes – a denominada “pejotização”.
Quanto a isso, tenha-se em mente que, se as regras de tributação forem concebidas a partir da premissa de que os contribuintes logram escapar da tributação mediante a adoção práticas evasivas, os que se abstiverem de adotá-las acabarão sendo, na verdade, prejudicados. Se há algo de errado com a referida “pejotização”, que o fisco se debruce sobre a questão e procure resolver o problema de forma específica.
Não se pode legislar com os olhos voltados para a exceção e a patologia, sob pena de penalizar-se toda a coletividade em decorrência do comportamento de poucos.
Se há tributação em níveis inferiores nas pessoas jurídicas submetidas à sistemática do lucro presumido, que sejam aumentadas as margens presumidas de lucro, mas, jamais, extinta a isenção na distribuição de dividendos, que tantos males evita para a nossa economia.
Efetiva reforma na tributação da renda deve pressupor a tomada de medidas que propiciem a criação de uma política tributária voltada à recuperação das empresas – principalmente em época de tamanha crise econômica -, ao tratamento tributário adequado ao aumento da competitividade interna e externa, à simplicidade das regras fiscais, ao estímulo à formalização da economia, à baixa carga tributária, à segurança jurídica, ao incentivo ao investimento na nossa combalida economia e, por fim, o mais importante, à criação de mecanismos que propiciem o reequilíbrio fiscal e imponham a diminuição dos gastos públicos, esses, sim, os verdadeiros vilões da situação fiscal em que o país se encontra.
Esse pacote de maldades proposto pelo Governo deve, portanto, ser repudiado pela sociedade brasileira. Não se pode admitir tamanho aumento da tributação da renda, que, aliado à elevação para 12% da incidência unificada de contribuições sobre o faturamento (Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS – também em exame no Congresso Nacional), levará a carga fiscal das empresas brasileiras geradoras de empregos a patamares nunca antes vistos.