Os novos negócios digitais das pessoas físicas
É inquestionável que as redes sociais impactaram o mundo dos negócios. A evolução da nova, porém já ultrapassada, profissão de “blogger” se reflete em negócios digitais, como por exemplo no YouTube, Instagram e TikTok, na chamada “creator economy” em perfis, muitas vezes, internacionais e bilionários.
De acordo com o relatório de 2023 do Influencer Marketing Hub, o mercado global de influenciadores cresceu e valia mais de US$ 21 bilhões no ano passado, em comparação com US$ 16,4 bilhões em 2022. O crescimento tem sido acompanhado pela evolução e expansão das plataformas de marketing de influenciadores, que se tornaram ferramentas cruciais para ligar marcas com os criadores de conteúdos certos.
Ademais, existem diversos perfis na internet com milhões de seguidores, e não necessariamente é sabido quem é o dono. Esses casos também são interessantes pois tais perfis, sejam de comédia, viagem, setoriais, dentre outros, em muito colaboram para o marketing digital.
No Brasil, ainda não há uma legislação específica para a herança digital, mas ela está prevista no projeto de reforma do Código Civil, recebido pelo Senado em abril.
Neste breve texto, abordaremos essa nova forma de transmissão patrimonial e os desafios tributários no Brasil.
Herança digital e a reforma do Código Civil
O anteprojeto da reforma do Código Civil entregue ao Senado, em seu capítulo V, conceitua patrimônio digital e, ainda, a transmissão hereditária de ativos digitais, dentre outros temas.
A definição de Patrimônio Digital foi estabelecida da seguinte forma:
Art. Considera-se patrimônio digital o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.
Parágrafo único. A previsão deste artigo inclui, mas não se limita a dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtual.
Especificamente sobre herança digital, dispõe o anteprojeto de lei:
Art. A transmissão hereditária dos dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas ou códigos de acesso, pode ser regulada em testamento.
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1º O compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais será equiparado a disposições contratuais ou testamentárias expressas, para fins de acesso dos sucessores, desde que tais disposições estejam devidamente comprovadas.
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2º Integra a herança o patrimônio digital de natureza econômica, seja pura ou híbrida, conceituada a última como a que tenha relação com caracteres personalíssimos da pessoa natural ou jurídica.
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3º Os sucessores legais podem pleitear a exclusão da conta ou a sua conversão em memorial, diante da ausência de declaração de vontade do titular.
Vê-se a preocupação da legislação em abarcar não só os negócios digitais que geram renda como também o patrimônio digital das pessoas que não utilizam o mundo virtual como negócio estando a regulamentação ampla.
Ocorre que como o direito está quase sempre atrasado em relação aos negócios e ao mundo em que vivemos, naturalmente, a transmissão de patrimônio digital já foi enfrentada em diversos casos de sucessão e, até onde sabemos, as empresas digitais não fazem objeção à transmissão desse patrimônio com a apresentação da devida documentação.
Entretanto, insta destacar dois casos que chegaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e os diferentes entendimentos do tribunal.
Em 2021, conforme descrito no acórdão (TJSP; Apelação Cível 1119688-66.2019.8.26.0100; Relator (a): Francisco Casconi; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 12ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/03/2021; Data de Registro: 11/03/2021), a 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que “a irresignação está fundada em exclusão de perfil da filha da apelante da rede social ré (Facebook) após a morte da titular da página pessoal. Alega a autora que utilizava normalmente o perfil da filha, eis que possuía acesso ao seu usuário e senha, mas que tal acesso foi repentinamente interrompido sem prévio aviso ou maiores explicações. Requereu na exordial restabelecimento do status quo ou obtenção dos dados correlatos do perfil, além de informações que levaram à sua exclusão e indenização por danos morais".
Com base nos termos de uso da plataforma apelada, o tribunal destacou que “o usuário tem duas opções em caso de óbito: optar previamente pela exclusão da sua conta ou requerer a manutenção do perfil, com a indicação ou não de um contato herdeiro nesse último caso, oportunidade em que a conta será transformada em memorial. Deste modo, mesmo que o usuário não tenha optado por excluir a conta após o seu falecimento, a outra opção estipulada pelos termos de uso do site é a transformação do perfil em memorial, com funções limitadas e impossibilidade de acesso direto da conta.” Ressaltou a falta de legislação sobre o tema no Brasil “Com relação à validade das cláusulas acima reproduzidas, insta consignar que não há regramento específico sobre herança digital no ordenamento jurídico pátrio. Sequer a Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) ou a novel Lei Geral de Produção de Dados se debruçaram expressamente sobre a questão".
Assim, a decisão foi em sentido contrário ao pleito da mãe da falecida no sentido que “devem prevalecer, quando existentes, as escolhas sobre o destino da conta realizadas pelos indivíduos em cada uma das plataformas, ou em outro instrumento negocial legítimo, não caracterizando arbitrariedade a exclusão post mortem dos perfis. Inexistente manifestação de vontade do titular neste particular, sobressaem os termos de uso dos sites, quando alinhados ao ordenamento jurídico".
Em 2024, a 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP (Apelação Cível 1017379-58.2022.8.26.0068; Relator (a): Carlos Alberto de Salles; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/04/2024; Data de Registro: 26/04/2024) decidiu, no contexto fático de “expedição de alvará judicial para transferência do “ID Apple” de sua filha falecida.”, decidiu que “A despeito da inexistência de regulamentação legal específica acerca da herança de bens digitais, é certo que o patrimônio digital da pessoa falecida, considerado seu conteúdo afetivo e econômico, pode integrar o espólio e, assim, ser objeto de sucessão. (...) No caso em comento, não se verifica justificativa para obstar o direito da única herdeira de ter acesso às memórias da filha falecida, não se vislumbrando, no contexto dos autos, violação a eventual direito da personalidade da de cujus, notadamente pela ausência de disposição específica contrária ao acesso de seus dados digitais pela família”.
Destacou a ausência de resistência na transferência pela empresa, a necessidade de prestar as informações requeridas pela empresa e, ainda, o Enunciado 687 CJF: “O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo”.
Ambos os casos, embora com contextos fáticos e peculiaridades diferentes, deixam evidente que a transferência do patrimônio digital na esfera sucessória é uma realidade e, como tal, também encontra desafios tributários.
Impactos fiscais no Brasil
No Brasil, a transferência de quaisquer bens ou direitos por sucessão (herança) está sujeita à incidência do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e, possivelmente, à incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas (IRPF).
O ITCMD é o imposto que incide na sucessão (transmissão causa mortis) e na doação, com previsão constitucional no artigo 155, inciso I, da Constituição Federal. A competência para cobrança do referido imposto é reservada aos estados e ao Distrito Federal. A base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado do bem (valor atual), considerando eventual valorização.
No estado de São Paulo, atualmente a alíquota aplicada sobre a base de cálculo do ITCMD é fixa, no percentual de 4%. Já no Rio de Janeiro, as alíquotas variam entre 4% e 8%. Com o advento da reforma tributária, a expectativa é que os estados que ainda aplicam alíquota fixa, como São Paulo, passem a cobrar o ITCMD com a alíquota máxima de 8%, atualmente prevista na Resolução 9/1992 do Senado. Há proposta na Casa para elevar a alíquota máxima para 16%.
É possível, ainda, que a transmissão de bens por sucessão esteja sujeita à incidência do IRPF, imposto com previsão constitucional no artigo 153, inciso III, da Constituição Federal, cuja competência para cobrança é reservada à União. Conforme o disposto no artigo 43 do Código Tributário Nacional, o IRPF tem como fato gerador a aquisição de renda e/ou acréscimo patrimonial.
Nos termos do artigo 23 da Lei 9.532/1997, na transmissão de bens por herança, o herdeiro tem as seguintes possibilidades: (i) declará-lo em sua Declaração de Ajuste Anual de Imposto de Renda (DAA), na ficha “Bens e Direitos”, pelo custo de aquisição constante na DAA do falecido ou do doador (valor histórico do bem); ou (ii) declará-lo pelo valor atual de mercado.
Se o herdeiro ou o donatário optar pela atualização do bem a valor de mercado, a diferença a maior entre este e o valor constante na DAA do transmitente estará sujeita à apuração do ganho de capital e incidência do respectivo IR.
Há questionamento sobre a validade da cobrança do IRPF sobre a valorização dos bens transmitidos por herança, uma vez que já ocorre a incidência do ITCMD nas transferências destes bens (cuja base de cálculo é o valor de mercado), bem como que não haveria acréscimo patrimonial ao espólio (contribuinte do imposto), mas sim uma mera transferência de patrimônio aos herdeiros - fato jurídico não gerador de aquisição de disponibilidade econômica.
Em 2023, a 1ª Turma do STF, com exceção da ministra Cármen Lúcia, posicionou-se pela não incidência do IRPF sobre a valorização de bens transmitidos por herança ou doação.
Em seu voto, o ministro relator Luís Roberto Barroso destacou que “esta Corte possui entendimento de que o imposto sobre a renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente (...).” (...) “Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarreta indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD)” (STF; 1ª Turma; ARE 1387761 AGR / ES; Relator Ministro Luís Roberto Barroso; Data do julgamento: 22/2/2023).
Por outro lado, cumpre observar que mais recentemente a 2ª Turma do STF manteve a cobrança do IRPF sobre a valorização de bens transmitidos por herança entendendo inexistente o bin in idem (STF. 2ª Turma; RE 1425609. Relator Ministro Gilmar Mendes; Data do Julgamento 20/5/2024).
Embora ainda não haja legislação específica sobre a herança digital no Brasil, é possível vislumbrar desafios tributários a serem enfrentados na transmissão destes bens, sobretudo em relação ao conteúdo econômico da herança digital, que servirá para a base de cálculo tanto do ITCMD quanto de eventual IRPF sobre ganho de capital, pois afinal, quanto vale uma conta no Facebook, YouTube ou Instagram, por exemplo?
Uma pesquisa rápida no google diz que o valor de uma conta com 50 a 100 mil seguidores pode valer cerca de US$ 2.000. Entendemos que a avaliação é muito mais complexa, sendo necessário avaliar o uso comercial ou não da conta, engajamento dos seguidores, dentre diversas questões para se chegar a um valor justo. Por se tratar de tema novo acreditamos que gerará bastante controvérsia e difícil fiscalização.
Outro ponto que merece atenção é a volatilidade inerente aos bens digitais – tal como as criptomoedas – que poderão sofrer desvalorização ao final do processo de inventário e, com isso, dificultar o pagamento do ITCMD, cuja base de cálculo é o valor de mercado que o bem detinha à época da abertura da sucessão; e, igualmente considerando a volatilidade destes bens, a possível cobrança do IRPF na atualização a valor de mercado, na hipótese de valorização do bem.
Ademais, considerando que as contas são detidas em empresas localizadas no exterior, surge a interessante questão: os bens estão situados no país?
A princípio, conforme se depreende das decisões judiciais sobre o ponto, parece que sim, pois em ambos os processos em trâmite perante o TJSP, as empresas brasileiras foram parte na ação.
Entretanto, e sendo uma empresa digital sem representação no Brasil, ou se o titular da conta deliberadamente indicou outro país como o local de sua conta, a herança digital continuará sendo situada no nosso país? O endereço de IP por a conta é acessada terá influência na resposta?
Estando a conta em outra jurisdição, necessário ainda analisar os acordos internacionais celebrados pelo Brasil para se identificar se aplicável a regra distributiva do artigo sobre o ganho de capital, mais provável, ou se aplicável o artigo residual sobre outros rendimentos, bem como para identificação do respectivo método aplicável para se evitar a dupla tributação internacional.
Considerações finais
Nossa intenção nesse breve artigo foi expor os desafios (alguns novos e outros velhos conhecidos) que circulam a tributação na sucessão, mais especificamente a herança digital, que é fruto do mundo onde a maioria dos bens tem uma ligação direta ou indireta com o cenário digital.
Resta aos operadores do direito lidar com esse novo cenário que, como visto, já é realidade no direito sucessório.