jota logo
Entrar
jota logo
Entrar
Democracia

Exclusão da participação indígena nas eleições

Interpretação extensiva de lei restritiva contra minorias (Caso Xucuru)

Ranieri L. Resende
24/01/2021|08:04
Atualizado em 26/01/2021 às 15:04
povos tradicionais
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Causa assombro que especificamente à candidatura do Cacique Marcos Xucuru, membro de minoria indígena, escolhido prefeito do município de Pesqueira (PE) ainda no primeiro turno das eleições de 2020, o Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco tenha emprestado uma interpretação extensiva à norma proibidora nacional para decretar a sua inelegibilidade e vedar a legítima participação político-eleitoral.

Neste aspecto, identifica-se a provável ocorrência de uma prática discriminatória titularizada pelo Estado brasileiro, ao arrepio das normas protetivas internacionais e em sentido contrário aos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Sem dúvida, tais fatores devem ser levados em consideração pelo Tribunal Superior Eleitoral na apreciação do recurso especial eleitoral submetido a seu iminente julgamento (Proc. nº 0600136-96.2020.6.17.0055), sob o risco de reforçar eventual prática de ato internacionalmente ilícito.

Dimensão política minoritária dos povos indígenas

A realidade histórica brasileira se configura irrefutavelmente vinculada à sub-representação indígena perante as instituições políticas, de modo a alcançar até mesmo cenários de total supressão representativa, como o que se verificou no recente interregno entre 1987 e 2018, quando nenhum deputado federal indígena participou das respectivas legislaturas por mais de 30 anos (Câmara dos Deputados, 2018).

A histórica sub-representação política combinada com relevantes e permanentes disputas territoriais produzem resultados negativamente impactantes nas comunidades indígenas, os quais redundam na notória falta de priorização de políticas públicas de proteção, consoante exemplifica o alto grau comparativo da taxa de mortalidade infantil, ao constatar-se que o risco de morte de uma criança indígena antes de completar um ano é 60% maior em relação a não-indígenas (Marinho et al., 2019).

Nesta perspectiva, a violência social contra indígenas perpassa pela evidente conduta omissiva estatal, no inadimplemento de sua obrigação de prover segurança suficiente a tais minorias, a fim de assegurar as suas integridades individual, coletiva, cultural e ambiental.

Insta ressaltar que no julgamento do caso Xucuru vs. Brasil (2018) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, os atos de gravíssima violência ali narrados atingiram toda a comunidade indígena, juntamente com as respectivas lideranças. Dentre as vítimas individualizadas, constam expressamente na sentença interamericana o próprio Cacique Marcos Xucuru e sua família.

Standards globais de proteção

Considerando a dimensão minoritária das populações indígenas, o Comitê de Direitos Humanos (HRC) editou o General Comment nº 23/1994, o qual estabelece que a proteção de um específico meio de vida está conectada ao uso dos recursos naturais do território no caso dos povos indígenas e, para garantir o exercício de seus direitos, medidas positivas precisam ser adotadas para assegurar a efetiva participação dos membros de comunidades minoritárias nas tomadas de decisão que possam afetá-las.

Em seu General Comment nº 21/2009, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR) considera que os direitos culturais dos povos indígenas estão diretamente associados a seus territórios ancestrais e a sua relação com a natureza, motivo pelo qual os Estados são obrigados a reconhecer e proteger os direitos dessas populações, especialmente por intermédio do dever de viabilizar a sua participação nos respectivos processos decisórios que possam atingi-las.

A normativa convencional definitiva sobre o tema foi agregada à Convenção OIT nº 169 (1989), que combinou elementos conectados ao consentimento e participação política nos respectivos artigos 6 e 7, com vistas a abranger o acesso aos processos de tomada de decisão, controle sobre as terras tradicionalmente ocupadas e seus recursos, direitos de consulta e proteção cooperativa do meio ambiente.

De forma ampla, os direitos de participação indígena incluem o acesso à justiça ambiental e participação no processo de tomada de decisão em matérias especificamente comunitárias e, concomitantemente, naquelas franqueadas a todos os cidadãos. Isto se justifica em razão de, no caso dos povos indígenas, a conexão imanente entre o direito à vida e o direito à propriedade exigir especial proteção contra o abuso governamental e a degradação ambiental (Burger, 2003).

Não é outro, alias, o conteúdo da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada por intermédio de Resolução da Assembleia Geral (2007), ao assimilar o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, mantendo ao mesmo tempo o direito de participar plenamente da vida política do Estado (art. 5º), ao lado da obrigação estatal relacionada ao combate ao preconceito e à eliminação de práticas discriminatórias contra tais comunidades e seus membros (art. 15.2).

Standards interamericanos de proteção

A título exemplificativo, Thomas Antkowiak identifica alguns precedentes interamericanos de destaque:

a) Comunidad Indígena Yakye Axa vs. Paraguay (2005): teste de legalidade, necessidade e proporcionalidade aplicável para justificar eventual intervenção estatal em questões indígenas;

b) Comunidad Moiwana vs. Suriname (2005): extensão do regime jurídico de proteção especial das terras indígenas às terras de outras populações tradicionais;

c) Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua (2001): reconhecimento da propriedade comunitária sobre as terras indígenas, com a vedação de que interpretações da lei nacional restrinjam a fruição de tal direito por seus titulares.

Chama atenção que no julgamento do caso Yatama vs. Nicarágua (2005), com referência à Comunidade Indígena Yatama, o Tribunal Interamericano tenha estatuído ser indispensável que o Estado gere as condições e os mecanismos adequados para que os direitos políticos da minoria étnica sejam efetivamente exercidos, respeitados os princípios da igualdade e da não discriminação.

Neste sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com os artigos 1.1, 2, 23 e 24, define que o Estado tem a obrigação internacional de garantir o gozo dos direitos políticos, a par de adotar as medidas necessárias para garantir o seu pleno exercício, a não se configurar suficiente a mera expedição de normas que reconheçam apenas formalmente referidos direitos, mas que a adoção das correspondentes medidas estatais assecuratórias do exercício dos direitos políticos leve em consideração as situações de debilidade e desamparo em que se encontrem os integrantes de determinados setores ou grupos sociais.

Complementa tal compreensão o artigo 9º da Carta Democrática Interamericana, aprovada pela Assembleia da OEA (2001), que compõe o denominado corpus iuris interamericano (Neuman, 2008):

A eliminação de toda forma de discriminação, especialmente a discriminação de gênero, étnica e racial, e das diversas formas de intolerância, bem como a promoção e proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e dos migrantes, e o respeito à diversidade étnica, cultural e religiosa nas Américas contribuem para o fortalecimento da democracia e a participação do cidadão.

Na mesma linha da Declaração Universal (art. 5º), a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia da Organização dos Estados Americanos em 2016, deixa explícito que, além de ter assegurada a sua participação no processo decisório relacionado às questões que possam afetar seus direitos, os povos indígenas têm o direito à igualdade de oportunidades para acessar e participar plena e efetivamente em todas as instituições e foros nacionais, inclusive em colegiados deliberativos (art. XXI).

Violação do princípio democrático e prática discriminatória

A falha de proteger grupos impopulares pode resultar na incapacidade legislativa em face de forças políticas e econômicas prevalentes (Dworkin, 1996), com o potencial de facilitar o surgimento de práticas típicas de “tirania da maioria”, em detrimento das faculdades decisórias de porções minoritárias da sociedade (Waldron, 2006), seguida por desapoderamentos de facto (Elster, 2000), com graves consequências para grupos e organizações indígenas (Yashar, 1998).

Para evitar tal cenário de supressão de minorias, destaca-se o papel “contramajoritário” a ser exercido pelo Poder Judiciário (Bickel, 1986), ao buscar o reajuste estrutural das tensões políticas confrontantes (maioria vs. minorias). Em nenhuma hipótese, pois, pode o Judiciário nacional servir de suporte ou confirmação de violações de direitos humanos de minorias que deveria proteger.

No caso concreto, impressiona que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE/PE) tenha adotado uma interpretação extensiva da lista fechada (numerus clausus) de causas legais de inelegibilidade para excluir o candidato indígena do processo eleitoral municipal, este vinculado diretamente à representação local da própria comunidade indígena a que pertence (Comunidade Indígena Xucuru – município de Pesqueira, PE).

Ao decidir pela exclusão do candidato indígena, o Tribunal Regional recorrido ementou sinteticamente:

O crime pelo qual foi condenado o recorrido, incêndio com causa de aumento de pena em razão da conduta ter atingido casa habitada ou destinada à habitação (art. 250, caput e 250, §1o, II, “a”), deve ser enquadrado na inelegibilidade do art. 1º, I, “e”, item 2 (crime contra patrimônio privado) da LC nº 64/90.

Saliente-se, entretanto, que o tipo penal “crime de incêndio”, que teria sustentado a condenação do candidato, não se encontra especificado no rol taxativo do artigo 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90.

Tal constatação objetiva decorre da própria situação topográfica do artigo 250 do Código Penal brasileiro que tipifica o crime de incêndio, incluído no Título VIII do Códex referente aos “Crimes contra a Incolumidade Pública”, fora dos limites dos capítulos penais vinculados aos crimes contra a propriedade privada.

A esse respeito, a doutrina nacional é bastante pacífica, consoante leciona Paulo José da Costa Júnior em seus comentários ao artigo 250 do Código Penal:  “Objetividade jurídica – É a incolumidade pública, entendia como a segurança dos cidadãos em geral”.

Interessante registrar algumas semelhanças estruturalmente visíveis entre as previsões legais do crime de incêndio na lei brasileira e no Código Penal alemão, cuja disposição no Strafgesetzbuch é considerada pela doutrina especializada um crime de perigo contra a comunidade (§ 306 et seq.) [Wolff, 2005], em direta consonância com a sua localização topográfica na respectiva Seção 28.ª do Código (Gemeingefährliche Straftaten), externos à abrangência dos crimes contra a propriedade privada.

Acresça-se, ainda, a existência de inúmeras decisões de outros Tribunais Regionais Eleitorais brasileiros a deixar explícito o suporte à premissa ora assimilada, ao interpretarem a norma proibitiva nacional acerca das inelegibilidades de forma restrita, em sentido diametralmente oposto à extensão dada Corte Eleitoral recorrida com relação ao candidato indígena:

O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a incolumidade pública, não estando a mesma capitulada como crime contra a Administração Pública, conforme prevê a Lei Eleitoral. Tratando-se de norma restritiva de direitos, não comportando interpretação extensiva.[1] (TRE/RS)

[...] o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em comento é a incolumidade pública e não a saúde pública, de modo que não incide na espécie a causa de inelegibilidade.[2] (TRE/RJ)

Existência de condenação por crime contra a incolumidade pública. Delito não previsto como causa de inelegibilidade pela LC 64/90. Analogia in malam partem vedada pelo ordenamento em relação a norma restritiva.[3] (TRE/SP)

[...] a hipótese não se enquadra na inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “e”, da LC nº 64/90, porquanto o delito não se amolda a nenhuma das previsões ali constantes, haja vista ter por objeto jurídico a incolumidade pública e a segurança coletiva.[4] (TRE/RN)

Neste ponto, adequado recordar o bem fundamentado voto do juiz Piza Escalante, no âmbito da Opinión Consultiva nº 5/85 da Corte Interamericana, ao registrar que as hipóteses fáticas devem ser consideradas implicitamente permitidas, caso não tenham sido expressamente incluídas na proibição da lei, em razão do princípio da interpretação extensiva dos direitos humanos e restritiva de suas limitações (pro homine).

Trata-se, portanto, de um critério interpretativo que informa todo o arcabouço do Direito Internacional dos Direitos Humanos, segundo o qual a interpretação extensiva somente será cabível quando envolver a abrangência de uma norma de proteção. Inversamente, a interpretação mais restrita será adequada quando estiver em jogo o estabelecimento restrições ao exercício de direitos ou a sua suspensão extraordinária (Pinto, 1997).

Com base nas premissas fáticas e jurídicas consideradas, a resposta preliminar ao problema originário se direciona a reconhecer que o comportamento do Estado brasileiro evidencia um risco relevante de configurar-se um ato internacionalmente ilícito sob o prisma do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Tal conclusão decorre da interpretação extensiva do Poder Judiciário a uma norma proibitiva em matéria eleitoral, cujos efeitos concretos suprimiram a participação política do candidato indígena Cacique Marcos Xucuru, escolhido prefeito do município de Pesqueira (PE) no primeiro turno das eleições locais de 2020, além de reforçarem uma prática estatal discriminatória aplicada às minorias indígenas brasileiras, ao impedir o pleno exercício de seu legítimo direito de acesso e participação nas esferas institucionais de tomada de decisão, com irreparáveis prejuízos à Comunidade Indígena Xucuru.

Considerando a pertinente condenação brasileira pela Corte Interamericana no Caso Xucuru (2018), aparenta que não houve nenhum aprendizado institucional significativo pelas instâncias nacionais, com vistas a evitar situações locais e globais de violações de direitos indígenas pelo próprio Estado.

Haverá ainda tempo e oportunidade para mudar tal cenário?


O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:


[1] Brasil. Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. Recurso Eleitoral No. 121-79.2016.6.21.0032. Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz. Publicado em sessão: 14 Set. 2016.

[2] Brasil. Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. RC No. 2246-44.2014.6.19.0000. Rel. Juiz Edson Aguiar de Vasconcelos. Publicado em sessão: 18 Ago. 2014.

[3] Brasil. Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Recurso Eleitoral No. 29274. Acórdão No. 163297. Rel. Juiz Paulo Alcides. Publicado em sessão: 8 Set. 2008.

[4] Brasil. Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande de Norte. RC No. 384-11.2014.6.20.0000. Acórdão No. 722/2014. Rel. Juiz Carlo Virgílio Fernandes de Paiva. Publicado em sessão: 5 Ago. 2014.logo-jota

Tags
Democracia
Eleições
Estado de Direito
povos indígenas
TSE