A votação realizada pelo Supremo Tribunal Federal na tarde de 25 de junho, véspera do Dia Internacional contra o Abuso de Drogas e Tráfico Ilícito, pôs fim a um debate que se estendeu por quase uma década no Judiciário brasileiro. Por um placar de 8 votos a 3, os ministros do STF definiram que o porte para consumo pessoal da cannabis deixa de ser considerado crime no país – a quantidade que distinguirá usuário de traficante ainda será estabelecida. Conforme aponta a versão recém-atualizada do Monitor de Políticas de Drogas do Instituto Igarapé, diversos países, em especial nas Américas, vêm revendo suas legislações à luz da ciência de maneira a torná-las mais humanas e eficazes.
No Uruguai, Canadá e em vários estados dos Estados Unidos, por exemplo, o uso medicinal e adulto da cannabis e de outras drogas foi regulado. No Chile, o cultivo de até seis plantas de maconha para fins terapêuticos com receita médica e a posse de até dez gramas em ambiente privado são permitidos, enquanto na Colômbia e no México o uso pessoal de drogas foi descriminalizado.
Ao todo, 19 países do continente americano já adotam critérios objetivos de quantidade para distinguir usuários de traficantes – número que deve subir para 20 em breve, depois que o parâmetro for definido pelo Brasil. Em 16 países o uso da cannabis, ao menos, já foi descriminalizado – incluindo, agora, o Brasil. Nossos vizinhos andaram para frente e vêm testando distintos modelos de regulação. A partir da decisão do Supremo, nos aproximamos dessas tendências acertadas em termos de saúde e segurança pública. Ao estabelecer a descriminalização do porte e da posse de cannabis, vai ao encontro das evidências científicas e das boas práticas internacionais no que tange às políticas de prevenção, tratamento e redução de danos.
Ganham os dependentes químicos e suas famílias, que passam a ter opções mais responsáveis de tratamento, já que dificilmente um ser humano será resgatado de sua dependência química por ameaça ou castigo. A criminalização marginaliza os usuários de drogas e os entrega de bandeja nas mãos de traficantes e do crime organizado, impedindo seu acesso a tratamentos de saúde e reinserção social, o que perpetua ciclos de dependência e criminalidade. Nesse sentido, a decisão pode gerar impactos significativos.
Os críticos à descriminalização insistem em dizer que essas medidas têm o potencial de aumentar o consumo e fortalecer o tráfico, argumento que não se comprovou nas dezenas de países em todo o mundo que já optaram por abordar a questão das drogas no âmbito da saúde pública. Um caso emblemático é o de Portugal, que se tornou referência após descriminalizar o uso e a posse de pequenas quantidades de todas as drogas em 2001. A mudança resultou na redução significativa nas infecções por HIV entre usuários de drogas injetáveis — passou de 104 novos casos por milhão em 2000 para 4,2 em 2015 — e a diminuição nas mortes por overdose. As políticas de redução de danos, como programas de troca de seringas e tratamento com metadona, foram fundamentais para esses resultados.
Ganha também a população como um todo, pois já está evidente que a guerra às drogas não reduz a violência — muito pelo contrário. O Brasil é um dos maiores consumidores de drogas no mundo e um dos líderes na América do Sul no ranking mundial de homicídios divulgado ano passado pela ONU. Foram, em 2021, mais de 46 mil assassinatos. Uma recente pesquisa divulgada pela Quaest aponta que a violência é um dos três problemas que mais afligem os brasileiros, atrás apenas da economia e da saúde.
Outros avanços ainda são necessários, já que nossa atual política de drogas dá poder ao tráfico e à violência, intensificando os conflitos entre facções criminosas pelo controle do comércio ilegal e destes grupos com a polícia. Consequentemente, o resultado são mais mortes e insegurança. A proibição cria ainda um mercado altamente lucrativo para o crime organizado, o que incentiva e alimenta a corrupção dentro de instituições públicas.
Há também o custo econômico da guerra às drogas. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro gastaram R$ 5,2 bilhões na luta contra as drogas apenas no ano de 2017, segundo dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), e não existem indícios de que os altos valores empenhados ano após ano nas ações de repressão estejam contribuindo para uma melhora efetiva do problema. Os recursos gastos em repressão poderiam ser melhor utilizados em políticas de saúde pública, educação e redução de danos.
O próximo passo no Supremo é a definição do parâmetro objetivo que distingue usuário de traficante. Em estudo publicado pelo Instituto Igarapé e parceiros foram analisados diferentes cenários, indicando – com base na experiência de outros países e especialistas no tema – a quantidade de 40 a 100 gramas de maconha como a mais adequada à realidade brasileira.
Outro ponto que não se pode perder de vista é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 45/2023 – a polêmica “PEC das Drogas” – pelo Senado, que posiciona parte dos parlamentares brasileiros na contramão das evidências científicas que vêm guiando as políticas de drogas ao redor do mundo.
Sobram evidências de que, além de não oferecer soluções efetivas para o cenário relacionado aos casos de uso excessivo e dependência, as políticas antidrogas, dependendo de como forem formuladas, podem ser mais perigosas do que o consumo em si. O imenso prejuízo humano e financeiro para mantê-las não se justifica sob qualquer aspecto. A resposta ao fenômeno das drogas deve ser pautada na promoção da saúde pública e no combate ao crime organizado – baseada na ciência, no diálogo com a sociedade civil organizada e no respeito aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
O Brasil avança rumo a uma política de drogas inclusiva e responsável, capaz de enfrentar os desafios atuais e futuros de maneira mais eficaz e humana. Como disse o saudoso Kofi Annan, ex-secretário-geral das Nações Unidas e membro da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, “as drogas já destruíram muitas vidas, mas as políticas equivocadas sobre drogas destruíram muitas mais”.