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STF

Decide, mas não muda: STF e o Estado de Coisas Inconstitucional

Por que a decisão do Supremo na ADPF 347 não alterará o quadro do sistema carcerário?

Rubens Glezer, Eloísa Machado de Almeida
09/09/2015|22:57
Atualizado em 09/09/2015 às 21:57
Fachada do Supremo Tribunal Federal / Crédito: Dorivan Marinho

A decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal sobre a ilicitude e indignidade estrutural do sistema penitenciário brasileiro foi uma grande decepção. Mais ainda, uma decepção com toques de engodo. Essa afirmação pode ser surpreendente tendo em vista que o STF deferiu cautelarmente a ADP 347 para declarar o “Estado de Coisas Inconstitucional” das prisões brasileira. Esse resultado estrondoso, porém, mascara que, nos detalhes, qualquer traço de mudança real foi apagado pelos ministros do Supremo. Na prática, nada muda.

Para um diagnóstico mais preciso, é preciso ter em mente que se trata da primeira grande ação judicial de intervenção estrutural sobre o sistema penitenciário brasileiro. Outras decisões relevantes já haviam sido tomadas pelo STF, como a impossibilidade de vedar a progressão de regime em crime hediondo ou, mais recentemente, reconhecimento de que o Judiciário pode exigir reformas em presídios sem ofensa à Separação de Poderes. Porém, este seria o primeiro caso em que o Judiciário demandaria do Poder Executivo e outras instâncias uma articulação estrutural e profunda a respeito do tema, visando implementar mudanças eficientes em médio e longo prazo. Na petição inicial, o PSOL requereu ao STF o deferimento de oito cautelares. A despeito de como foram organizadas, podemos repensá-las da seguinte maneira:

Dirigida a qual problema Objeto resumido Texto do pedido na inicial
Qualidade e conteúdo das decisões judicias Prisão provisória: reforço à aplicação de penas alternativas à privação de liberdade a) Determine a todos os juízes e tribunais que, em cada caso de decretação ou manutenção de prisão provisória, motivem expressamente as razões que impossibilitam a aplicação das medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.

 

Condenação: reforço à aplicação de penas alternativas à privação de liberdade d) Reconheça que como a pena é sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pela ordem jurídica, a preservação, na medida do possível, da proporcionalidade e humanidade da sanção impõe que os juízes brasileiros apliquem, sempre que for viável, penas alternativas à prisão.

 

Condenação e execução penal: considerações sobre sistema penitenciário c) Determine aos juízes e tribunais brasileiros que passem a considerar fundamentadamente o dramático quadro fático do sistema penitenciário brasileiro no momento de concessão de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal.
Execução penal: fruir benefícios processuais e) Afirme que o juízo da execução penal tem o poder-dever de abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos do preso, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando se evidenciar que as condições de efetivo cumprimento da pena são significativamente mais severas do que as 70 previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória, visando assim a preservar, na medida do possível, a proporcionalidade e humanidade da sanção.

 

 

 

Execução penal: abrandar tempo de prisão f) Reconheça que o juízo da execução penal tem o poder-dever de abater tempo de prisão da pena a ser cumprida, quando se evidenciar que as condições de efetivo cumprimento da pena foram significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória, de forma a preservar, na medida do possível, a proporcionalidade e humanidade da sanção.
Procedimentos judicias

 

Audiência de custódia b) Reconheça a aplicabilidade imediata dos arts. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, determinando a todos os juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.
Providências administrativas pelo Judiciário Mutirões pelo CNJ g) Determine ao Conselho Nacional de Justiça que coordene um ou mais mutirões carcerários, de modo a viabilizar a pronta revisão de todos os processos de execução penal em curso no país que envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas “e” e “f” acima.

 

Providências administrativas pelo Executivo Descontigenciamento das verbas do FUNPEN h) Imponha o imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN, e vede à União Federal a realização de novos contingenciamentos, até que se reconheça a superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro

 

Ao longo de todo o julgamento foram realizadas assertivas fortes por todos os ministros, com apelos ao Estado Democrático de Direito, à Dignidade Humana e à situação de tortura a que são submetidos os presos em todo o Brasil. Porém, ao final, as cautelares deferidas dizem respeito apenas às audiências de custódia e ao descontingenciamento das verbas do FUNPEN.

Nenhuma destas medidas é realmente nova: as audiências de custódia já estavam em processo de implementação pelos tribunais estaduais e as verbas do FUNPEN sofrem mais com a ausência de projetos articulados do que com efetivo contingenciamento. A decisão inova ao estabelecer um prazo máximo de 90 dias para a realização de audiências de custódia e a mobilização das verbas do FUNPEN. Apenas um pouco de “cumpra-se a lei” em pontos laterais para a solução do desastre que é o sistema penitenciário brasileiro. Avançam, mas muito pouco.

Entretanto, não foi acatada nenhuma medida cautelar voltada a lidar com as decisões judiciais de encarceramento, parte crucial do problema. Ministros como Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes – ambos com experiência significativa na presidência do CNJ – reconhecem na cultura punitiva do Judiciário a fonte primordial para a crescente superpopulação carcerária e, consequentemente, para o “Estado de coisas inconstitucional”.

Esse diagnóstico serviu de subsídio para outras falas assertivas, como a do Ministro Luiz Fux, de que o STF deveria dar diretrizes enfáticas aos demais magistrados do sistema Judiciário. Estas falas, porém, estão desacompanhadas de autoridade. Os ministros, ao se negarem de criar ou fazer valer qualquer mecanismo de controle sobre a atividade dos juízes, como a Reclamação direto ao tribunal ou a possibilidade de apreciar as liminares contra liminares negadas em habeas corpus, transformaram uma decisão judicial em um mero aconselhamento.

Em síntese, o Supremo reconhece que o Judiciário é parte do problema. Mas, ao não adotar medidas mais severas para a reversão das decisões de aprisionamento provisório, não faz parte da solução.

Ao deferir algumas cautelares sem conceder nenhuma daquelas dirigidas aos juízes, o potencial de mudança estrutural da decisão foi anulado. O Ministro Marco Aurélio alertou o Tribunal de que a decisão estaria esvaziada, sem sorte. Se algo mudou, foi o fato de que o STF perdeu a chance de criar seu próprio grande precedente de direitos humanos.logo-jota

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