Paulo Henrique Garcia D’Angioli
Advogado em tributário da Vibra Energia
Não raras vezes decidimos algo sob a certeza da compreensão de que estamos apenas confirmando uma linha de racionalidade há tempos já definida e pacificada. Aquilo que a psicologia chama de viés cognitivo.
Adornados por essa tranquilidade da suposta não surpresa, pensamos não existir nenhum risco a ser ponderado e decidimos sem maiores hesitações. Essa postura um tanto quanto açodada, todavia, pode nos cegar quanto aos efeitos – primários e secundários – dessa decisão.
A situação se agrava quando se trata do exercício de jurisdição pela Suprema Corte e a decisão contar com eficácia erga omnes e efeito vinculante.
Considerando os contornos ainda não totalmente definidos acerca (i) da limitação objetiva da coisa julgada em controle abstrato (apenas dispositivo ou os fundamentos nucleares da decisão?) e, consequentemente, (ii) do efeito da declaração de inconstitucionalidade material de uma norma (existe arrastamento automático sobre normas de mesmo conteúdo jurídico?), nota-se o quanto a jurisdição constitucional se assemelha a uma neurocirurgia: por mais meditação que haja no manuseio desse Poder Constitucional, os efeitos práticos poderão surpreender.
Feita essa breve introdução, vamos ao objeto concreto de nosso estudo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em abril de 2021, julgar o mérito e declarar improcedente a pretensão veiculada na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49, intentada em 2017 pelo Governador do Estado do Rio Grande do Norte (ADC 49[1]).
A Corte declarou expressamente a inconstitucionalidade de artigos da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) que previam a tributação de transferências entre estabelecimentos da mesma empresa[2], por entender incompatíveis com as previsões contidas no art. 155 da Constituição da República (CRFB)[3].
Ao assim proceder, o STF afirmou sua própria jurisprudência, como firmada em 2020 no ARE nº 1.255.885/MS[4], do qual exsurgiu a Tese de Repercussão Geral (TRG) nº 1.099: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.”.
Ademais, ratificou entendimento histórico do Superior Tribunal de Justiça firmado desde a súmula 166[5] em 1996, confirmado em 2010 quando do julgamento do REsp 1.125.133/SP[6], oportunidade que se firmou a tese repetitiva nº 259, segundo a qual “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
Ora pois. Se, nos controles de legalidade (STJ) e de constitucionalidade (STF) já estava clara, remansosa e pacífica a inviabilidade de se tributar pelo ICMS a mera transferência de bens entre estabelecimentos de uma mesma empresa, impunha-se, aparentemente, um julgamento célere da ADC 49.
No entanto, como demonstram os Embargos de Declaração interpostos na ADC 49 e as diversas manifestações que acompanharam pedidos de habilitação como amigos da Corte, o julgamento abriu diversas possibilidades além daquelas imaginadas pelo Estado do RN (interessado) e pelo colegiado jurisdicional. Nessa linha, e considerando acertada a posição de Gamader[7] sobre a primazia das perguntas sobre as respostas e essa primazia ser a base do conceito do saber, pergunta-se:
É certo, como já afirmamos, que muitos efeitos poderão ocorrer do julgamento do STF, mas nos parece que os quatro pontos identificados acima são centrais e passaremos, a seguir, a tentar desvendá-los.
Iniciaremos pela terceira pergunta, e seremos muito diretos: considerando que o TRG nº 1.099 foi firmado em 2020 sem nenhuma modulação de efeitos, o STF já gerou para todos os contribuintes e UFs a posição clara e firme de que não é viável a cobrança de ICMS em meras transferências, ainda que interestaduais, dentro de uma mesma pessoa jurídica.
O Supremo poderia, com alto ônus argumentativo, reconhecer a superação da jurisprudência (overruling), mas, se a Corte atuar como historicamente faz e prestigiar o art. 926 do CPC, ainda que declare na ADC 49 a inconstitucionalidade dos artigos da Lei Kandir a partir de momento certo no futuro ou a partir do momento em que as UFs legislarem sobre o tema de modo compatível com a CRFB, não haveria nenhum cabimento em validar qualquer cobrança de ICMS sobre mera transferência entre estabelecimentos de uma pessoa jurídica.
Temos, portanto, que eventual modulação poderia estender-se legitimamente a todos os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, exceto àquele efeito já esgotado quando do TRG 1.099: a segurança plena de todo contribuinte a não ter ICMS dele cobrado por UFs em meras transferências.
Dito isso, passamos a pensar nas respostas aos dois primeiros questionamentos, que podem ser resumidos na hipótese que dá título ao presente texto: e se... a ADC 49 realmente fulminar o princípio da autonomia dos estabelecimentos para o ICMS?
Se isso acontecer, toda a pessoa jurídica (PJ) passa a ser um único sujeito passivo perante cada UF (sujeito ativo na cobrança de ICMS). Não se nega que cada transferência entre estabelecimentos dessa PJ precisa seguir sendo registrada em livros e notas fiscais.
Entendemos, portanto que continuará sendo necessária uma contabilidade que chamaríamos de “interna/de 1ª etapa” por unidade/filial, ainda que haja apenas uma contabilidade centralizada “externa/de 2ª etapa” da PJ junto a cada UF.
Quanto à viabilidade de trânsito de bens dentro de uma mesma empresa, também não se sugere que passe a ocorrer sem observância de critérios básicos como adequação aos respectivos códigos de atividade e amplitude de seus alvarás e inscrições. Na medida em que pode haver CNAEs diferentes para cada unidade de uma PJ, algumas filiais podem ser autorizadas – e outras, impedidas – ao tráfego de dados bens.
Estabelecidos os limites, é forçoso reconhecer que as transferências dentro da PJ serão atos apenas físicos, isto é, não haverá sequer "saída". É substancialmente diferente dizer que "não há saída" e que "a saída não é tributada" – a importância aqui, mais que apenas acadêmica, é prática!
Isso porque, quando edificamos o entendimento de não tributação pelo ICMS sobre uma pedra fundamental de que, em transferências, sequer saídas há, definitivamente a partir disso não é preciso se preocupar com estorno de créditos.
Na contabilidade de 1ª etapa existirão as "entradas e saídas" nas transferências e identificação quanto a benefícios dados a estabelecimentos A ou B da referida PJ.
Em reflexo ajustado, na contabilidade de 2ª etapa, só haverá uma entrada – a primeira entrada física (e jurídica) da mercadoria na PJ. E só uma saída – a última saída física (e jurídica) da PJ.
Pois assim é: na primeira entrada no 1º estabelecimento da PJ, apura-se o crédito contra o estado A, para o qual o alienante da mercadoria recolheu o ICMS.
Vamos supor que haja uma transferência ao 2º estabelecimento da PJ: o crédito segue com a mercadoria – mas continua sendo exercível, por óbvio, apenas contra o mesmo estado A (sob pena de subvertermos a lógica da sujeição ativa do tributo, o que não é dado sequer a lei complementar, na forma do art. 155, II c/c §2º, XII, CRFB).
Isso independe de o 2º estabelecimento da PJ estar geograficamente localizado no estado A ou B ou C: o sujeito "ativo" do crédito é a PJ e o sujeito "passivo" do crédito é o estado A.
Decorre disso, pois, a plena viabilidade de todos os estabelecimentos da PJ, estejam eles nos estados A, B, Y ou Z, promoverem em um 2º grau de contabilidade o cotejo de todos os seus débitos e créditos contra cada uma das UFs, respeitada sempre sua competência e capacidade tributária ativa, e apenas, ao cabo, promover o pagamento da diferença positiva ou apurar o crédito final – como uma só PJ, e não mais como apenas um estabelecimento ou conjunto de estabelecimentos apenas dentro da referida UF.
E ainda que tenhamos que, em respeito ao sujeito ativa do ICMS, elaborar o cálculo de créditos/débitos por UF, a situação proposta é conceitual e pragmaticamente distinta do que hoje se chama apuração centralizada: primeiro porque não haverá a necessidade de se indicar um estabelecimento centralizador por UF; segundo, cairiam por terra os obstáculos hoje previstos na legislação infraconstitucional (principalmente nos dispositivos locais) que impedem o pleno aproveitamento dos créditos, como, por exemplo, as previsões dos arts. 97 e 99 do RICMS/SP[8].
Não estamos, absolutamente, propondo alteração de sujeição ativa do ICMS. No caso das mercadorias tributáveis no destino, nada muda; se a última saída da energia ou do derivado de petróleo foi no estado B, competir-lhe-á o débito integral de ICMS. E o crédito de ICMS será operado integralmente na origem, no estado A, única e exclusivamente para zeraro débito original e reduzir o estado de origem A à ausência de ganho financeiro, como, aliás, determina a Constituição da República.
As transferências interestaduais em sequência, da mesma forma, continuarão sendo rastreáveis pelo 1º nível de contabilidade, com devida tomada de crédito na origem, DIFAL (quando aplicável), débito no destino e “zero a zero” nas escalas.
Nada muda, também, na repartição da receita do ICMS com os municípios, uma vez que a contabilidade de 1º grau permitirá na plenitude o controle de movimentação, a identificação de cada origem e o devido repasse.
Por fim, com relação à quarta pergunta – declaração de inconstitucionalidade de plano, por arrastamento, das normas estaduais – é necessário lembrar estamos diante de uma ADC, cujo objeto constitucional é apenas dispositivo de atos normativos primários federais (art. 102, I, a, in fine, CRFB), mais restrito, portanto, do que ocorre com uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade. Além disso, teríamos que verificar a viabilidade de o STF, em controle abstrato, esclarecer ou mesmo estender, em Embargos de Declaração, a amplitude do seu julgamento no que diz com o objeto especificamente trazido à sua apreciação (sabe-se que a causa de pedir em controle abstrato é aberta e não vincula a Corte, mas a amplitude do pedido – o que se busca ver declarado – fixa os limites de atuação “legislativa negativa ou afirmativa” do Supremo).
Uma coisa, no entanto, nos parece clara: partindo da premissa de que o julgamento sob análise fulminou o princípio da autonomia do estabelecimento, e que a conclusão partiu da análise da Carta da República, nenhuma legislação infraconstitucional que a contrarie pode subsistir.
No ponto, é preciso registrar que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que, nas relações com o Fisco, a pessoa jurídica deve ser entendida como uma só[9]. Citamos, abaixo, excerto de recente acórdão paradigmático:
“(...)
(AREsp n° 1.273.046/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 08/06/2021)
Como se vê, a jurisprudência já vinha admitindo a mitigação do princípio da autonomia do estabelecimento na relação entre contribuinte e Fisco e, com o julgamento da ADC n° 49, novas possibilidade são abertas para se aprimorar essa relação.
É certo que o julgamento ainda não terminou, mas, como dito no início do texto, se é possível imaginar efeitos que talvez não tenham sido considerados pela Suprema Corte, eles podem, se bem endereçados, inaugurar uma nova era na relação jurídica envolvendo um dos tributos mais complexos do país.
Os desafios são muitos e a operacionalização da proposta acima certamente demandará maior detalhamento. Sem prejuízo, procuramos apontar um possível rumo a ser tomado para aperfeiçoar a apuração e recolhimento do ICMS pós-ADC 49.
E se esse imposto é hoje um dos maiores responsáveis pelo contencioso tributário do país, que a busca por novas soluções possa fazer com que ele alcance sua vocação constitucional de proporcionar uma justa tributação de bens de consumo, entregando recursos aos estados e proporcionando segurança jurídica aos contribuintes.
[1] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5257024
[2]Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ICMS. DESLOCAMENTO FÍSICO DE BENS DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR. PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE DE OPERAÇÃO JURÍDICA COM TRAMITAÇÃO DE POSSE E PROPRIDADE DE BENS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Enquanto o diploma em análise dispõe que incide o ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, o Judiciário possui entendimento no sentido de não incidência, situação esta que exemplifica, de pronto, evidente insegurança jurídica na seara tributária. Estão cumpridas, portanto, as exigências previstas pela Lei n. 9.868/1999 para processamento e julgamento da presente ADC. 2. O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual. Precedentes. 3. A hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final. 4. Ação declaratória julgada improcedente, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996.(ADC 49, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-084 DIVULG 03-05-2021 PUBLIC 04-05-2021)
[3] Ainda estão pendentes de julgamento os Embargos de Declaração opostos em face do acórdão, que buscam aclarar alguns pontos do julgado e tratar sobre possível modulação dos efeitos, de modo que não nos parece que haverá modificação no resultado de mérito.
[4] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5854428
[5] “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. (SÚMULA 166, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/1996, DJ 23/08/1996, p. 29382)
[6] https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=200900339844
[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 476.
[8] Artigo 97 - Para compensação, os saldos referidos no artigo 96 serão transferidos, total ou parcialmente, para estabelecimento centralizador, eleito segundo o regime de apuração do imposto, pelo titular, entre aqueles que estiverem sujeitos ao menor prazo para recolhimento do imposto.
[9] Ver, por exemplo, AgInt no AREsp n° 1.286.122/DF, AgInt no AREsp 731625 / RJ, entre outros.