O preço da moeda-meme Dogecoin caiu nesta quinta-feira (6/4), depois que o cachorro da raça shiba inu foi substituído pelo passarinho azul como logo do Twitter. Esta frase descreve acontecimentos verdadeiros, que movimentaram milhões de dólares, mas até uns meses atrás seria incompreensível. Mesmo para quem consegue entender essa cadeia de acontecimentos é difícil captar o sentido por trás deles – e menos ainda compreender porque o homem mais rico do mundo trocou e destrocou passarinho por cachorro em meio a um processo de US$ 258 bilhões que começou exatamente por seus posts no Twitter sobre a moeda virtual do cachorrinho. Como algo que poderia ou não ser uma brincadeira.
Começando quase do começo: a essa altura, todos temos uma ideia aproximada do que seja uma criptomoeda. Pulando os aspectos técnicos do blockchain, dá para entender que o Bitcoin, por exemplo, é um ativo virtual que pode ser comprado e vendido e que se valoriza quando a procura é maior que a oferta. Depois do Bitcoin, surgiram outras “moedas” virtuais, que na prática seguem o mesmo modelo: de moeda mesmo têm muito pouco (já que não podemos em geral comprar uma casa ou pagar uma conta com elas), mas que podem ser vendidas e, assim convertidas em real ou dólar.
As criptomoedas-meme são um caso especial nesse universo. A Dogecoin foi lançada em 2013 como uma paródia do Bitcoin, a partir de um meme do cachorro que viralizava em fóruns na internet. Por baixo do meme, no entanto, existia uma tecnologia que sustentava seu funcionamento. E, por anos, era como uma piada interna no mundo dos fóruns, com aquele caráter especulativo e dúbio de algo feito para saber se “pega”: Se você quiser eu quero. Se não, era brincadeira”. Até que Elon Musk aparentemente quis. E a brincadeira ficou séria.
Em 2021, o dono da Tesla ainda não tinha comprado o Twitter, mas usava a plataforma sem parar. Com o status gênio putativo, e, simultaneamente bilionário e antissistema, reuniu milhões de fãs prontos a interagir com o “nerd que deu certo” e era divertido e acessível, compartilhava memes e gostava de misturar a imagem de CEO com a de um fun guy. Quando ele começou a promover a Dogecoin, era em um tom de meme que não permitia saber com certeza se era ou não a sério. Na dúvida, muitos pensaram que valia a pena arriscar. E os preços dispararam.
Já era maré de alta para as criptomoedas em geral, mas as publicações de Musk ajudaram a Dogecoin a subir mais de 10.000%. Ele chegou a dizer que lançaria ao espaço pela SpaceX o foguete Doge-1, financiado pela criptomoeda. O lançamento nunca aconteceu, e, como tudo nessa história, poderia ter sido só uma brincadeira, mas os preços dispararam de novo. E quando ele fez uma piada declarada, em participação no programa humorístico Saturday Night Live, o preço da Dogecoin desabou 30%. Ele brincou que sua mãe estava chateada em ganhar a criptomoeda de presente, e chamou a Dogecoin de “fraude”.
O poder do bilionário de fazer o preço da criptomoeda flutuar é evidente. Mas existe algo legalmente errado nisso, que poderia colocar sua fortuna em perigo? É o que um tribunal federal de NY pode ter que decidir, em uma ação que tem o potencial de ser a maior da história do mercado financeiro. Em junho de 2022, um investidor, Keith Johnson, alegou que Musk e duas de suas empresas, a Tesla a SpaceX, praticaram extorsão por divulgar o ativo para aumentar o preço e depois fazê-lo cair. Ele alega que se trata de um esquema de pirâmide e pede que o caso seja transformado em um processo coletivo, em nome de todos que perderam dinheiro com o ativo.
Em 31 de março, os advogados de Musk pediram que o tribunal federal de Manhattan nem aceite julgar o caso e chamaram o processo de “obra fantasiosa de ficção”, baseada em “tuítes inócuos e muitas vezes bobos” de Musk sobre a Dogecoin: “Não há nada de ilegal em tuitar palavras de apoio ou imagens engraçadas sobre uma criptomoeda legítima que continua a ter um valor de mercado de quase US$ 10 bilhões”.
Foi pouco depois dessa manifestação à Justiça, que Musk, agora dono do Twitter, mudou o passarinho da rede social pelo cachorro. O preço chegou a subir mais de 30% nas primeiras horas depois que o cachorro começou a aparecer na plataforma. Dois dias depois, o passarinho voltou, e os preços caíram 9%, provando mais uma vez que as ações do bilionário afetam os preços da criptomoeda.
Mesmo assim, é muito difícil provar que ele tenha feito algo legalmente errado. O especialista regulação de criptomoedas Rafael Bianchini, disse ao JOTA que o desleixo de Musk de falar o que lhe vem à telha é só aparente.
“Ele foi bem esperto. Fazer recomendações de investimento é diferente de ser um entusiasta ou falar bem de um ativo. E os fãs dele podem ter se entusiasmado, mas não podem dizer que ele disse em algum momento para que eles comprassem Dogecoin”, diz Bianchini, professor da FGV Direito Rio e coordenador de regulação de riscos financeiros de Infraestruturas do Mercado Financeiro no Banco Central.
Se existe algum risco, está em outro aspecto, diz Bianchini. Uma das suspeitas levantadas sobre Musk é que ele poderia ser o dono anônimo da maior carteira de Dogecoins. Se isso se confirmasse no processo (embora não haja nenhum indício de que seja verdade, apenas especulações), o jogo mudaria de nível.
“Aí vejo como plausível a hipótese de manipulação de mercado. Se ele tuitava e as ações subiam, e ele se beneficiava. Um indício forte é que ele antes falava muito de bitcoin e, de uma hora pra outra começou a criticar o custo elevado em energia pra manter o Bitcoin. Ele trabalha com tecnologia e energia, é muito difícil que ele não soubesse de antemão. Dá um indício muito claro”, diz Bianchini.
Há certo consenso entre analistas americanos de que não há grande chance de sucesso na ação contra Musk, sendo improvável até que ela chegue a um julgamento. As trocas inexplicáveis de logo podem talvez ser explicadas simplesmente pelo excesso de confiança de Musk nesse desfecho. Uma provocação a mais em uma história que, para ele, termina bem se todas os seus atos forem vistos como brincadeiras. Culpado seria quem o levou a sério.