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Hipóteses de eleições diretas e indiretas para presidente

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Capítulo 1

Introdução

Esse artigo é o segundo, de uma série de três, que publico no JOTA sobre a crise política e o Direito Constitucional brasileiro. O primeiro versou sobre os mecanismos de responsabilização do Presidente da República e o regramento constitucional da sua substituição e sucessão. O presente se dedica à análise das hipóteses de eleição direta e indireta para presidente e vice-presidente da República caso haja dupla vacância no último biênio de mandato. O próximo se dedicará a discutir o regime jurídico da eleição indireta para a Presidência da República.

Tais artigos surgiram da constatação de que tais temas, embora de enorme relevância, receberam tradicionalmente pouca atenção do direito constitucional brasileiro, inclusive em razão do seu caráter inusitado. Portanto, esses textos se destinam a submeter ao debate público propostas para essas relevantes questões à luz da Constituição Federal de 1988. Embora naturalmente haja divergências sobre qual solução é a que melhor se adequa à Constituição, ela deve ser o único parâmetro de solução da crise política. Em um país cuja democracia ainda se encontra em fase de amadurecimento, nunca é demais lembrar que não há saída democraticamente legítima fora da Constituição.

Capítulo 2

Eleições indiretas ou diretas na hipótese de vacância dos cargos de presidente e de vice nos dois últimos anos de mandato?

A hipótese de dupla vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República no último biênio do mandato é regulamentada por dispositivo constitucional específico, qual seja, o art. 81, § 1º, da Constituição Federal de 1988. Confira-se o seu teor: “a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. A alusão a “eleição feita pelo Congresso Nacional” significa que o constituinte optou por excepcional eleição indireta para presidente da República, na medida em que os eleitores serão os parlamentares federais, e não os cidadãos em geral em gozo da sua capacidade eleitoral ativa.

Note-se, porém, que, em 29 de setembro de 2015, foi editada a Lei n. 13.165 (Minirreforma eleitoral), que, em seu artigo 4º, alterou a redação dos §§ 3º e 4º do art. 224 do Código Eleitoral (Lei n. 4.737/65), para determinar que “a decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato[1] de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições […]”, as quais somente serão indiretas “se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato.”[2]

Do cotejo dessas normas se percebe que elas, quando menos aparentemente, contêm soluções díspares: enquanto o § 1º do art. 81 da CF/88 prevê eleição indireta para as hipóteses em geral de vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República ocorridas nos dois últimos anos de mandato, o art. 4º, da Lei n. 13.165/2015 estabelece que, para o caso específico de “cassação de mandato eletivo” pela Justiça Eleitoral, somente haverá eleição indireta se a vacância tiver ocorrido nos seis últimos meses de mandato.”  Desse modo, em havendo cassação de mandato pela Justiça Eleitoral no período entre o início do terceiro ano e os seis meses anteriores ao fim do mandato, as normas parecem ser contraditórias na parte em que disciplinam a eleição para presidente da República, pois a Minirreforma eleitoral prevê eleição direta para todos os cargos majoritários (no quais se inclui o presidente da República) e o § 1º do art. 81 da CF/88 prevê eleição indireta para a dupla vacância qualquer que seja o motivo que a ensejar (abrangendo a cassação de mandato pela Justiça Eleitoral). A questão, contudo, apresenta sutilezas e será apreciada pelo STF.

A propósito, o procurador-geral da República, por considerar que o art. 4º da Lei nº 13.165/2015, na parte em que trata da eleição do presidente da República, colide com o art. 81, § 1º da CF/88, propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.525 no STF. A Advocacia-Geral da União se manifestou pela procedência da ação. Já a Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, na qualidade de amicus curiae, defendeu a improcedência da ação, pois considera possível que o legislador ordinário exclua das hipóteses de eleição indireta para os cargos de presidente e vice-presidente da República a situação específica daquela que é gerada pela vacância dos cargos em razão de cassação de mandato por decisão da Justiça eleitoral. Defende-se essa tese com base, essencialmente, na relevância conferida pela Constituição de 1988 ao voto direto (erigido à condição de cláusula pétrea pelo art. 60, §4º, II da CF/88 e bandeira principal do movimento “Diretas já”) e no fato de ao legislador ordinário também competir interpretar a constituição.  

Embora o relator da ADI n. 5.525, ministro Luís Roberto Barroso, tenha liberado o processo para julgamento, ele ainda não foi incluído em pauta. De todo modo, o Tribunal Superior Eleitoral, em recente decisão na qual deliberou pela cassação dos mandatos do governador e do vice-governador do estado do Amazonas, decidiu pela aplicação da Lei nº 13.165/2015[3], pois, apesar de ter sido proposta ADI em que se pugna pela sua inconstitucionalidade, ainda não há decisão cautelar ou definitiva, preservando-se a presunção de constitucionalidade da lei. Assim, foi determinada a realização de eleição direta para governador daquele Estado.

Note-se que dois Ministros do STF que são titulares do TSE (min. Gilmar Mendes e Luiz Fux) não participaram do julgamento, sendo substituídos naquela ocasião pelos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. A proposta de aplicação da Lei nº 13.165/2015 foi formulada pelos ministro Luís Roberto Barroso (que prolatou o voto divergente pela cassação de mandato que acabou prevalecendo), a qual foi acolhida pelos ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Herman Benjamim e Admar Gonzaga. Desse modo, ainda que os ministros possam votar em sentido contrário em deliberação específica sobre o tema, três dos sete Ministros titulares do TSE, e três dos onze Ministros do STF, mostraram-se simpáticos à tese da constitucionalidade da Lei nº 13.165/2015. Porém, a apreciação da questão ocorrerá pela composição efetiva do TSE quando de eventual decisão de cassação da chapa Dilma-Temer, e/ou pelo STF quando do julgamento da ADI n. 5.525 ou de eventual recurso contra aquela decisão, cabendo ao STF a decisão final.

É bem de ver, contudo, que, à luz do direito positivo em vigor, a controvérsia somente se coloca no caso de cassação de mandato pela Justiça Eleitoral. Não há dúvida de que nas demais hipóteses de dupla vacância ocorrida no último biênio de mandato – renúncia, condenação criminal transitada em julgado pelo STF e impeachment pelo Senado Federal – a eleição será indireta, exceto se for aprovada emenda constitucional que estabeleça eleição direta para a hipótese. Porém, seria constitucional emenda constitucional desse teor? Haveria, ou não, violação aos limites ao poder de reforma constitucional, particularmente às cláusulas pétreas? É sobre esse tema que nos ocuparemos no próximo item.

Capítulo 3

Haveria violação à cláusula pétrea?

Debate sobre a constitucionalidade de emenda constitucional que estabeleça eleições diretas

O deputado Miro Teixeira apresentou a Proposta de Emenda Constitucional de n. 227/2016, que dá a seguinte redação ao § 1º do art. 81, da CF/88: “ocorrendo a vacância nos últimos seis meses do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. Vê-se que a PEC se destina a incorporar na Constituição Federal o tratamento conferido ao tema pelo art. 4º da Lei n. 13.165/2015, de modo que, caso aprovada, quaisquer que sejam os seus motivos a eleição indireta somente ocorreria caso a vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República se verificasse nos últimos seis meses do mandato. Há algum vício de constitucionalidade nessa proposta de emenda constitucional?

A meu ver, não. A substituição da eleição indireta pela direta no período entre o início do terceiro ano do mandato e os seis últimos meses não viola qualquer cláusula pétrea, sendo, portanto, uma legítima opção do poder constituinte derivado. Porém, a aprovação da PEC n. 227/2016, em sua redação atual, não produziria qualquer efeito na hipótese de o presidente Michel Temer deixar a Presidência da República no referido lapso de tempo. A razão é simples: nada dizendo a PEC sobre a observância, ou não, da regra da anualidade eleitoral inscrita no art. 16 da CF/88, ela seria aplicável, mediante simples e necessária interpretação sistemática da Constituição. Em outras palavras, se o art. 16 da CF/88 prevê que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, se o STF considera o vocábulo “lei” extensível às emendas constitucionais[4], e se a PEC n. 227/2016, ao alterar a forma de eleição do presidente da República, evidentemente dispõe sobre “processo eleitoral”, não há dúvida acerca da aplicação da anualidade eleitoral. Desse modo, salvo se a PEC n. 227/2016 for aprovada com antecedência superior a um ano da referida eleição para o cargo de presidente da República (o que, no caso em análise, é bastante improvável), ela não será aplicável ao respectivo pleito.

Subsiste, porém, a hipótese de a PEC, além de alterar a redação do § 1º do art. 81, da CF/88, estabelecer expressamente a inaplicabilidade do art. 16, de modo a determinar a sua incidência a eventual eleição ocorrida em menos de um ano da data da sua publicação. Haveria violação à cláusula pétrea?

A questão não é simples. Um primeiro passo para a construção da resposta consiste na compreensão da razão de ser do art. 16 da CF/88. Cuida-se de norma destinada a resguardar a observância dos princípios democrático e da segurança jurídica no processo eleitoral, pois, ao estabilizar as normas que o disciplinam, evita as incertezas inerentes às alterações das regras em meio ao processo eleitoral, e os consequentes riscos de favorecimentos ou perseguições a quem quer que seja. Dessa forma, o art. 16 é oponível às emendas constitucionais enquanto consista em instrumento necessário à proteção dos princípios democrático e da segurança jurídica no processo eleitoral, mas não per se. Em outras palavras, o valor da anualidade eleitoral é instrumental (enquanto meio relevante para a proteção dos princípios constitucionais da segurança jurídica e democrático), e não intrínseco. Assim, são esses princípios constitucionais, enquanto direitos materialmente fundamentais, que ostentam o status de cláusula pétrea, não a anualidade eleitoral em si.[5]

Na presente hipótese, é o próprio substrato axiológico da anualidade eleitoral que justifica a sua restrição pela emenda constitucional cogitada. Em um cenário peculiaríssimo de dupla vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República, associado à realização de investigação criminal sem precedentes na história brasileira, a opção tomada pelo Congresso Nacional de remeter ao povo a decisão sobre a eleição do novo presidente da República não viola, antes promove, o princípio democrático. Além disso, a edição de uma regulamentação detalhada do processo eleitoral antes do seu início evitaria incertezas sobre as regras do jogo, conferindo-lhe, portanto, nível satisfatório de segurança jurídica. Não há, portanto, qualquer violação a cláusula pétrea, parecendo-me plenamente válida emenda constitucional que institua eleição direta para a dupla vacância com o afastamento da regra da anualidade eleitoral.

Em síntese, somente nos parece viável a realização de eleição direta nas seguintes hipóteses: à luz da ordem jurídica atual, caso o STF considere constitucional aplicação da Lei nº 13.165/2015 às eleições presidenciais e a dupla vacância ocorra por cassação de mandato por decisão da Justiça Eleitoral; ou, nas demais hipóteses de dupla vacância, caso seja aprovada emenda constitucional que, não apenas altere o art. 81, § 1º, da CF/88, como expressamente exclua a aplicação da anualidade eleitoral (art. 16, da CF/88). A contrario sensu, se a dupla vacância for gerada por renúncia, condenação criminal transitada em julgado ou condenação por impeachment, sob a égide da ordem constitucional atual ou mesmo que seja aprovada emenda que preveja eleição direta, sem, contudo, excepcionar a aplicação da anualidade eleitoral, a eleição deverá ser indireta.

Capítulo 4

É constitucional a aprovação de emenda constitucional que estabeleça eleição direta?

Conclusão

As principais conclusões do presente artigo podem ser sintetizadas em respostas objetivas às perguntas abaixo.

1) À luz da ordem constitucional em vigor, havendo vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República nos dois últimos anos do mandato a eleição deve ser direta ou indireta? Há alguma especificidade para a hipótese de cassação pela Justiça eleitoral em relação às demais hipóteses de vacância?

O art. 81, § 1º, da CF/88 prevê que a eleição para presidente e vice-presidente da República, na hipótese de dupla vacância no último biênio de mandato, será feita pelo Congresso Nacional. Assim, os eleitores serão os parlamentares federais, e não os cidadãos dotados de capacidade eleitoral ativa, qualificando-se a eleição, portanto, como indireta.

Em razão do advento do art. 4º da Lei n. 13.165/2015, há debate jurídico, submetido ao STF na ADI 5.525, sobre se a eleição deve ser direta ou indireta na hipótese específica de a dupla vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República no último biênio de mandato ser causada por cassação dos seus mandatos por decisão da Justiça Eleitoral.

2) É constitucional a aprovação de emenda constitucional que estabeleça, na hipótese, eleição direta? Deverá ser aplicada a regra da anualidade eleitoral (art. 16, da CF/88)?

Sim, tendo em vista não implicar violação a qualquer limite ao poder de reforma constitucional, particularmente às cláusulas pétreas. Porém, Emenda Constitucional que pura e simplesmente modificasse o art. 81, § 1º, da CF/88 para alterar a modalidade de eleição (de indireta para direta) se submeteria ao princípio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da CF/88, somente produzindo efeitos para eleição realizada, no mínimo, um ano depois da sua edição.

Porém, caso a Emenda Constitucional, além de estabelecer a modalidade direta para a respectiva eleição, expressamente afaste a aplicação da anualidade eleitoral não haverá qualquer óbice a sua aplicação a eleição ocorrida em menos de um ano de sua edição. Isto porque, embora a anualidade seja um instrumento importante para a proteção dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da democracia, e assim, via de regra, seja oponível às emendas constitucionais, são aqueles princípios constitucionais, enquanto direitos materialmente fundamentais, que são cláusulas pétreas, e não a anualidade eleitoral em si.

Desse modo, emenda constitucional que prestigie tais princípios não será inconstitucional. É o caso da alvitrada Emenda Constitucional essencialmente por duas razões: (i) em um cenário um cenário peculiaríssimo de dupla vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República, associado à realização de investigação criminal sem precedentes na história brasileira, a opção tomada pelo Congresso Nacional de remeter ao povo a decisão sobre a eleição do novo presidente da República não viola, antes promove, o princípio democrático. Além disso, a edição de uma regulamentação detalhada do processo eleitoral antes do seu início evitaria incertezas sobre as regras do jogo, conferindo-lhe, portanto, nível satisfatório de segurança jurídica.  

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Rodrigo Brandão é Doutor e Mestre em Direito Público Pela Uerj. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Responsável pelo Curso de Pós-graduação em Direito do Estado e da Regulação da FGV-Rio


[1] Utiliza-se, para fins didáticos, a expressão “cassação de mandato” para designar as hipóteses de indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato, previstas no Art. 224, § 3o  do Código Eleitoral, na redação conferida pela Lei nº 13.165, de 2015.

[2] Art. 224, § 3o A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

§ 4º A eleição a que se refere o § 3ocorrerá a expensas da Justiça Eleitoral e será: (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

II – direta, nos demais casos. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

[3] TSE, Plenário, RO 224661, Relator Ministro Luís Roberto Barroso, julgamento 02.05.2017.

[4] STF, ADI 3685, Relatora Min. Ellen Gracie, julgamento em 22.03.2006, publicação em 10.08.2006; STF, ADI 4307, Relatora Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11.04.2013, publicação em 30.09.2013

[5] BRANDÃO, Rodrigo. Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas Pétreas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 296.